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Volume 56 nº 3 - 2022 | Formação do analista

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Como já é de conhecimento público, o nome psicanálise virou alvo de disputa, tal como uma grife que pudesse ser usada conforme interesses de toda sorte. Esse nome tornou-se valioso por conta da obra daquele que fundou essa disciplina de pesquisa científica e de tratamento de sofrimentos psíquicos, Sigmund Freud, e da obra de outros grandes pensadores, que con­tinuaram esse árduo trabalho a fim de expandir tal campo de conhecimento e aperfeiçoar os cuidados oferecidos àqueles que procuram ajuda para suas angústias e neuroses. Entre esses importantes pensadores, no âmbito inter­nacional, ressaltam-se nomes como Abraham, Ferenczi, Klein, Anna Freud, Winnicott, Bion, Lacan, Rosenfeld, Mannoni, Dolto etc. No Brasil, figuras notáveis como Durval Marcondes, Darcy de Mendonça Uchôa, Adelheid Lucy Koch, Virgínia Leone Bicudo, Lygia Alcântara do Amaral, Frank Philips, Laertes Moura Ferrão, Gecel Sterling, Judith Andreucci, Isaías Melsohn, Pérsio Nogueira, José Longman, José Américo Junqueira de Mattos, Suad Haddad, Lenise Azoubel, Luiz Antonio Bocchino de Toledo, Mário e Cyro Martins, David Epelbaum Zimmermann, Alberto Abuchaim, Antônio Bento Mostardeiro, Aloysio Augusto d’Abreu, José Hamilton Gonçalves de Farias, Werner Walter Kemper, Fábio Leite Lobo, Inaura Carneiro Leão Vetter, José Lins de Almeida, Lenice Sales, Paulo Marchon, Maria José de Andrade Souza, Sonia Lobo, entre outros, se destacaram no estabelecimento, em nosso país, desse nome de grande prestígio, por conta da seriedade e da consistência do que produziram. Certamente omito nomes importantíssimos pela falta de espaço neste editorial e, por isso, peço-lhes vênia.

Estabelecido seu valor, o nome psicanálise passou a ser cobiçado pelos grupos mais variados, incluindo entidades religiosas, num completo choque com as ideias nucleares de seu fundador, Freud, tão avesso a religiões e dogmatismos.

Como aponta Bion no livro Atenção e interpretação (1970/2006), um dos modos de despojar um pensamento de sua capacidade de provocar turbu­lência e disrupção pelo impacto do que revela é apropriar-se dele e privá-lo de seu conteúdo, dessa forma tornando-o inócuo ou a serviço de forças que ele poderia abalar – assim como aconteceu com o próprio ensinamento de Jesus, que amiúde foi apropriado pelo establishment religioso, distorcido e transfor­mado em instrumento de doutrinação, muitas vezes em completa desconexão com o que transmitiu alguém que foi preso, torturado e morto porque suas ideias afrontavam exatamente as instituições religiosas e o uso mercantilista delas em seu tempo (vide a fúria de Jesus no uso dos templos/sinagogas como centro de comércio e barganha). Certamente nem todo religioso ou instituição religiosa funciona dessa maneira. Contudo, o nome de Jesus, esvaziado de seu teor de ensinamentos originais, converteu-se, através dos tempos, em pode­rosa fonte de rendimentos e poder político. O mesmo pode ser dito de outras correntes religiosas que se valem do nome de seus fundadores para os mais diversos fins, muitas vezes pouco correspondentes com o que propagaram seus mentores.

Aparecem, por conseguinte, pessoas ávidas a portar o título de psicana­lista e a estabelecer supostas formações de psicanalistas sem que seja necessá­rio qualquer contato com a coisa real. “Formações” em psicanálise são ofere­cidas pela internet como se fossem produtos de varejo, como palha de aço ou xampu. Há também os que querem obter o título de instituições sérias sem se submeter aos trâmites requeridos, como se alguém pudesse trabalhar com física quântica sem ter aprendido cálculo e muito menos física newtoniana. As instituições de peso teriam, segundo eles, de adaptar-se aos seus desejos de rápida qualificação. Alguns acreditam que já a possuem. À instituição caberia apenas corroborar o “notório saber” que já têm com o título que lhes seria devido desde sempre. Não se dão conta das questões edípicas impregnadas em tais atuações, das quais pensam tudo saber, porém não as reconhecem.

Neste número contamos com importantes aportes sobre esse tema tão fundamental. O artigo de Harriet Wolfe, presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), destaca o papel central da profunda análise de formação do analista, que reverbera não só na sua prática de consultório como também nos seus atendimentos e colaborações em trabalhos sociais. Hemerson Ari Mendes, presidente da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi), apre­senta sua trajetória pessoal no tornar-se analista e menciona a mudança de um vértice religioso para um vértice científico. O trabalho de João Baptista Novaes Ferreira França, decano da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), traz reflexões e questionamentos oriundos de sua longa experiência. O de Ana Clara Duarte Gavião baseia-se em consistentes e apro­fundadas pesquisas em que sustenta os fundamentos do modelo Eitingon. Seguem-se artigos de Christiane Vecchi da Paixão, Alceu Casseb, e Adriana Simões Marino, Augusto Ribeiro Coaracy Neto e Érico Andrade.

Na seção “Temas livres”, temos a colaboração de Ana Maria Stucchi Vannucchi, que aborda a importância dos atendimentos presenciais em con­traponto aos realizados virtualmente; de Sandra Nunes Caseiro; e de Marcus Rodrigues Jacobina Vieira e Elisa Maria de Ulhôa Cintra.

Para finalizar apresentamos a entrevista com Paulo Bacha, da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul, que relata sua trajetória profissional e sua relação com o desenvolvimento da SPMS.

Considero que as contribuições presentes neste número são essenciais para a preservação de nossa ciência e atividade profissional, tão ameaçada na atualidade por usos e pretensões espúrios, que deixariam Freud estupefato.

 

Referências

Bion, W. R. (2006). Atenção e interpretação (P. C. Sandler, Trad., 2ª ed.). Imago. (Trabalho original publicado em 1970)

Claudio Castelo Filho

Editor

Carta-convite

Temáticos

A psicanálise da ipa mantém a tradição de uma formação rigorosa e de criatividade, bem como de abertura à aplicação do pensamento psicanalítico às questões urgentes dos tempos contemporâneos. Uma abordagem tripartite para a formação foi desenvolvida, e um consenso internacional foi alcançado, ao longo de mais de 100 anos de esforço acadêmico e prática clínica. Compõe-se de análise pessoal, currículo didático e vários atendimentos analíticos supervisionados. Essa experiência educacional intensiva prepara analistas em formação para tratar com responsabilidade os complexos problemas emocionais e cognitivos de pessoas em sofrimento agudo e de longa data. Leva a uma compreensão profunda das raízes do conflito, sejam elas sociais ou individuais. Um psicanalista formado de acordo com esses padrões internacionais cuidadosamente desenvolvidos está preparado para escutar de maneira plena e tolerar afetos fortes e, às vezes, insuportáveis no contexto de um relacionamento terapêutico complexo, e avaliar as necessidades e o potencial de melhora e mudança de um paciente. O aumento da utilização de novas tecnologias para ampliar os serviços de formação e tratamento requer gestão cuidadosa e atenção ao controle de qualidade. A vantagem, enorme e única, dada pelo contato pessoal deve ser preservada sempre que possível, tanto na formação quanto na prática.
Palavras-chave: formação psicanalítica, prática ética, padrões internacionais, psicanálise social, psicanálise clínica

O autor descreve a sua aproximação da psicanálise e o seu processo de tornar-se psicanalista. Um sonho com sentidos próprios e ritmo peculiar. Entretanto, apresenta paralelos com os universais enfrentamentos, necessidades de transformação e elaborações dos primeiros analistas. Comenta sobre o tripé análise pessoal, seminários e supervisões, acrescido das vivências/trabalhos institucionais, como palco para elaborações, mas também para (re)vivências de antigas/novas questões de um processo interminável que é o viver/analisar(-se).
Palavras-chave: psicanálise, formação psicanalítica, sonhos, recordações, elaborações

O autor parte do trabalho de Strachey sobre a ação terapêutica da psicanálise como objetivo e descrição do processo de análise. Pensa que esse conceito se aplica também ao analista, em sua análise de formação e quando for atender pacientes. Considera a importância da transferência e contratransferência no encontro analítico e comenta aspectos institucionais da formação analítica, como a procura de uma cidadania analítica, os conteúdos manifestos e latentes no dia a dia e nos regulamentos da instituição, e a presença de terceiros nas análises e supervisões. Destaca ainda questões de análise pessoal com sugestões, ajustes e perspectivas quanto à formação.
Palavras-chave: ação terapêutica da psicanálise, transferência e contratransferência, formação psicanalítica, cidadania psicanalítica, análise pessoal

Considerando a fundação da ipa por Freud e colaboradores, em 1910, uma decorrência de preocupações éticas relacionadas à identidade clínica da psicanálise, e não de propósitos elitistas, autoritários e infantilizadores como se pode supor, a autora entende o modelo imersivo (alta frequência de sessões), regulamentado institucionalmente para a formação do psicanalista, tanto para sua análise pessoal como para sua própria prática clínica, como facilitador do desenvolvimento da função psicanalítica e como cuidado preventivo à psicanálise selvagem, praticada durante toda a história do movimento psicanalítico e agora evidente no Brasil, no lamentável exemplo do bacharelado em psicanálise, no formato online, em processo de aprovação pelo mec. Quanto ao argumento de que padrões para a formação estariam contrariando a natureza singular e subversiva do método da psicanálise, a autora reverte essa perspectiva para ponderar que a opção pelo modelo imersivo institucionalizado favorece sua singularidade e seu potencial de subversão, sugerindo alternativas para obter recursos financeiros e responsabilidade social.
Palavras-chave: formação psicanalítica, transmissão da psicanálise, modelo Eitingon, clínica psicanalítica, responsabilidade social

Sabemos que a transferência confere poder ao psicanalista, sendo ao mesmo tempo motor e obstáculo de uma análise. Cabe a ele não abusar desse poder, não exercer o poder sugestivo ou doutrinador favorecido pela regressão transferencial. Quando se trata de fazer florescer um psicanalista, uma formação analítica está livre desse risco? Como integrar a pré-história do termo formação, relacionada à ideia de reprodução por semelhança, com um ideal de formação que respeite a individualidade e a singularidade na aparente uniformidade de uma formação dentro de um instituto de psicanálise?
Palavras-chave: transferência, formação analítica, função do psicanalista, abstinência, poder

Em uma espécie de sonho acordado, o autor procura conversar sobre alguns aspectos que envolvem a formação psicanalítica. De maneira informal, busca tornar o tema algo que conjuga opiniões diversas, simetrias de posições, oposições que não indicam necessariamente conflitos e até entendimentos, quando cabem.
Palavras-chave: formação, análise do analista, instituição, ética

Neste trabalho, os autores buscam elencar alguns pontos sobre o tema da ampliação do acesso à formação psicanalítica, tendo como disparador a recente proposta de uma graduação em psicanálise numa instituição privada de ensino superior no país. Abordam o lastro elitista da psicanálise como brecha para iniciativas oportunistas atuais, que visam se apropriar da psicanálise no bojo de um mercado de ensino. Ressaltam que o tripé a ser contemplado na formação psicanalítica envolve o pagamento em dinheiro e, dessa forma, assinalam a importância de políticas de acesso e permanência nos tradicionais espaços de formação e iniciativas de tratamento público. Numa lógica interseccional, trabalham questões em torno das desigualdades de classe social, além dos entraves em termos de linguagem, da implicação subjetiva e da crença em torno da universalização de uma terapia como forma de produção de saúde mental pública.
Palavras-chave: acesso, elitismo, formação psicanalítica, mercado de ensino

Temas livres

A autora propõe uma reflexão sobre as diferenças entre o atendimento online e o presencial. Argumenta que a presença do corpo e da realidade sensorial é necessária para o acesso às dimensões mais primitivas e à realidade psíquica dos analisandos, assim como ao objeto psicanalítico criado pela dupla analítica. Ilustra essa proposta com fragmentos de sua experiência clínica. Destaca a postura ética que, além de investigar as novas formas de atendimento, permite ao analista examinar como se sente mais presente psiquicamente no encontro com os pacientes.
Palavras-chave: corpo, experiência emocional, realidade psíquica, realidade sensorial, ética

Partindo da proposta de Bion da mudança de vértice do espectro mental consciente ↔ inconsciente para o espectro mental finito ↔ infinito, e fazendo aproximações com textos religiosos e místicos, a autora, através de duas vinhetas clínicas, procura demonstrar a realização, durante a sessão de psicanálise, dos conceitos at-one-ment e tornar-se. A ocorrência de at-one-ment e tornar-se favorece a aproximação com a verdade da experiência emocional do instante, apontando para a possibilidade de um futuro criativo, sendo o que se é. Sua ocorrência emerge espontaneamente na sessão, e é favorecida quando o analista alcança em sua técnica psicanalítica o estado de sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão.
Palavras-chave: at-one-ment, tornar-se, finito-infinito, técnica psicanalítica

Os autores tecem considerações sobre a importância da voz na construção do narcisismo e nas primeiras etapas de constituição do psiquismo, um elemento que deixa marcas indeléveis nos processos emocionais primitivos do indivíduo. Traçam um paralelo entre esse período de experiências primitivas e sua atualização no processo analítico através das situações de transferência e regressão em análise. Em alguns casos, como os que apresentam neste trabalho, a vinculação do paciente com a voz do analista surge como indicativo de aspectos regressivos que se tornaram importantes aliados no trabalho analítico com esse paciente. Enfatizam o papel da melodia da voz do analista como elemento reconstrutivo e antitraumático.
Palavras-chave: regressão, transferência, clínica psicanalítica, simbolização

Entrevista

Resenhas