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Volume 48 nº 3 - 2014 | Narcisismo

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Narcisismo

Talvez minha mulher tenha percebido muito melhor do que eu a minha irritação, pois acrescentou logo em seguida que, se eu estava tranquilo na certeza de não ter defeitos, podia ir desfazendo minhas ilusões, porque meu nariz caía para a direita, assim…
(Luigi Pirandello, Um, nenhum, cem mil)

Há, no pensamento psicanalítico, noções cuja fecundidade e cujo poder heurístico denotam sua extrema relevância para a clínica e para a metapsicologia. Elas carregam o potencial de modificar nosso modo de conceber a subjetividade humana e seus determinantes. Sem lugar a dúvidas, o narcisismo, exposto por Freud em sua metapsicologia Introdução ao narcisismo (1914), quando ainda era um conceito em formação, constitui uma dessas teorizações. O narcisismo transforma a compreensão sobre as teorias das pulsões, a natureza do eu, a origem das instâncias e outras ideias; joga uma feixe de luz sobre o processo defensivo, abre as portas para compreensão da agressividade e das psicoses, e trilha o caminho para o segundo dualismo pulsional e a segunda tópica. Comemorando cem anos da publicação desse ensaio pioneiro, dedicamos este número da Revista Brasileira de Psicanálise a alguns dos valiosos desdobramentos que este conceito teve no nosso campo.

Damos início aos artigos do eixo temático com o trabalho de Luciane Falcão, que, além de apresentar uma excelente revisão da teoria freudiana sobre o assunto, destaca a importante contribuição do André Green, que permite a compreensão do narcisismo destrutivo à luz da segunda teoria pulsional. O trabalho seguinte, de Leticia Tavares Neves, descreve com clareza o importante desenvolvimento clínico e teórico do narcisismo em Heinz Kohut, um autor menos estudado entre nós, e depois amplia a discussão com referências à psicologia analítica do self e aos teóricos da intersubjetividade e da psicanálise relacional, importantes trilhas inauguradas nos Estados Unidos.

A noção de narcisismo ganha especial destaque no pensamento de Lacan já desde seus primeiros trabalhos sobre o estádio do espelho e a agressividade vinculada à natureza paranoica do Eu. O preciso e esclarecedor trabalho de Alan Victor Meyer ajuda-nos a compreender o alcance desta “nova ação psíquica” como formadora do eu. Além disso, destaca a visão trágica do humano, já que “a identificação à imagem primordial será sempre exterior e, portanto, a um outro de si mesmo e alienante, implicando uma agressividade interna ab initio” – uma visão trágica apresentada também por Freud, em O mal-estar na civilização.

Bion é outro dos grandes pensadores que oferecem leituras originais aos mitos de Édipo e Narciso. A relevância do mito com elemento interpretante e esclarecedor na clínica psicanalítica é apresentada de modo instigante pelo texto de Raul Hartke. Tanto os mitos como os sonhos possibilitam um ganho representativo graças à função alfa, que opera sobre a experiência emocional. Hartke oferece-nos uma rica ilustração da dimensão narcísica do complexo de Édipo e um texto aberto no qual ele, mais do que um pensamento dogmático sobre um autor, coloca em ato o vínculo K, convidando o leitor a acompanhá-lo na aventura do conhecimento.

Alberto Eiguer aborda a conceituação de Racamier da perversão narcisista e a desenvolve como um conceito em evolução e de extrema relevância clínica. Sua rica descrição clínica, as similitudes e diferenças com as configurações psicopáticas, apontam a tentativa fecunda do desenvolvimento compreensivo de uma psicopatologia complexa dos desafios clínicos. Os impasses transferenciais e contratransferencias na tarefa clínica são destacados no seu trabalho. Muitas vezes se critica a ideia de psicopatologia como se viesse a categorizar ou reduzir a singularidade de cada experiência analítica. A reflexão de Eiguer, longe disso, aponta para importância do estudo de certas estruturas. Nas suas palavras, “O desafio está lançado: como superar os obstáculos ligados às resistências do caráter’”.

Rodolfo Moguillansky, conhecido por seus estudos sobre o vínculo, amplia a perspectiva do narcisismo para a reflexão sobre a ética psicanalítica. O desafio está em conceber a existência do outro e da alheidade a partir de um eu que, nos seus inícios, supõe-se autossuficiente. Reconhecer a absoluta diversidade do outro faz parte do que é necessário elaborar e atravessar para sair da esfera totalizante do eu narcísico.

Na seção Intercâmbio, e também ligado ao nosso tema central, publicamos o trabalho de René Roussillion, “O trauma narcísico-identitário e sua transferência”. Um dos grandes pensadores atuais do movimento psicanalítico, Roussillon há duas décadas vem fazendo importantes contribuições ligadas aos primeiros traumatismos, que denomina narcísico-indentitários; contribui de forma decisiva para a compreensão de patologias acompanhadas de déficit nos processos de simbolização primária e esclarece de modo muito interessante os caminhos das transferências paradoxais com analisandos desse tipo. Confluência de um pensamento freudiano com as contribuições de Winnicott, Green e outros, suas propostas vêm inspirando muitos analistas. O texto de Roussillon que publicamos constitui a base do seu pensamento e um ponto de partida para novos aprofundamentos, e somos gratos ao autor por autorizar sua publicação na RBP.

Dois trabalhos complementam o tema principal: a entrevista com Lilian Santiago Ramos, comentada ricamente por Magda Guimarães Khouri e por Marion Minerbo, e o texto de Maria do Carmo Teixeira Rainho, intitulado “Caetano Veloso: corpo, roupa e música desafiando a ditadura militar no Brasil”. Ousamos com estes convites penetrar num território não muito estudado pelos psicanalistas: a moda. A pertinência da moda à cultura e aos sistemas de identificação, bem como sua dimensão semiótica e sociológica, estudada por destacados pensadores como Barthes, Bourdieu e Agamben, tem como estudo pioneiro sobre o tema no Brasil o trabalho de Gilda de Mello Souza: O espírito das roupas, que inspirou nossa equipe a perceber o potencial de interface destes estudos com a temática do narcisismo. Acreditamos que oferecemos aos nossos leitores uma instigante abertura para um campo pouco estudado entre nós, mas imensamente rico de significações.

Integram este número também os artigos: “Sobre o destino das pulsões sexuais nos jovens atuais: vicissitudes da latência à adolescência”, um interessante trabalho sobre os desafios da adolescência nos nossos dias, fruto de um grupo de estudos de colegas de Porto Alegre, e os ricos desenvolvimentos dos analistas Pedro Sobrino Laureano, David Léo Levisky e Ligia Maria Durski & Nadja Nara Barbosa Pinheiro.

As resenhas e os lançamentos mais uma vez testemunham a vitalidade e a diversidade das novas publicações psicanalíticas.

Convidamos nossos leitores a mergulhar na leitura dos trabalhos publicados, nosso tributo à ousadia e à criatividade de Freud e àqueles que, partindo das suas descobertas, ampliaram nosso conhecimento no campo do narcisismo e seus destinos na nossa cultura e na produção da subjetividade.

A todos, uma boa leitura!

Bernardo Tanis
Editor

Referência
Pirandello, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Trad. Mauricio Santana Dias. São Paulo: Cosacnaify, 2001. (Título original Uno, nessuno e centomila, lançado na Itália em 1926)

Diálogo

Comentários sobre a entrevista

A partir das reflexões desenvolvidas na entrevista concedida por Lilian Santiago Ramos, a autora destaca o caráter de mudança da moda, alinhado à dinâmica de flutuações sucessivas. Delimita seu comentário às relações específicas com a vestimenta, focalizando, sobretudo, a questão da transitoriedade no desejo e na moda.

Palavras-chave: moda; desejo; transitoriedade; cultura.

Em “Moda, sapatos e grifes”, uma psicanalista dialoga de forma leve e bem-humorada com uma filósofa em torno do assunto moda, explorando alguns recortes possíveis: desde a compulsão a comprar de uma “vítima da moda”, passando pela moda como linguagem, em seguida como forma de arte, e finalizando com o olhar de um crítico de arte sobre a moda das ruas.

Palavras-chave: moda; compulsão a comprar; grifes.

Artigos temáticos: Narcisismo

O artigo apresenta uma rápida revisão da teoria do narcisismo em Freud e a articula com o mito de Narciso e com um caso clínico. Amplia esta articulação principalmente com base em autores ligados à psicanálise francesa, com destaque para as ideias de André Green. Apresenta a compreensão da segunda teoria das pulsões, ou seja, a pulsão de morte, como fundamental para uma articulação teórico clínica, permitindo a compreensão do narcisismo destrutivo. Mostra a importância do caminho pulsional para a diferenciação entre Eu e o outro, que implica no percurso de desenvolvimento: narcisismo primário, autoerotismo, ação específica, narcisismo secundário e diferenciação entre Eu e não Eu.

Palavras-chave: Narcisismo; pulsão de morte; narcisismo de vida;  narcisismo de mort; desobjetalização;  autoerotismo;  diferenciação Eu/não-Eu.

O termo “narcisismo” serviu como adjetivo para a cultura na qual estamos inseridos, nos séculos XX e XXI, como sinônimo de superficialidade emocional, egolatria, arrogância, distanciamento afetivo, hedonismo etc. Estes discursos propiciaram uma abertura para nos questionarmos sobre o impacto das transformações sociais em nossas subjetividades. Porém, o que observamos foi o transbordamento da visão negativa e patológica do conceito aos processos culturais. Isto reforçou a visão moralista e discriminadora do termo. Neste texto, atendendo ao convite que me foi feito, escreverei sobre Heinz Kohut e sua conceituação do narcisismo, e acrescentarei as noções de contexto e de cocriação, adicionadas à psicologia psicanalítica do self pelos teóricos da intersubjetividade e da psicanálise relacional.

Palavras-chave: narcisismo; selfobjeto; transferências selfobjetais; intersubjetividade; contexto.

A temática do narcisismo em Lacan é abordada neste artigo a partir de dois textos iniciais do autor, publicados nos Escritos – um sobre o famoso estádio do espelho e outro sobre a agressividade. Em ambos, temos a importância da imagem, tanto através do espelho como do outro, o semelhante (semblable). Para a influência marcante da etologia na elaboração da problemática da imagem, recorremos a um artigo de Bento Prado Jr., que aborda o tema a partir dos dois primeiros seminários de Lacan. Trata-se no seu conjunto da formação do Eu e da própria constituição do sujeito humano.

Palavras-chave: narcisismo; imagem; eu (je); Eu (moi); etologia; agressividade; prematuração.

Os mitos de Édipo e de Narciso são descritos e usados, conforme sugere Bion, para investigar problemas psicanalíticos relacionados à presença e à importância do narcisismo no complexo de Édipo, incluindo a participação dos pais nesse momento nuclear do desenvolvimento humano. Uma vinheta clínica ilustra a manifestação e as eventuais consequências destes problemas na relação psicanalítica, inclusive no funcionamento do analista.

Palavras-chave: mitos; Édipo; Narciso; complexo de Édipo; narcisismo; relação analítica.

Este artigo traça a evolução do conceito clínico de perversão narcísica, desde sua formulação por P.-C. Racamier, passando pelas contribuições de vários autores, sua aplicação na perícia judiciária, na empresa, no campo social, até as modalidades clínicas reagrupadas no quadro de predação moral. Sua psicopatologia é estudada; o lugar do narcisismo patológico permite compreender sua incidência nas psicoses e nos casos limite. Para a abordagem terapêutica e, sobretudo, da dificuldade da transferência, a ideia de vínculo intersubjetivo permite avançar na análise dos mecanismos que procuram implicar uma outra psique e na sua identificação.

Palavras-chave: perversão narcísica; manipulação; utilitarismo; sedução narcísica; predador.

Este texto propõe uma contribuição acerca dos “fundamentos da ética a partir da psicanálise”, expondo que este tema implica, numa perspectiva psicanalítica, pensar como concebemos o narcisismo, suas vicissitudes e os avatares pelos quais transitamos para conceber os outros. Para isso, explora primeiro, com base em distintas perspectivas, a questão do outro e da outridade, para a seguir expor, do ponto de vista do autor, como a psicanálise propõe que se chegue a conceber um outro a partir de um Eu que, a princípio, supõe-se a si mesmo como autossuficiente.

Palavras-chave: narcisismo; ética; outridade; outro.

Interface

O texto aborda o papel de roupas, acessórios, cabelos e posturas corporais na construção da imagem de Caetano Veloso no período de 1967 a 1972. Nossa hipótese é que estes aspectos foram tão importantes quanto a sua música na conformação de sua identidade como artista, sendo responsáveis também por sua prisão e exílio entre 1969 e 1972. As fontes utilizadas são fotografias do jornal Correio da Manhã e documentos produzidos pelos órgãos de segurança e informação do regime militar.

Palavras-chave: Caetano Veloso; indumentária; Brasil; anos 1960; ditadura militar.

Artigos

No presente trabalho, os autores refletem sobre a influência da cultura atual nos processos de desenvolvimento da latência e da adolescência. Sugerem a presença, nos pais, de componentes narcísicos não elaborados, o que interfere na elaboração edípica dos filhos e dificulta, nestes últimos, sua inserção em um mundo triangular. Assim, é perturbada também a passagem dos filhos pela latência, período do desenvolvimento em que deve se consolidar o processo repressivo e que culmina com a estruturação do superego. Tais aspectos, somados às características da cultura contemporânea, em que as diferenças entre os sexos e as gerações estão esmaecidas e em que há uma descrença na autoridade, reforçam uma fantasia de controle onipotente do mundo. Em função desses aspectos, a clínica atual denota que os adolescentes encontram dificuldades ainda maiores para lidar com a complexidade de sua conflitiva, cuja elaboração permitirá um ingresso adequado no mundo adulto.

Palavras-chave: adolescência; latência; contemporaneidade; desenvolvimento.

Buscamos problematizar a relação entre a psicanálise freudiana e lacaniana, por um lado, e a filosofia de Deleuze e Guattari, por outro, através da questão da animalidade. Partimos do caso clínico do homem dos lobos, de Freud, para construir a ideia de que as diferentes concepções de linguagem e subjetividade trabalhadas pelas duas linhas de pensamento permitem diferentes formas de se pensar a relação entre homens e animais e, por consequência, entre natureza e cultura. Constatamos que as diferenças nos aportes teóricos acarretam em maneiras distintas de se conceber a subjetividade.

Palavras-chave: animais; psicanálise; menoridade; subjetividade; modernidade.

O autor expõe ideias e vivências sobre religião e religiosidade. Faz considerações em torno de alguns pensamentos: “Se Deus é uma ilusão, sou fruto de Sua criação”; “Deus é uma invenção do homem para explicar a invenção de Deus, o universo”; “Sou Deus, o fruto da obra Dele”. Indaga sobre as origens, a natureza e as funções do sentimento de religiosidade. Distingue esse sentimento, que acompanha o homem desde os seus primórdios, do conceito de religião. Aborda as relações do sentimento de religiosidade com o sagrado e suas transformações culturais ao longo da história. Considera a religião como uma instituição social organizada em torno de crenças, princípios, normas e dogmas. Finalmente, discute sobre fé e ilusão como partes da criatividade humana com base em conceitos extraídos da psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; ilusão; criatividade; cultura; religiosidade.

Este artigo realiza um paralelo entre o que nomeamos de “aniquilação” e “mutilação”, a partir de particularidades dos casos do Homem dos Lobos e do Pequeno Hans, relatados por Freud. Trata-se de um exercício didático, por assim dizer, para tornar mais clara a diferença específica entre algumas implicações referentes ao complexo de castração e a um “além do complexo de castração” – em outras palavras, entre dilemas psíquicos cuja tônica trata de uma “perda total” ou de uma “perda parcial”. O texto destaca que tal diferenciação não é sem importância, uma vez que deflagra um sério questionamento ético ao analista. O trabalho apresentado procura tornar evidente a relevância da sensibilidade e do posicionamento do analista diante dos diferentes momentos e dilemas psíquicos despontados pelo paciente na relação transferencial.

Palavras-chave: ética da psicanálise; tato; castração; Freud; Winnicott.

Intercâmbio

Este trabalho explora a noção de um trauma primário relacionado com uma decepção narcísica primária produzida pela inadequação das respostas do ambiente, primeiro ante as expectativas e pré-concepções inatas do bebê. Esse trauma primário produz um sofrimento narcísico-identitário do tipo “agonia psíquica”, caracterizado por ser sem representação, sem saída e vivido como sendo sem fim. Para sobreviver, o sujeito tem de se retirar de si mesmo, se clivar de sua experiência. Em seguida, tem de desenvolver modalidades de defesa e de ligações não simbólicas para enfrentar o retorno dos traços das experiências de que se clivou, o “retorno do clivado”. Quando, durante um trabalho psicanalítico, essas experiências retornam, geram formas de transferência paradoxal ou reações terapêuticas negativas, que impõem ao analista um paciente trabalho de reconstrução das relações primitivas com o ambiente primeiro.

Palavras-chave: trauma primário; agonia psíquica; clivagem do eu; transferência paradoxal; reversão passivo/ativo.

Resenhas