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Volume 55 nº 2 - 2021 | A escrita da experiência clínica e seus dilemas na atualidade

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Antes de mais nada, agradeço a colaboração da minha preciosa equipe editorial, que tem feito um trabalho árduo para que a Revista Brasileira de Psicanálise esteja sempre em busca do maior parâmetro de qualidade e de expressão científica no campo da psicanálise. Permanentemente a postos estão Sonia Maria Camargo Marchini, Adriana Maria Nagalli de Oliveira, Cleusa Maria Gouveia Nery, Ernesto René Sang, Maria da Graça Câmara Barone, Maria Tereza Labate Mantovanini, Mariana Ali Mies, Osvaldo Luís Barison, Péricles Pinheiro Machado Jr. e Regina Lacorte Gianesi. Minha gratidão especial a Elsa Vera Kunze Post Susemihl, editora associada, cuja perspicácia e incansável trabalho, com notável dedicação e atenção aos mínimos detalhes, fazem do nosso empreendimento uma atividade de muito enriquecimento e ampliação.

Este número foi dedicado à prática clínica e a questões relativas a sua escrita. Destacamos esse tema, mas o consideramos um Leitmotiv com variações, que sempre permeará nossa pauta editorial. Contamos com a submissão de trabalhos vindos de todas as partes do Brasil para que ouçamos aquilo que estão constatando e desenvolvendo os colegas psicanalistas deste vasto país. Interessa-nos, mormente, conhecer o trabalho dos psicanalistas brasileiros, que estão entre os que têm uma das maiores atividades na prática de atendimento em consultório e atualmente também por meio eletrônico, em decorrência da calamitosa pandemia que assola o planeta e, de forma particularmente trágica, o nosso país. Adianto aqui os temas dos dois próximos números: Impasses e Supervisão, respectivamente.

Entre as questões que nos interessam, e são uma constante, estão não somente a descrição do que acontece nos atendimentos e a reflexão sobre estes, mas como se desenvolve uma escrita eficaz e comunicativa daquilo que lá é verificado, visto que, diferentemente do que se dá nas ciências naturais, não é possível replicar o “experimento” ocorrido nos consultórios ou nas sessões
online, pois, se o objeto de nossas investigações não pode prescindir da observação do que se passa no campo sensorial, o que é realmente relevante captar e transmitir é o que ocorre no campo psíquico não sensorial, na mente, no espírito, na alma (não dou conotação religiosa aos dois últimos termos; apenas busco um modo de denominar aquilo que efetivamente importa captar em
psicanálise). Faço aqui um paralelo com o que ouvi há décadas numa entrevista com a grande pianista franco-brasileira Magda Tagliaferro, ao comentar sobre a excessiva preocupação dos jovens músicos com a técnica. Ela disse algo aproximadamente assim: “Esses jovens estão tão preocupados com a técnica que acabam se esquecendo da música”.

Não é que a técnica não tenha importância, e aqui já faço referência a algo contido nos artigos de Alexandre Socha e Luca Trabucco, autores que traçam um paralelo entre o que ouvem em sua prática clínica e a escuta/escrita musical.

Sem técnica de notação, não haveria como preservar apreensões de experiências psíquicas e transmiti-las. O relevante, contudo, não seriam propriamente as notações musicais, mas sua função, ou seja, se teriam a capacidade de transmitir a música para seus leitores ou para seus intérpretes – algo que não tem realização no campo sensorial, mas de que se pode ter um vislumbre por meio da notação ou da performance de um musicista de talento ao ler uma partitura, ou ainda antes, no caso de um compositor, ao ouvir a música e conseguir uma forma eficaz de registrá-la e transmiti-la.

Essa questão da notação de nossa atividade psicanalítica, que possa conter invariantes reconhecidas por todos que trabalhem em nosso campo, foi uma das principais preocupações de Freud – cujo único prêmio ganho em vida foi o Goethe, de literatura – e de Bion – de forma explícita, durante toda a sua obra, na sua busca de uma language of achievement, expressão que não tem tradução correspondente em português, mas da qual se tenta uma aproximação com linguagem de êxito, linguagem de consecução, linguagem de alcance, entre outras. Como se pode ver, até para traduzir uma expressão de uma língua para outra já nos defrontamos com dificuldades. Por isso, consideramos que esse tema é de incontestável importância para o desenvolvimento
de nossa ciência, que tem tanta relação com o campo das artes e da estética.

Entre os colaboradores deste número está a destacada psicanalista americana Annie Reiner, profunda conhecedora da obra de Bion, com quem conviveu de forma intensa no período em que ele esteve na Califórnia, onde ela mora. Annie também é uma talentosa poeta e pintora, escreveu importantes livros sobre sua atividade psicanalítica e faz parte de uma família de destacados
produtores e atores do cinema americano.

Temos em seguida a contribuição de três destacados colegas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o psicanalista Claudio Cohen, Gisele Gobbetti e Reynaldo Ayer de Oliveira, que estão ligados ao Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (Cearas), do Instituto Oscar Freire da fmusp. Eles escrevem um relevante trabalho sobre temas vitais para nós, a ética e a estética, embasados na obra de Freud e de Klein.

Os trabalhos temáticos são os de Alexandre Socha, Berta Hoffmann Azevedo e Luiz Eduardo Prado. Alexandre e Berta têm em comum a busca de dar representatividade a algo que não encontrou caminho para essa dimensão: ele, ao considerar a musicalidade da experiência, mais que seu conteúdo; ela, ao verificar o circuito da dor e sua relação com o masoquismo erógeno. Luiz Eduardo Prado traz, com base em sua experiência de atendimentos em um hospital na França, o trajeto de Winnicott, cujos livros foram escritos a partir de emissões radiofônicas feitas durante a Segunda Guerra Mundial, no período em que as crianças foram evacuadas dos centros urbanos e separadas dos pais.

Nos trabalhos de tema livre, deparamo-nos com o artigo de Anne Lise Di Moisè S. Scappaticci e Marina F. R. Ribeiro, que fazem um intenso estudo sobre o objeto psicanalítico tal como concebido por Bion. Em seguida, vem a contribuição do colega italiano, estabelecido em Gênova, Luca Trabucco, que reflete sobre a importância do setting para além de sua dimensão material, e sua relevância como espaço em que o ser e o sonhar seriam inseparáveis – para ele, o setting cria o espaço para ouvir a música e fazê-la ressoar no analista. Gisele Milman Cervo e Silvia Abu-Jamra Zornig propõem que, ao sentir-se desalojado em seu corpo, o indivíduo necessita de rearranjos sensoriais para que haja reapropriações subjetivas, para que assimile um senso de identidade e de alteridade. Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo e Henrique Uva do Amaral tratam da mudança do enfoque na questão edípica da teoria da sedução para o enfoque da realidade psíquica. Cassandra Pereira França, apoiando-se em Freud e em Ferenczi, lida com a dor psíquica ao considerar a migração das imagens para o campo da palavra, e aqui também há uma analogia musical.

Boa leitura para todos!

Intercâmbio

A autora examina o controverso relacionamento entre o conceito O de Bion e o misticismo. Acesso a O representa essencialmente um profundo nível de intuição que abarca tanto o território do sonhar quanto o do pensar, uma espécie de “sonho acordado”. Controvérsias em torno dessas ideias refletem a crença de alguns analistas de que o misticismo é antitético à ciência, apesar de Bion afirmar claramente que “os Místicos aparecem em qualquer religião, ciência, tempo ou lugar”. A autora faz uma clara distinção entre o significado religioso de “místico” e o do ponto de vista psicanalítico de Bion do místico, uma distinção evidente no seu uso do termo “místico” como sinônimo de “gênio” ou “pessoa excepcional”. Tanto nas artes quanto nas ciências, essa intuições são estados de mente cultivados por disciplina, trabalho árduo e paixão pela verdade. Exemplos clínicos ilustram essas ideias.
Palavras-chave: Bion, “O”, místico, gênio, sonhos

Interface: Universidade

A proposta deste trabalho é rever os conceitos de ética, moral e estética, e articulá-los com os princípios da bioética das relações, que carregam intrinsecamente princípios psicanalíticos. O ser humano constrói seus valores morais no processo de socialização. A estética como qualidade do sentir, proposta por Freud, não passa pela razão. O senso estético é o que nos possibilitará interpretar o mundo externo e os valores morais ou da cultura. Enquanto “a moral vem de fora, a ética parte de dentro”. Assim, diferenciamos os conceitos respectivamente como funções do superego e do ego. A forma ética de lidar com os conflitos das relações humanas dar-se-á com um acordo entre a autonomia individual e a responsabilidade social. A máxima da bioética das relações é a “autonomia responsável”. O pensamento ético é a conciliação entre os valores morais internalizados e os sentimentos gerados pela percepção do indivíduo sobre a realidade frente às relações humanas. Assim, diante dos conceitos expostos, concluímos que a ética é a estética da moral.
Palavras-chave: ética, moral, estética, psicanálise, bioética das relações

Temáticos

O artigo apresenta a captura no circuito da dor como um modelo para a escuta e o manejo de situações clínicas em que o enquadre analítico esbarra na tendência imperiosa à redução de tensão própria da fuga da dor, num esforço de inativar o traumático. A busca de fundamentos metapsicológicos resgata o conceito de dor e de masoquismo erógeno primário, a fim de interrogar as condições analíticas para favorecer uma mínima ligação capaz de propiciar a suportabilidade da inevitável tensão da existência psíquica.
Palavras-chave: dor, masoquismo erógeno, limite

Partindo de quatro breves situações clínicas, o trabalho propõe uma discussão sobre a criação de padrões comunicativos entre analista e analisando. Esses padrões dizem respeito ao dialeto próprio que se desenvolve em cada dupla no decorrer de um processo psicanalítico. A maneira como a sessão de análise é organizada pelo analisando traz ao campo analítico formas estéticas e representacionais singulares, segundo uma lógica inconsciente particular. A exploração do fenômeno em questão é feita em diálogo, entre outros, com os conceitos de idioma (Bollas) e uso do objeto (Winnicott), levando por fim a uma aproximação preliminar entre a escuta psicanalítica e a escuta musical. Tal aproximação é assumida como modelo na captação de determinados aspectos formais do encontro clínico.
Palavras-chave: sessão psicanalítica, idioma pessoal, uso do objeto, formas musicais

A partir da experiência de atendimento telefônico, o autor aborda outras, literárias e psicanalíticas, de uso do telefone e do rádio, aqui entendido como telefonema a um grande número de pessoas. Após aludir às maneiras inaugurais de considerar o telefone, sobretudo com Roland Barthes e Marcel Proust, estuda as experiências de Donald Winnicott e Walter Benjamin.
Palavras-chave: psicanálise, telefone, clínica, Donald Winnicott, Walter Benjamin

Temas livres

Este artigo trata da evolução do conceito de objeto psicanalítico no decorrer da obra de Wilfred R. Bion, trazendo questionamentos clínicos e ilustrações com trechos de sua autobiografia e uma vinheta clínica.
Palavras-chave: metapsicologia, autobiografia, experiência emocional, psicanálise

Neste trabalho o autor aproxima-se de um discurso sobre o setting que não dissesse respeito tanto às suas características e funções, mas ao seu significado conceitual. O setting pode ser considerado a parte “material” ou “factual” da relação analítica, mas a redução dele aos seus elementos externos deve ser entendida como intolerância à verdade, como relação primária entre elementos irredutíveis, que sempre têm algo de material e de mental. Por relação primária quer dizer a relação bebê-seio (mãe), entendida como precondição de qualquer experiência possível, que surge, como Bion indicou, como preconcepção – as preconcepções do seio e edípicas. O setting é um espaço real em que os sonhos podem se desenvolver, um espaço em que o ser e o sonhar são dois momentos inseparáveis. Portanto, para indicar um elemento fundamental, pode-se dizer que o setting tem a ver com a ambiguidade paradoxal do ser.
Palavras-chave: setting, memória e desejo, invariância e transformação, ambiguidade, paradoxos

Este artigo discorre sobre a sensorialidade e sobre como seus rearranjos interferem no processo de subjetivação. A sensorialidade, tal como entendida por Alberto Konicheckis, compreende a multiplicidade de experiências psíquicas que decorrem dos órgãos dos sentidos e comporta uma hibridez entre o interno e o externo, pois é despertada no encontro do corpo do bebê com os objetos. Essa oscilação entre o íntimo e o compartilhado, o familiar e o estranho, acompanha o sujeito durante a vida, mas é sentida com mais intensidade em alguns processos, como a adolescência, o envelhecimento e o adoecimento. Nesses casos, o reagenciamento sensorial é convocado com mais força, e o indivíduo pode sentir-se desalojado do seu corpo. O sentimento pessoal não está assegurado, e os rearranjos sensoriais precisam passar por reapropriações subjetivas para que o sujeito assimile um senso de identidade e de alteridade.
Palavras-chave: sensorialidade, corpo, subjetivação, continuidade do ser, arcaico

O abandono da teoria da sedução foi essencial para o desenvolvimento da psicanálise, tendo em vista que possibilitou a descoberta das fantasias inconscientes e da sexualidade infantil. Com base nisso, analisamos neste artigo, por meio da correspondência entre Freud e Fliess, quais motivos levaram Freud a defender sua teoria da sedução e, posteriormente, a rejeitá-la. Além disso, buscamos demonstrar que, à medida que o autor adquiriu maior compreensão sobre a noção de realidade psíquica e sobre os impulsos infantis, esse caminho o levou diretamente ao Édipo.
Palavras-chave: teoria da sedução, sexualidade infantil, trauma, fantasia, complexo de Édipo

A experiência coletiva diante do horror da finitude, reapresentada na pandemia atual, impôs o isolamento social e a mudança nas práticas clínicas. Com isso, a clínica psicanalítica enfrenta o desafio da reinstalação dos canais de comunicação psíquica dentro de um novo setting, virtual. Este artigo descreve as particularidades do atendimento online de um paciente melancólico em risco de suicídio, caso ficcionalizado para fins de discrição. O objetivo é mostrar, sob a luz das ideias de Freud em “Luto e melancolia” e de Sándor Ferenczi sobre o manejo da transferência, a possibilidade de transformação da dor psíquica em uma experiência estruturante a partir da migração das imagens para o campo da palavra.
Palavras-chave: pandemia, melancolia, suicídio, atendimento online

Resenhas