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Volume 50 nº 4 - 2016 | Silêncio

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Ao final do documentário Allende, meu avô Allende, a diretora Marcia Tambutti Allende (2015) diz que percebeu que foram as dúvidas e questionamentos sobre os fatos que marcaram a história de sua família e a de seu país que romperam com o silêncio doloroso que envolvia a todos. A recusa em falar, que os protegia de lembranças traumáticas, também os impedia de uma proximidade afetiva. Com o seu filme, ela conta, conseguiu fazê-los ir além – como indica a palavra Allende; conseguiu abrir uma comunicação entre eles que não fora alcançada até então. Pois o silêncio simultaneamente escavou e denunciou o fosso da recusa de um sentido insuportável.

De fato, o historiador Michael Pollak (1989), em seu estudo com sobreviventes de campos de concentração stalinistas e nazistas, mostra que o silêncio sobre o passado não conduz ao esquecimento. Pelo contrário, ele mantém a resistência da sociedade civil contra o discurso oficial. Mas, como são vivências “indizíveis”, elas se organizam em uma zona de sombra, de não ditos, de alusões e metáforas que são moldadas pela angústia de não encontrar uma escuta.

Fundamental, portanto, a escuta do silêncio. Para isso, o analista primeiramente silencia sobre si mesmo. Pano de fundo sobre o qual o paciente pode tecer seu tecido projetivo e transferencial, o silêncio do analista “seria quase um a priori da interpretação” (Green,1979, p. 10). Ele tem função estruturante e é parte fundamental do enquadre. Acolhe e convida à abertura aos processos do funcionamento inconsciente. E muitas vezes funciona como ato interpretativo.

Não é à toa que, em 1893, Emmy von N. pede a Freud (1969a) que se cale e a deixe falar sem perguntas ou interrupções.

Experiência cada vez mais rara para o homem contemporâneo e tema pouco abordado na literatura psicanalítica, o silêncio do paciente por vezes é entendido como defesa ou resistência à regra fundamental. Mas também pode ser o momento de espera do que está por vir. E há o silêncio do luto, do autismo, do paciente em elaboração – este, compartilhado com o analista.

Portanto, há silêncios e silêncios. Como nos indica Barthes (2003) sobre a diferença entre tacere, silêncio da fala, e silere, silêncio da natureza e de divindade. Enquanto o primeiro está ligado ao problema do poder, como o direito à palavra e o direito ao calar-se, o segundo evoca metáforas como o ovo que ainda não chocou, a lua em declínio…

E há o silêncio do não dito, sobre o qual se prefere calar, e aquele sobre o que não se sabe, o recalcado. Há o silêncio do vazio de representação, da impossibilidade de estabelecer relações (Green, 2008). A figura shakespeariana da “silenciosa Deusa da Morte”, citada por Freud (1913/1969, p. 379), e o mutismo inerte da pulsão de morte.

Por outro lado, soberano o direito do paciente de não se comunicar. O silêncio aqui como parte fundamental do processo de aquisição da capacidade de estar só e que merece ser respeitado pelo analista. Em espera para que o paciente “descubra criativamente” aquilo que o analista poderia apressadamente interpretar (Winnicott, 1963/1990, p. 172).

É essa a proposta deste número da Revista Brasileira de Psicanálise: uma reflexão sobre o silêncio em seus diversos sentidos, na fala de nossos colaboradores.

 

Silvana Rea

Editora

 

Referências

Allende, M. T. (Dir.). (2015). Allende, mi abuelo Allende [Documentário]. Chile: Errante.

Barthes, R. (2003). O neutro (I. C. Benedetti, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.

Freud, S. (1969a). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 2,pp. 13-370). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893)

Freud, S. (1969b). O tema dos três escrínios. In S. Freud,Edição standard brasileira das obras psicológicas completas

de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12,pp. 365-382). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)

Green, A. (1979). Le silence du psychanalyste. Topique, 23, 5-25.

Green, A. (2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea (A. M. R. Rivarola et al., Trads.). Rio de Janeiro: Imago.

Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15.

Winnicott, D. (1990). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad., pp. 163-174). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963)

Em pauta

Como poderá ser visto no decorrer deste texto, será realizado um breve percurso pela temática do silêncio,
visando equacionar alguns postulados teóricos e clínicos, centrados na dualidade pulsional – morte e vida –, de
modo a possibilitar uma escuta metapsicológica para ele. Nesse processo, busco desfazer a ideia de que o silêncio é decorrente, exclusivamente, da pulsão de morte, o que julgo um equívoco. Para realizar tal meta, estabeleço a diferença entre pulsão de morte e pulsão de destruição – resgatando sua vinculação com a discórdia – e proponho que a ruptura do silêncio se dá no embate pulsional. Nesse sentido, advogo que o silêncio mais absoluto está no que poderíamos chamar de fusão incompleta – pulsão de destruição precariamente ligada pela libido – e/ou na fusão completa – pulsão de destruição excessivamente ligada pela libido. Portanto, o silêncio é decorrente da ausência de diferenças significativas entre as forças pulsionais, o que implica a morte do desejo e/ou a não construção deste. Essa ausência contribui com a homeostasia psíquica: baixo grau de entropia psíquica.
Palavras-chave: silêncio; Eros; pulsão de destruição; discórdia; fusão; desejo.

O artigo propõe que um tipo específico de silêncio do analisando funcionaria como uma metonímia, ou seja, um
elemento semântico seria substituído por outro, que tem uma relação objetiva de continuidade material ou conceitual com o conteúdo pensado. Foram retomados alguns conceitos de textos pré-psicanalíticos (Sobre a concepção das afasias), do Projeto de uma psicologia e de A interpretação dos sonhos, além de conceitos como representação de coisa, representação de palavra, recalque, condensação e deslocamento.
Palavras-chave: silêncio; metapsicologia; metonímia.

A importância da arte de esperar é uma das contribuições mais significativas de Winnicott para a clínica psicanalítica. Em trabalho anterior, propus que a capacidade de esperar implica a crença de que o objeto será encontrado; assim, a espera só é possível quando há esperança. Ora, a espera-esperança é também condição essencial para a capacidade de sonhar. O ato antissocial é um grito de socorro, e ele é, portanto, um sinal de esperança; em alguns casos, porém, quando a esperança se quebra, caímos no campo do “colapso do sonhar”. Em “On lying fallow”, M. Khan abordou com precisão e sensibilidade o lugar primordial do esperar e do silêncio na clínica psicanalítica e na vida em geral. Esse é o tema que retomarei aqui.
Palavras-chave: espera; esperança; repouso; sonhar; silêncio.

Tomando dois casos clínicos como eixo condutor, discute-se a relação necessária entre processos de adoecimento psíquico e estratégias terapêuticas. O primeiro caso se caracteriza por um psiquismo tomado pelo barulho do embate ininterrupto com seu objeto interno/externo; o segundo, pelo silêncio de um mundo interno desertificado. A compreensão dos respectivos processos de adoecimento determina duas estratégias terapêuticas distintas: desativação do binômio angústia-defesa no primeiro caso e revitalização psíquica no segundo.
Palavras-chave: processo de adoecimento; estratégias terapêuticas; desativação; revitalização.

A partir de um fragmento de sua experiência pessoal, a autora desenvolve algumas ideias acerca do silêncio. São
abordados três autores dentro da psicanálise: Wilfred Bion, André Green e Jean-Claude Rolland. Com base nas
contribuições deles, a autora procura ampliar a reflexão sobre o silêncio.
Palavras-chave: silêncio; fala; imagem; sonho; linguagem.

Partindo do pressuposto de que a transmissão psíquica transgeracional é constitutiva do psiquismo do indivíduo, o presente artigo tem como objetivo discutir sobre os silêncios transgeracionais, sobre a falta da palavra e sobre o legado entre gerações, que, sendo silenciado por vergonha ou pelo excesso de dor e não podendo ser transmitido aos descendentes, produz consequências significativas nas gerações seguintes. O trabalho baseia-se na história de uma mulher, terceira geração de imigrantes que se refugiaram no Brasil.
Palavras-chave: transmissão psíquica transgeracional; cultura; catástrofe; forclusão; cripta.

Diálogo

Neste trabalho, o autor aborda o tema do silêncio a partir do exemplo de uma obra de arte (um filme) e de uma vinheta clínica. Explora os aspectos tanáticos e libidinais do silêncio e seu valor tanto na arte quanto na clínica. Compreende e considera que a arte é um parâmetro fundamental para capturar de forma mais plena os processos anímicos do ser humano. Para tanto, recorre a vários poemas e ao filme O piano. Por sua vez, utilizando-se de uma situação clínica com uma criança que precisava ficar em silêncio no começo da sessão, trata de demonstrar como também a análise é uma forma de arte, que envolve o desafio permanente e renovado
sobre as intervenções do analista, ora verbais, ora silenciosas, a partir da experiência da não integração. Também com base nessas questões, dedica-se a refletir sobre o papel do espelho e a participação do analista em suas próprias implicações emocionais na sessão.
Palavras-chave: silêncio; vida; morte; arte; não integração; espelho.

Temos nos preocupado com a criança que não fala tentando colocar palavras em sua boca. Mas quanto mais as forçamos, mais firmemente suas bocas podem se fechar. Às vezes, nos colocamos em posição de ensinar a criança a falar. Por fim, reconhecemos que uma relação não se refere a palavras; trata-se do desejo de alcançar o outro, oferecer-se ao outro, para encontrar algum sentido em conjunto, para compreender quais são os obstáculos à formação de um bom relacionamento com os outros. As palavras da criança podem
ser úteis em uma terapia, mas elas não são o ingrediente essencial. Este texto vai examinar as defesas autísticas em crianças com dificuldades alimentares, mantendo o foco na comunicação além das palavras.
Palavras-chave: onipotência primitiva; regressão; rejeição; trabalho parental; aflição.

Ponto de vista

Reflexão sobre diversos aspectos do silêncio, tanto na filosofia quanto na música.
Palavras-chave: silêncio; som; verdade; conhecimento; contemplação; sentido.

Outras palavras

A autora propõe que o enfrentamento positivo das perdas da menopausa depende da capacidade de elaborar lutos, adquirida durante toda a vida precedente – o luto primário, o luto edípico, o luto da puberdade, o luto da vida de solteira, assim como os pequenos lutos da vida cotidiana. Isso exige um contato constante com a realidade externa e interna, portanto contato com a dor, e disponibilidade para trabalho psíquico. Apresenta os sonhos de luto de uma paciente de 55 anos em que ela elabora o luto pela perda do corpo e da sexualidade da juventude, da fertilidade biológica e dos filhos, que saíram de casa para formar suas próprias famílias. Entre esses, há um sonho de recapitulação, em que a paciente integra vários períodos de sua vida.
Palavras-chave: sonho; menopausa; luto; negação.

Neste artigo, a autora investiga a respeito das especificidades da tarefa analítica, levando em conta que essa é uma tarefa na qual o seu principal instrumento de trabalho é a pessoa do analista como um todo, a sua personalidade, a sua mente e as teorias utilizadas por ele. A autora desenvolve a ideia de que as teorias do analista necessitam estar incorporadas à sua pessoa como um todo, à sua mente. Recorre à teoria das transformações como uma teoria de observação do fenômeno mental na sessão analítica, detendo-se
particularmente nas transformações em O (tornando-se a realidade). Sugere que as teorias do analista poderão
fazer parte do campo das transformações em O e relaciona essa experiência a um momento de fruição estética, um momento que pode ser apenas vivenciado, e não traduzido em palavras. Essa experiência poderá, eventualmente, permitir que o paciente se aproxime de um estado em uníssono consigo mesmo e que mudanças importantes ocorram. O material clínico apresentado irá ilustrar essas questões e estimular a discussão.
Palavras-chave: mente do analista; personalidade; transformações em O; intuição; fruição estética.

Este artigo expõe algumas das conclusões a que temos chegados em nossa pesquisa sobre a relação entre a
psicose, o supereu e a noção lacaniana de Outro. Com isso, objetivamos realizar algumas considerações acerca do conceito de supereu a partir do caso Schreber. Tomando esse caso como substrato clínico, partindo do paradoxo que se ergue no momento em que encontramos manifestações imperativas na psicose – fenomenologicamente superegoicas – e da condição de não ter havido a dissolução do complexo de Édipo em tal estrutura, questionaremos sobre a possibilidade ou não de falarmos de uma instância superegoica no âmbito das psicoses, bem como sobre as condições para tanto.
Palavras-chave: psicose; supereu; caso Schreber.

Este artigo tem como objetivo demonstrar que a relação psicanálise-universidade, também no Brasil, tem sua gênese no próprio movimento de invenção da psicanálise por Sigmund Freud. Parte-se da hipótese de que a presença da psicanálise na universidade brasileira é concomitante à introdução do discurso psicanalítico no Brasil, e que a universidade sempre foi uma poderosa via de difusão desse campo. Apresenta-se a trajetória da psicanálise na universidade brasileira desde o início do século XX pela via da medicina, bem como sua interação com diversas áreas, sobretudo a psicologia. A inserção da psicanálise no Brasil encontra eco no cenário atual da universidade, no qual vários campos reivindicam a psicanálise e são reivindicados pelos praticantes dela.
Palavras-chave: psicanálise no Brasil; história da psicanálise; estudos sobre a universidade.

Resenhas