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Volume 57 nº 3 - 2023 | Religião e estados religiosos da mente

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

 

Life is but a dream.

LEWIS CARROLL

There are more things in heaven and earth, Horatio,

Than are dreamt of in your philosophy.

WILLIAM SHAKESPEARE, HAMLET

A transitoriedade de nossa existência e nossa insignificância nos acon­tecimentos cósmicos estaria na origem dos sentimentos religiosos e da neces­sidade de algo que transmutasse essa situação, ligando-nos a algo incomensu­rável e eterno? Ou haveria algo mais?

É notório que todos os regimes políticos que procuraram abolir as religiões não foram bem-sucedidos na tarefa. Cultos relacionados a perso­nalidades vivas ou mortas se criaram – em substituição aos deuses abstratos que foram tornados ilegais? Imperadores, faraós, reis e congêneres têm sido, igualmente, vistos como figuras sagradas ou divinas desde a Antiguidade, e parece que a necessidade de acreditar na existência de seres acima da condição humana nunca deixa de estar em evidência. Os recentes funerais da rainha Elizabeth 2ª, com a formação de filas quilométricas de pessoas que queriam passar alguns segundos diante de seu caixão fechado, demonstram o caráter sagrado e quase milagroso que é atribuído à figura do soberano.

Em países escandinavos, há poucos frequentadores de igrejas (muitas delas fechadas ou utilizadas para finalidades divergentes da original) e uma quantidade consideravelmente menor de indivíduos que se declaram reli­giosos. Não obstante, a manutenção de monarquias seria a evidência de uma contradição dessa afirmação?

Outras expressões de estados religiosos da mente também se mostra­riam em todas as organizações sociais humanas, até mesmo nas chamadas científicas. Com frequência, grupos ligados a esta ou àquela corrente de pen­samento se unem de maneira não muito diversa de torcidas organizadas de times esportivos e se constituem de modo análogo ao de hooligans, em que aqueles que não estão na sua torcida são inimigos mortais e devem ser destruí­dos. A despeito do interesse científico manifesto, subjacentemente é possível observar funcionamentos não muito distantes de manifestações fundamen­talistas. Grupos de uma mesma denominação podem se dividir e procurar se aniquilar para estabelecer a verdade que propagam. No entanto, não é raro que, tão logo um grupo assuma a hegemonia, ele acabe se fragmentando, com novos profetas e discípulos a se digladiarem.

O que faria a diferença entre estados religiosos da mente e religião? Neste número, contamos com os trabalhos de Gilberto Safra, Mirian Malzyner, Guilherme Salgado e Odilon de Mello Franco Filho (o deste, um importante artigo resgatado de nosso acervo), em que relatam suas experiências com a religiosidade. Também contávamos com a participação do eminente colega Antonio Muniz de Rezende, que fora monge na juventude, para nos trazer seu depoimento nesse domínio. Infelizmente, ele faleceu antes de poder realizar essa tarefa. Como achávamos relevante homenageá-lo, solicitamos à sua viúva e também colega Sonia Rezende que procurasse nos arquivos que ele deixou algum trabalho com essa temática. Não se encontrando ela em condições emocionais para fazê-lo devido à sua grande perda, achamos que ficaríamos sem algo dele. Entretanto, poucos dias depois, limpando arquivos no compu­tador, deparei-me acidentalmente com uma aula de Rezende que ele me havia enviado em particular há alguns anos. Milagre? Uma luz que veio dos céus? Coincidência? Eu não tinha qualquer lembrança de tê-la. E o título? “O Deus de cada um”! Essa aula foi adaptada com a autorização de Sonia para ficar o mais próximo possível de um texto corrente. Ele não está nos padrões dos tra­balhos que costumamos publicar, mas consideramos que a relevância de seu conteúdo e a homenagem que gostaríamos de prestar ao autor nos permitem essa licença específica.

Neste número, contamos ainda com os instigantes trabalhos de Cecil José Rezze, Patrícia de Campos Lindenberg Schoueri, Cátia Deon Dall’Agno e Celia Fix Korbivcher.

Uma boa leitura.

 

Intercâmbio

Em sua reavaliação da teoria da pulsão (resumida brevemente aqui), a autora desenvolve as condições econômicas, teóricas e estruturais do inconsciente. Centra-se nos aspectos quantitativos e qualitativos das duas energias de pulsão opostas, a libido da pulsão sexual e de vida e o lete da pulsão de conservação e morte. Entende que a primeira tem uma tendência para o consciente, enquanto a segunda tem uma tendência para o inconsciente. Do nível micro ao macro, cada estrutura é concebida como uma combinação das representações de ambas as pulsões. Sua interação, que garante a estabilidade dinâmica da psique – princípio de prazer/homeostase –, é organizada nas estruturas. Isso se aplica tanto à representação individual (p. ex.: self, objeto) quanto às instâncias psíquicas (p. ex.: id, ego, superego), bem como à ligação de representações em memórias, fantasias ou sonhos. Recorrendo ao conceito de Bertram Lewin de tela do sonho vazia, branca ou preta (em sua maior parte inconsciente), na qual os sonhos (conscientemente disponíveis) são projetados, a autora propõe assumir para cada representação um primeiro plano libidinal, que tende para a consciência, e um segundo plano lético, que tende para o inconsciente. De acordo com essa concepção, o inconsciente é um componente de todos os processos psíquicos. Ao mesmo tempo, o inconsciente da primeira tópica e o id da segunda tópica seriam predominantemente investidos com energias de pulsão lética, enquanto os investimentos libidinais predominariam
nas partes conscientes do ego e do superego/ego ideal.
Palavras-chave: metapsicologia, teoria da pulsão, energia da pulsão, formação de estrutura, inconsciente

Temáticos

O autor procura apresentar e discutir a questão da religiosidade e da espiritualidade hoje, a partir de observações e reflexões baseadas na situação clínica psicanalítica. Inicia a apresentação explicitando a formação de imagens do absoluto e do divino por meio de três vértices: experiências de cuidado recebidas pelo bebê, imagens de potência derivadas da experiência de desamparo e precariedade, e acesso a registros éticos, que ofertam ao ser humano a organização de um eixo axiológico pessoal. Discute o amadurecimento da personalidade ao longo do tempo, que também promove a evolução das imagens do absoluto e do divino, a partir dos registros ontológico e ôntico. Por fim, aborda fenômenos que possibilitam o estabelecimento de uma espiritualidade pessoal.
Palavras-chave: religiosidade, espiritualidade, imagens do absoluto, ontológico, ôntico

A autora desenvolve ideias sobre as relações entre psicanálise, religião, espiritualidade e misticismo. Apresenta reflexões de outros psicanalistas que consideraram essas questões e que usaram como referência principal as proposições de Bion sobre O e as ideias de Winnicott sobre o campo da ilusão. Aborda também as ideias de Matisse sobre a relação entre a religiosidade e sua arte. Por fim, expõe uma vinheta clínica para ilustrar a atitude de fé do analista no potencial criativo do encontro analítico.
Palavras-chave: ilusão, religiosidade, misticismo, psicanálise, espiritualidade

O autor busca demonstrar a influência das relações na experiência mental e, com base nisso, postular o adoecimento físico como possível fruto de turbulências vinculares e ambientais. Para isso, estabelece um diálogo entre filosofia e psicanálise, apresentando as principais correntes do campo da filosofia da mente e trazendo ao debate algumas ideias fundamentais de psicanalistas como Ronald Fairbairn, Wilfred Bion, Michael Balint e Donald Winnicott, além do próprio Freud. O norte deste trabalho será a originalidade do pensamento psicossomático brasileiro, especificamente desenvolvido no Centro de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica (Hospital Geral da Santa Casa, Rio de Janeiro).
Palavras-chave: psicossomática, psicanálise, filosofia da mente

O autor explora a afirmação de que algumas condições mentais de acesso à experiência mística podem fazer parte da vivência psicanalítica. Essa aproximação confere ao psicanalista a possibilidade de empregar elementos da disciplina de alguns místicos para pensar a experiência da sessão, sem que isso signifique igualar as duas situações, ou entender a psicanálise como atitude religiosa ou mística. A Bion, não passou despercebida essa aproximação, chegando ele a afirmar que os fatos psicanalíticos podem ser expressos adequadamente tomando-se como modelo a experiência dos místicos. Ao fazê-lo, ele a usa como construção provisória para dar significado aos fatos observados na experiência com o paciente. A partir dessa aproximação metodológica, e adotando como modelo de postura as noções de negatividade, fé e experiência do indizível, que são aplicáveis à abordagem da realidade psíquica (o inconsciente), o autor retoma as contribuições de Bion para situar a psicanálise como experiência aberta ao desconhecido de cada sessão. A proposta da psicanálise não é decifrar a mente, mas pôr o analisando diante do mistério que ela representa, num contato que não pertence ao campo do discurso, mas constitui uma experiência emocional de transformação vivida na relação analítica.
Palavras-chave: sagrado, religião, experiência mística, modelo místico, negatividade, fé, realidade psíquica, verdade

Artigos

O autor apresenta situações clínicas e considera, em cada uma, a possibilidade de apreender novos ângulos clínicos e desenvolver possíveis conceitos. A grade propicia a revisão através do eixo psicogenético em emoção. O autor examina primeiro um cliente com voz em marionete, a partir da possibilidade de falha da função a, vivência em menos conhecimento e mente primordial. Continua com uma cliente com a qual surge forte tonalidade sexual, confiança, esperança e gratidão, o que enseja o desenvolvimento dos conceitos de prazer autêntico e transformações em “ser”. Aborda o conceito de monismo e faz considerações sobre a intuição.
Palavras-chave: grade, prazer autêntico, “ser”, monismo, intuição

A partir do poema de Keats “Ode à melancolia”, entrelaçado a um caso clínico, a autora percorre pari passu a busca de um sujeito que se ausenta, se apresenta na ambiguidade e pode ser escravizado pelo deleite da dor e das ruínas do self. Propõe uma reflexão sobre os caminhos a trilhar na procura de uma comunicação que afete esses aspectos mortos e desvitalizados para a vida relacional, de modo a poder, ao contatá-los, iluminar sua existência/vitalidade. Para tanto, é preciso contar com a intuição e a inspiração, nos moldes do que faziam as Musas, filhas de Zeus com Mnemosine, permitindo que o ritmo da palavra cantada, a poesia, expressasse algo “perdido” na memória. Através do objeto estético, é possível restabelecer a comunicação interna, estimulada pelo externo, ao despertar o contato com a verdade originária, sensual. O fluir da conversa na sala de análise, com palavras ditas despretensiosamente, já que a mente crítica lança nelas uma luz que as esconde, busca restabelecer a comunicação viva com os aspectos “mortos” por meio de um afeto orquestrado a quatro mãos. Essa forma de estar e se comunicar se aproxima da forma como um poema se constitui.
Palavras-chave: experiência estética, melancolia, poesia, inspiração, Keats

Partindo de sua experiência clínica durante os anos de pandemia, período em que trabalhou em consultório privado contíguo à sua casa em companhia da gatinha Pituta, a autora tece comentários a respeito da crueldade e da necessidade de restauração do ego após este ter sido experimentado como danificado pelos ataques do sujeito aos próprios objetos internos. Para comentar tais temas, utiliza-se de sua experiência pós-pandemia, quando, em muitos dos atendimentos presenciais, incorporou concretamente a presença de Pituta, sempre e quando o paciente assim o desejasse. Relata o caso clínico de uma criança de 10 anos com sintomas fóbicos surgidos durante a pandemia, caso em que a presença da gatinha mostrou-se de grande auxílio para a projeção dos aspectos internos do paciente, que se derramavam na transferência.
Palavras-chave: desamparo, solidão, crueldade, restauração, sobrevivência do objeto

O objetivo da autora é investigar o papel do corpo nos estados primordiais da mente, em que ele é um “corpo desabitado”, sem que se tenha constituído um eu interior que o habite. Ela reflete sobre o funcionamento da mente primordial. Examina o tipo de linguagem usado pelo analista para permitir que o paciente desenvolva um self que habite esse corpo (“tornar-se corpo”), conectando o corpo à mente. Propõe que essa linguagem seja o que denomina linguagem de emoção. Apresenta o material clínico de Pedro para ilustrar essas ideias e abrir o tópico à discussão.
Palavras-chave: mente primordial, corpo, corpo desabitado, linguagem do analista, linguagem de emoção

Resenhas