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Como paradigma da rivalidade fraterna, conta-nos o Antigo Testamento que Caim matou Abel por ameaçar o seu lugar de preferido.
Na mitologia grega, Pólux, ao oferecer a Júpiter sua própria vida pela do irmão Castor, morto em guerra, é recompensado com a permanente companhia dele na constelação de
Gemini. Na mitologia romana, Rômulo mata seu gêmeo Remo e funda a cidade de Roma.
Temos ainda Jacó, que se faz passar por Esaú para receber, em seu lugar, a bênção da primogenitura – personagens retomados por Machado de Assis na pele de Pedro e Paulo,
que brigavam antes mesmo de nascer, no ventre materno. E José, que é vendido como escravo pelos irmãos, ameaçados pela iminência de sua soberania – mito também revivido na literatura, aqui por Thomas Mann, em José e seus irmãos. Ainda na literatura, encontramos Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski; no Brasil, os Dois irmãos, de Milton Hatoum, e o recente relato de Chico Buarque sobre o seu Irmão alemão.
Certos irmãos permanecem em nosso imaginário de maneira forte: Paul e Camille Claudel, a parceria de Theo e Vincent van Gogh. Alguns, assim se apresentam: os cineastas Irmãos Taviani e Irmãos Coen; no Brasil, os grafiteiros OSGEMEOS e os designers Irmãos Campana.
Na mitologia freudiana, a origem do processo civilizatório se dá a partir da disputa entre os irmãos da horda primitiva, que assassinam o pai tirânico ao qual estão submetidos, organizando-se em fratrias. Para Freud (1913/1969b), a rivalidade, a inveja e o ciúme estão na base afetiva desta nova formação, que, para se manter coesa, institui o tabu do incesto e a exogamia no lugar da lei do desejo. Os investimentos e identificações antes dirigidos ao pai deslocam-se para a figura do irmão, nos rudimentos de uma vida em sociedade.
Ser irmão é um estado que passa pela presença do outro. Ou seja, tornar-se irmão passa pela alteridade, pela instauração da diferença, portanto. Mas também pela semelhança, pelo laço comum de filiação – um semelhante que demarca a primeira aparição do estranho, do Unheimliche, segundo Kancyper (1999). Um outro diferente e complementar, o irmão funciona, simultaneamente, como fundador de aspectos do eu e da alteridade.
Evidência da “traição” parental – afinal, são os pais em cópula que decidem pelo novo integrante –, a chegada de um irmão modifica a configuração familiar, perturba o equilíbrio e exige uma reestruturação. O primogênito perde o lugar de único e a ele cabe levar em conta a existência do mais novo, a quem cabe a função de descobrir e conquistar territórios. Abrir mão da ilusão de ser o predileto e suficiente para a satisfação dos pais é um sofrimento considerado por Kaës (2011) como traumático para o narcisismo primário – fato já observado por Freud (1909/1969a) ao admitir o trauma narcísico no pequeno Hans, provocado pelo nascimento de sua irmã.
Na lógica edípica, o irmão é o rival. Mas ele pode ser, especularmente, o duplo. Ou o cúmplice em relação ao que lhes é exterior. A relação fraterna, marcada pela horizontalidade consanguínea, possui características próprias. Seria ela uma construção psíquica especificamente grupal e comum aos membros de uma fratria, que cria subgrupo dentro do grupo familiar ou mesmo fora dele? O vínculo fraterno recusa-se a ser um derivado da relação edípica com os pais?
Kaës (2011), discutindo o modelo de 1913 proposto por Freud, mostra que se faz necessário considerar o complexo fraterno: uma formação intrapsíquica de representações inconscientes sobre o papel do irmão no psiquismo, definida por uma organização de desejos amorosos, de ódio e agressividade dirigidos ao irmão; complexo que se manifesta nas relações intersubjetivas e que pode ter funções tanto defensivas e substitutivas quanto elaborativas de questões edípicas e narcísicas, bem como ser estruturante, por seu caráter organizador (Kancyper, 2002). Retomando a noção freudiana de fratria, Kehl (2000) a propõe como um operador substituto à falência da função paterna e à consequente perversão dos laços sociais que se observam nas sociedades contemporâneas ocidentais.
De fato, deve-se ressaltar que Totem e tabu enfatiza a importância da ligação fraterna para a vinculação social. A cumplicidade pelo assassinato do pai seguida de culpa promove efeitos na religião, no código moral e na organização de grupos – sendo esta marcada também pela interdição de matar o irmão, a santificação dos laços de sangue e a solidariedade entre todos os membros do mesmo clã, garantindo-lhes a vida. Estas hipóteses são retomadas por Freud (1921/2011) em Psicologia das massas e análise do eu, ao relacionar a horda primeva e a organização em fratrias aos fenômenos de massa e seus processos identificatórios.
Do ponto de vista social, já nos aponta Bauman (2005) que, no mundo líquido moderno, partido em fragmentos que não se coordenam e onde as existências individuais são reduzidas a uma sucessão de episódios fragilmente conectados, surge a necessidade de pertencer a alguma comunidade de ideias e princípios que seja integrada. O “eu”, experiência seminal para a modernidade do início do século passado, já não se sustenta mais. Como diz Maffesoli (Silva, 2013), não podemos mais permanecer numa compreensão individualista do mundo. Imprescindível, na contemporaneidade, o sentido de “nós”: seja pelo tribalismo, seja pelo grupo, seja pela comunidade.
Portanto, se ter um irmão convoca a ser irmão, aqui ter é ser – o que evidencia a importância das relações fraternas na constituição do sujeito. Sem a sua presença, muitas destas questões não teriam a oportunidade de serem elaboradas. O parceiro, o duplo, o intruso, o competidor, o cúmplice, o apoio – o papel do irmão é fundamental, tanto nas relações internas à família quanto em sua ampliação pela organização de grupos ou tribos na vida social.
São estas as questões que este número pretende abordar, pelo olhar de Miguel Calmon du Pin e Almeida, Eliana da Silveira Cruz Caligiuri, Ignacio Gerber, Regina Orth de Aragão, Ada Morgenstern, Adela J. Stoppel de Gueller, João Lindolfo Filho e Maria Rhode. Boa leitura!
Silvana Rea
Editora
Referências
Bauman, Z. (2005). Identidade (C.A. Medeiros, Trad.).Rio de Janeiro: Zahar.
Freud, S. (1969a). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 10, pp. 13-156). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1909)
Freud, S. (1969b). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 13-198).Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)
Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P.C. de Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)
Kaës, R. (2011). O complexo fraterno (L.M. E. Orth, Trad.). Aparecida, SP: Ideias & Letras.
Kancyper, L. (1999). Confrontação de gerações: estudo psicanalítico (A. Venite, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.
Kancyper, L. (2002). O complexo fraterno e suas quatro funções. Revista de Psicanálise, 9(1), 9-39.
Kehl, M.R. (Org.) (2000). A função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
Silva, J.M. da. (2013, 21 de maio). Entrevistas: Maffesoli e a pós-modernidade. Correio do Povo. Recuperado em 31 ago. 2015, de http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=4107
Partindo da intensa reação provocada pela afirmação de Kant de que o sofrimento do melhor amigo não nos seria de todo desagradável, o autor se envereda pelos modos de constituição dos sujeitos, buscando considerar o lugar da fraternidade no mal-estar dos homens.
Palavras-chave: pai da horda primitiva; subjetividade; fraternidade.
Partindo da constatação da importância dos laços fraternos para o psiquismo do sujeito, o artigo discute a relação entre os processos psíquicos da maternidade referentes à espera do segundo filho e a maneira como as condições dessa gestação poderão refletir-se nos processos de subjetivação dessa criança, influindo ainda para a determinação do lugar que ela virá a ocupar na nova irmandade.
Palavras-chave: relação fraterna; psiquismo materno; parentalidade; rivalidade fraterna.
Utilizo comentários de Bion publicados em seu livro Second thoughts, de 1967, sobre seu artigo “O gêmeo imaginário”, de 1950, como tema para elaborar variações sobre a passagem do tempo em nossa trajetória psicanalítica – como as certezas de ontem se relativizam no presente e, principalmente, como nossas certezas de hoje se relativizarão no futuro.
Palavras-chave: Bion; gêmeo imaginário; memória superegoica; tempo; transiência.
A autora narra a análise de três irmãs, no crepúsculo de suas vidas, desafio que empreendeu, transitando numa configuração singular, inspirada por um artigo de Joel
Birman, “Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos” (2000).
Palavras-chave: inspiração; fraternidade; função fraterna; complexo fraterno; luto.
Temos recebido em nossa clínica, cada vez mais frequentemente, crianças e adolescentes gêmeos. Ainda que as queixas e os sintomas sejam próprios da idade e similares aos de qualquer sujeito, deparamo-nos com características particulares no percurso de sua subjetivação, tais como: dificuldades específicas para conquistar uma singularização, para separar-se desse outro tão próximo que se confunde com um duplo ou para constituir o narcisismo e alcançar o lugar de falo imaginário. Todas essas operações parecem requerer um trabalho suplementar na constituição subjetiva dos gêmeos e dos pais. Nossa proposta aqui é refletir sobre esse labor suplementar, que pode fazer necessária a intervenção de um psicanalista. Para isso, caminharemos na companhia do trabalho pioneiro – e inédito em português – da psicanalista Dorothy Burlingham, que dedicou décadas a esse campo de estudos.
Palavras-chave: gemelaridade; função fraterna; falo; duplo; Burlingham.
Partindo do paradoxo freudiano de ser a transferência a mais forte resistência ao processo de cura analítica e a ferramenta mais potente na direção da cura, o autor se propõe a discutir a vertente metapsicológica da transferência e suas implicações no processo de cura. Duas ilustrações clínicas procuram mostrar os deslocamentos do afeto que constituem a transferência e as novas possibilidades de investimento afetivo que se abrem para o paciente, sendo esta mobilidade entendida como cura. Este ponto de vista tem influência direta sobre a técnica analítica e sobre o lugar da interpretação, ressituando o dispositivo psicanalítico e abrindo novos caminhos para o tratamento, afastando a psicanálise do modelo médico e psicológico. Destaca-se o lugar de in-significância do analista, que deve se colocar o mais longe possível de modelos predeterminados para que os deslocamentos afetivos que compõem o processo transferencial possam se estabelecer com toda sua potência.
Palavras-chave: psicanálise; transferência; técnica psicanalítica; cura.
O presente artigo tem o propósito de pensar o lugar do adolescente na clínica psicanalítica, ressaltando como o fracasso do Outro provocado pela puberdade pode levar o sujeito a respostas sintomáticas graves. Para isso, o início da análise de uma adolescente de 17 anos e seu pensamento suicida serão examinados a partir de dois outros curtos tratamentos empreendidos por Freud: o Caso Dora e o Caso da Jovem Homossexual.
Palavras-chave: adolescência; caso clínico; suicídio; passagem ao ato.
O objetivo deste artigo é discutir as repercussões da transmissão psíquica inconsciente de elementos traumáticos na constituição da identidade conjugal, enfatizando o aspecto estruturante da transmissão do trauma. Pressupõe-se que os fantasmas que assombram o casal dizem respeito aos aspectos traumáticos que cada um dos parceiros traz consigo,
a partir das experiências com os primeiros objetos de amor – sejam objetos primários, sejam edípicos – que são reeditadas na conjugalidade. Considera-se que essa vivência traumática é constitutiva da conjugalidade normal, ou seja, inerente à neurose. Conclui-se que a conjugalidade mobiliza intensa carga pulsional, fruto da transmissão transpsíquica entre os parceiros, mas também fruto do legado que o casal carrega de seus antepassados. A relação do casal abarca, portanto, a reedição de relações objetais do passado, ao mesmo tempo que o encontro amoroso possibilita o exercício da criatividade e da recriação do eu.
Palavras-chave: conjugalidade; trauma; transmissão psíquica; psicanálise de casal; identificação.
Este trabalho procura refletir sobre a clínica psicanalítica, incluindo as reverberações emocionais do analista, durante e após as sessões, no sentido de ampliar a percepção dos fenômenos psíquicos presentes em cada dupla analítica.
Palavras-chave: escuta analítica; técnica; supervisor interno; transferência; contratransferência; impasse.
Discutem-se os fenômenos de imitação neonatal e de imitação recíproca mãe e bebê para a promoção de sintonia em relação ao senso de self em desenvolvimento e à vivência de pertencimento do bebê. Formulam-se vínculos com o conceito psicanalítico de identificação primária, bem como com as teorias psicanalíticas de espelhamento, imitação e identificação introjetiva. Propõe-se que essa imitação evolutiva [developmental imitation] pressupõe o equilíbrio entre a posição do bebê real e a de suposto ocupante interno da mãe. Considera-se que esse equilíbrio forneça o alicerce para a identificação projetiva e a assimilação da experiência, conduzindo ao enriquecimento do senso de identidade. Em contraposição, pode ocorrer a identificação adesiva ou a identificação projetiva na imitação que envolve mimetização. Ilustram-se essas hipóteses com material proveniente de observações de bebê e do tratamento de duas crianças do espectro autístico.
Palavras-chave: autismo; contato visual; imitação; interiorização; espelhamento; identificação primária; senso de self.
Laços tribais destruídos por sequestro, incursão oceânica compulsória e trabalho escravo sob coerção. Novas irmandades de resistência e luta se formam quotidianamente a partir, principalmente, dos traços culturais comuns e dos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e felicidade, também para os filhos da África. Ideais que se espalham e se reinventam de maneira virótica pelo planeta em reinterpretações e interações com outras culturas e etnias, desde os primeiros diálogos transatlânticos até a atualidade.
Transformando, paulatinamente, a paisagem sociocultural mundial, tornando-a menos desigual, mais livre, consciente, fraterna, colorida, musical e alegre, apesar dos obstáculos que se lhes apresentam.
Palavras-chave: diáspora; resistência; identidades; juventude das periferias das metrópoles; produções culturais; sociabilidades; genocídio.
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