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Volume 54 nº 3 - 2020 | Pandemia e a clínica virtual

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

A pandemia que assolou o planeta e afetou a sociabilidade de milhões de pessoas atingiu profundamente o atendimento psicanalítico praticado em nossos consultórios, e ainda não sabemos quando nem como voltaremos a nossa usual prática clínica.

Há anos analistas vêm pensando e teorizando o atendimento virtual, devido à aceleração do fluxo migratório estimulado pelo processo de globaliza­ção. Pacientes mudam de cidade ou de país por questões de trabalho ou estudo, e para não interromper o processo analítico a dupla analista-analisando opta por continuar de modo virtual. Isso é conhecido pela comunidade psicanalítica. A novidade consiste no fato de que nunca tivemos o atendimento virtual reali­zado em escala mundial. Esse experimento nos permite avançar numa pesquisa qualitativa contando com a observação de um número significativo de colegas, o que torna possível uma reflexão crítica nunca realizada. A crise emergencial imposta aos psicanalistas e aos pacientes nos empurrou para esse experimento em larga escala.

Assim, neste número sobre a pandemia e a clínica psicanalítica virtual, procuramos agrupar os trabalhos que focalizaram as mudanças advindas de uma ingerência radical na dupla analista-analisando, forçando uma passagem repentina do atendimento presencial para o atendimento à distância, remoto, virtual ou online.

O número se dedica a trabalhar mais especificamente com algumas das principais indagações ao campo psicanalítico: quais as possibilidades e con­sequências desse novo enquadre? Quais as mudanças observadas no campo analítico e na técnica psicanalítica?

Determinados aspectos foram rapidamente identificados e apontados por vários psicanalistas:

  • um maior cansaço no atendimento virtual;
  • a questão da privacidade;
  • a não corporeidade e suas limitações;
  • a maior intrusão do ambiente no campo analítico;
  • a importância de descobrir um novo lugar para o encontro analítico na sessão virtual;
  • os significados do silêncio e a demanda mais acelerada da fala;
  • o estado transferencial e contratransferencial no vínculo analítico.

O editorial não é um artigo sobre o tema, mas um estímulo aos leitores a lerem os trabalhos dos colegas a respeito do tema. Os aspectos antes elencados servem para dar um gosto do que contém este número.

Gostaria de agradecer ao designer Daniel Kondo, que elaborou a capa especial para os números sobre a pandemia. Ele captou a nossa preocupação em registrar o fato de que a pandemia teve um impacto imenso no planeta e que a rbp não poderia deixar de marcar para nós mesmos e para as gerações futuras que o ano de 2020 representou um corte no “normal”.

Apesar das notícias tristes deste ano, gostaríamos de compartilhar uma notícia boa: a revista passou a ser classificada como B1 na avaliação Qualis (Capes). A nota B1 é fruto de um trabalho em equipe, de várias parcerias e diálogos que permitiram esse importante resultado para a rbp.

Peço atenção especial para a seção “Projetos e pesquisas”, que nos conta sobre os trabalhos solidários realizados pelas federadas e que tanto nos orgu­lham enquanto membros da Febrapsi. São notícias sobre a psicanálise solidária.

Para finalizar, desejamos a todos os leitores e colegas boas festas e um ano de 2021 renovado de esperanças, com os avanços da ciência nos trazendo vacinas capazes de nos resgatar a liberdade de sociabilidade e de vida.

Diálogo

Pandemia

O artigo traz relatos de sonhos de pacientes em análise, ou não, durante a pandemia. Apresenta a interpretação de sonhos da pandemia de covid-19, segundo o modelo clássico da interpretação psicanalítica de sonhos, e destaca a simbolização como recurso desse tipo de interpretação.
Palavras-chave: sonhos, restos diurnos, sonhos típicos, desejo, inconsciente

A própria vida e o desejo de se tornar analista estiveram na berlinda com a chegada da pandemia. Este trabalho se propõe a descrever e refletir de que forma a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e, mais especialmente, o Instituto de Ensino da Psicanálise encontraram meios não só para sobreviver, mas igualmente para incrementar o desejo entre seus integrantes. Foi a partir do fortalecimento da instituição, valorizando o papel dos candidatos nela inseridos, que o quarto eixo da formação psicanalítica cresceu em sua forma virtual, abrindo mais espaço para que todos se lançassem em busca do desejo que, diante dos perigos do isolamento, corria o risco de se perder.
Palavras-chave: formação analítica, desejo, identidade, covid-19, quarto eixo

Partindo de um pequeno relato a respeito da experiência da autora com a migração do setting presencial para um setting online durante a pandemia, algumas questões iniciais são colocadas como reflexão sobre o processo psicanalítico que se estabelece nessa nova modalidade. A seguir, são recolhidas várias passagens do livro Lectures on technique, de Melanie Klein, sobre contratransferência e identificação projetiva, enriquecidas também por contribuições de E. Spillius. Ao final são apresentadas e discutidas algumas vinhetas clínicas à luz do exposto anteriormente.
Palavras-chave: atendimento online, setting, contratransferência, identificação projetiva

Movimentos da clínica psicanalítica em sua possível plasticidade serão aqui considerados, a partir da convocação de novas modalidades de atendimento além do presencial físico, mobilizadas pela pandemia de 2020. Serão discutidos o trânsito entre diferentes tipos de comunicação, a intensificação do desenvolvimento da associatividade, a presença viva de um repertório em constituição como “corpo-envoltório” do vínculo e a participação dos envolvidos na reconstrução da cena clínica como recurso essencial para o trabalho com o sofrimento psíquico, quando nosso próprio senso de continuidade e integração é posto à prova pela inesperada ruptura do enquadre habitual.
Palavras-chave: psicanálise, pandemia, estados mentais primitivos, teleanálise

Diante de um cenário em que o distanciamento social se tornou imperativo de ordem e saúde, as atividades virtuais passaram a ser priorizadas. O cuidado passa a ocupar os discursos e ações, tornando assim essencial que conheçamos novos dispositivos capazes de oferecer continência e sustentação, para dar continuidade a nossa clínica. Em especial na clínica com bebês e crianças pequenas, essa questão se amplifica por seu caráter preventivo e constitutivo. Ela deve ser um direito garantido que não pode esperar. Trata-se de um relato de experiência de intervenção nas relações iniciais da primeiríssima infância, realizada durante a pandemia de covid-19, à luz da psicanálise. Serão apresentadas vinhetas de um atendimento presencial e sua continuidade online, a fim de elucidar as possibilidades clínicas desse trabalho não presencial, mas nem por isso remoto.
Palavras-chave: pandemia, atendimento online, intervenção nas relações iniciais, psicanálise

A covid-19 foi classificada como uma pandemia pela oms. Até o momento, não há tratamento ou vacina para a doença. Ao mesmo tempo que o Brasil é o país epicentro da doença na América Latina, o presidente da República, Jair Bolsonaro, manifesta-se contrário às medidas de isolamento social, minimizado a importância e a gravidade das consequências da doença no país, além de defender a retomada da economia em detrimento das questões sanitárias. A pandemia pode ser considerada uma situação traumática, que coloca o sujeito em contato com um sentimento de imobilidade e impotência. Busca-se debater a situação da população brasileira diante da covid-19, principalmente a da parcela mais vulnerável, relacionando suas vivências à noção de trauma, a partir dos psicanalistas Sándor Ferenczi e Jacques Lacan e do sociólogo Kai Erikson.
Palavras-chave: covid-19, trauma, trauma social, desmentido, psicanálise

Interface

O início da pandemia, além da angústia pela possibilidade de adoecer e até de morrer, se constitui em uma crise intensa pela mudança de paradigmas do cotidiano familiar. O lar passa a ser simultaneamente home office, escola, playground etc. Toda essa reformulação não é fácil de metabolizar. Nesse pandemônio, surgem outras pandemias associadas, como o aumento da ansiedade, o isolamento social, a falta de empatia dos governantes para com a dor dos cidadãos, o desencontro com a ciência e a criação de mitos e utopias. Com respeito a essas utopias de cunho maníaco, existe a noção de que o pós-pandemia significará o surgimento de um “novo normal”, como se uma transformação quase mágica, pela experiência dolorosa, fosse mudar o homem para melhor. A história nos mostra que não é bem assim que as coisas funcionam.
Palavras-chave: pandemia, trauma, angústia, banalização da morte, crises, utopias

Outras palavras

Apresentamos algumas reflexões sobre o trabalho clínico realizado durante a primeira fase da pandemia de covid-19 no Brasil. Constatamos que a chegada do vírus deflagrou um inesperado que nos colocou em estado de espera. A permanência nesse estado de espera remonta à des-espera, estado no qual o sujeito imerge na obscuridade de uma zona de exclusão figurada pelo intervalo entre o passado e aquilo que ele é no que projeta. Se tomarmos esse des-esperar como marca do sofrimento singular produzido pela impossibilidade de esperar a espera, constataremos que há certas especificidades a serem consideradas nos tratamentos que dirigimos neste período de pandemia. Assim, fazemos algumas considerações sobre os efeitos da fratura espaçotemporal causada pelo acontecimento-pandemia, estabelecendo ao final algumas diretrizes para o manejo do traumático que possa vir a emergir em nosso trabalho clínico neste momento delicado.
Palavras-chave: psicanálise, pandemia, acontecimento, traumático, desesperar

A psicoterapia influencia através de comunicações tanto implícitas quanto explícitas. Ter dois terapeutas apresenta aos casais uma nova relação com a qual os mundos internos dos parceiros podem interagir. Isso oferece uma experiência potencialmente transformadora para a integração de mentes e relacionamentos destruídos. Após uma revisão crítica dos argumentos originalmente oferecidos no Reino Unido para o uso de dois terapeutas em psicoterapia psicanalítica de casais, e incorporando pesquisas que destacam a significância do casal parental para o desenvolvimento da capacidade triangular na primeira infância, os autores – que trabalham como coterapeutas há muitos anos – consideram e ilustram o valor da coterapia como uma forma daquilo que Ogden descreveu como ação interpretativa. A ação interpretativa se relaciona com meios não verbais, pelos quais os terapeutas comunicam o seu entendimento da dinâmica intersubjetiva inconsciente que afeta o processo terapêutico.
Palavras-chave: coterapia, psicoterapia de casais, psicanálise de casais, ação interpretativa, Tavistock Relationships

No texto “Construções em análise”, Freud afirma que a tarefa do analista envolve uma atividade de construção, originária da complementação e da integração dos restos conservados da história do analisando. Neste artigo, sustenta-se que, além do modelo de 1937, existem outras formas de construção em análise, concebidas a partir da relação da dupla analista-analisando e decorrentes do vínculo transferencial. Essas construções repercutem na simbolização primária e na elaboração de novas narrativas sobre o vazio psíquico. Propõe-se que, nos casos de vazio psíquico, tédio e apatia, o analista há de se envolver em um trabalho de construção para revitalizar a cena analítica, propiciar uma rota de simbolização do material cindido do analisando e contribuir para que a análise funcione como um espaço potencial para esse fim. Exemplifica-se tal manejo com um caso clínico da chamada síndrome da resignação.
Palavras-chave: construções, análise, vazio, resignação

Este artigo tenta fazer uma aproximação entre o teatro de Valère Novarina e a psicanálise lacaniana através da abordagem do objeto voz. No teatro de Novarina, vemos uma profusão da palavra no intuito de extrair não o seu sentido, mas a sua voz, como um pedaço de corpo que é lançado no espaço cênico. Na psicanálise, a voz desponta não como um veículo ou um instrumento da palavra, mas como aquilo que se subtrai dela na constituição do sujeito e permanece enquanto resto. O resto vocálico é o que retorna à cena, seja no teatro do dramaturgo francês, seja na própria sessão analítica, como um real do corpo que insiste em transmitir algo para além do sentido. Dessa forma, o objeto voz é o pivô dessa aproximação justamente por ser o inexorável do sujeito, a libra de carne que o sujeito perde para se constituir e retorna para o palco da vida numa insistente presença.
Palavras-chave: voz, palavra, teatro de Novarina, psicanálise

Este trabalho examina o tipo de linguagem empregada pelo analista diante de pacientes que operam com estados primordiais da mente ou, nos termos de Bion, “estados inacessíveis da mente”. A autora expõe algumas noções a respeito do funcionamento da mente primordial – estados autísticos e não integrados. Ela faz uso das teorias de Bion, Green e Tustin a esse respeito. Propõe investigar os instrumentos que o analista dispõe para penetrar barreiras autísticas, conter e transformar os estados não integrados desses pacientes, de modo a permitir que ocorra alguma comunicação. Destaca a intuição como uma das principais ferramentas que o analista emprega ao contactar esses pacientes. Introduz o modelo da prosódia do manhês – linguagem utilizada pela mãe com o seu bebê –, uma protolinguagem em que a intuição e a emoção são elementos básicos para alcançar comunicação. A autora sugere que esse tipo de linguagem seria o que ela denomina linguagem de emoção, uma linguagem que faculta o contato emocional com estados primordiais da mente. É uma linguagem distante do conhecendo (K) e pode vir a promover mudanças significativas nos estados mentais do paciente. A autora sugere que a linguagem de emoção seria análoga à noção de transformações em O (TO) – analista tornando-se a emoção (Bion, 1965/1984b). O material clínico de Luís, 18 anos, é apresentado para ilustrar questões abordadas no trabalho e possibilitar a discussão.
Palavras-chave: mente primordial, linguagem do analista, prosódia do manhês, transformações em O, linguagem de emoção

Projetos e pesquisas

A Febrapsi apoiou as federadas, Sociedades e Grupos de Estudos, a promover projetos que utilizem o dispositivo psicanalítico para a interação com a comunidade e com ações solidárias de suporte àqueles que estavam em sofrimento agudo. Entendemos que é nosso compromisso ético com o outro oferecer a psicanálise como importante instrumento de escuta, disponibilizando-nos na travessia do período crítico da pandemia. Também era, e ainda é, uma preocupação constante as graves consequências sociais e econômicas que repercutem nas vidas de uma grande parcela da população, já em situação de vulnerabilidade, como desempregados, trabalhadores informais e moradores de rua.
Palavras-chave: psicanálise, pandemia, responsabilidade social, escuta psicanalítica, solidariedade, sofrimento psíquico

A autora desenvolve uma reflexão sobre a extensão da clínica psicanalítica, mostrando como as ideias, os estudos, as discussões construídos durante muitos anos foram levando a Diretoria de Atendimento à Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (2017-2020) a colocar o pensamento em ação e se deixar penetrar pelas questões da cidade e a se relacionar diretamente com territórios diversificados. Com as demandas surgidas no período de pandemia, a autora coloca em debate como os tempos de crise provocada pelo coronavírus têm nos colocado à prova, mostrado como o processo psicanalítico pode se dar em variadas formas de encontro de subjetividades, evidenciando tanto seus desafios como sua eficácia e potência.
Palavras-chave: clínica extensa, comunidade, instituição, escuta psicanalítica, pandemia

História da psicanálise

Neste ensaio, o autor entrecruza a trajetória profissional de Virgínia Leone Bicudo, promotora de iniciativas de institucionalização e divulgação da psicanálise no país e autora de um estudo sociológico pioneiro acerca das relações raciais no Brasil urbano e contemporâneo, e aspectos da constituição sociopolítica e cultural da sociedade brasileira.
Palavras-chave: racismo, psicanálise, modernismo, sociologia, pioneirismo

Esta é uma transcrição livre da exposição do autor na homenagem a Virgínia Leone Bicudo organizada pela Sociedade de Psicanálise de Brasília, em 21 de outubro de 2020, com o título Olhares sobre Virgínia Leone Bicudo. No texto, a partir de uma posição de estrangeiro, de onde foi especialmente convocado, o palestrante enumera algumas contribuições psicanalíticas da homenageada e, com base em algumas articulações de suas ideias, reflete sobre certos aspectos da vida científica e institucional da psicanálise atual, discutindo também sua relação problemática com a sociologia em um contexto global tenso e atravessado por múltiplas variantes de segregação.
Palavras-chave: preconceitos, teoria psicanalítica, ideologia

Resenhas