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Volume 47 nº 2 - 2013 | O pensamento clínico e o contemporâneo

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

A escolha de certos temas, norteadores dos convites aos autores, pelo corpo editorial da Revista Brasileira de Psicanálise tem como principal objetivo mobilizar e oferecer um espaço de escrita e reflexão para aquilo que, embora ainda não tenha ganhado forma acabada, encontra-se em gestação no campo clínico e reflexivo dos analistas em nosso contexto, assim como em outros países nos quais a psicanálise permanece um campo criativo de pesquisa clínica e conceitual.

Uma publicação psicanalítica viva e atual, como pretende ser a nossa, deve não apenas ser representativa do saber constituído e das práticas consagradas, mas acolher os interrogantes e paradoxos clínico-teóricos com os quais cotidianamente nos defrontamos. A perspectiva contemporânea reside na abertura para a opacidade do presente (Agamben), para o inacabado que se constitui como motor e fonte de novas descobertas, o que talvez permita elucidar com maior clareza as forças e contextos que deflagram dor e sofrimento psíquico, bem como os recursos que podemos desenvolver a partir da psicanálise para a transformação desse mal-estar.

Como psicanalistas, a clínica, ancorada no método, e nossa reflexão a posteriori compõem a nossa matriz produtora de conhecimento, mas é inquestionável que o nível de complexidade dos determinantes que influenciam na constituição subjetiva faz com que a ideia de “pensamento complexo”, como elaborada por Edgar Morin e outros pensadores, venha em nosso auxílio.

Convidamos os leitores a transitar pausadamente pela rica e elucidativa entrevista que a equipe da RBP realizou com Olgária Chain Féres Matos, renomada professora de Filosofia, a quem agradecemos pela generosidade de sua contribuição. As hipóteses que nos apresenta para compreender as transformações subjetivas contemplam elementos históricos, socioculturais e econômicos. Matos investiga as origens da modificação na forma de perceber o tempo (“aceleração do tempo”), a limitação de viver a experiência, as ideias de vazio e tédio, a crise da educação e a perda de um registro imaginativo que nos ofereça um continente para acolher e processar a dor mental, fatores que impedem a construção de metáforas estimulando as diferentes formas de passagem ao ato.

A possibilidade de construir narrativas de si, mesmo que inconclusas e de preferência não saturadas, é algo que Freud sempre destacou e a que outorgou um importante lugar em face do soterrado e do traumático, como destaca em “Construções em análise”. Também a narrativa histórica da cultura e sua origem mítica mas fundante da lei e da moral são destaques nas reflexões sobre o contemporâneo no ano em o Congresso Brasileiro de Psicanálise presta homenagem aos cem anos da publicação de “Totem e tabu”. Convidamos a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz para abordar esta temática. Por meio de um texto rico e dinâmico, a autora problematiza o debate antropológico em torno das noções de tempo e história nas diferentes culturas e nas perspectivas de compreensão elaboradas pelos pesquisadores. Sem pretensão de sínteses apressadas, a autora destaca “que somos todos nativos de nossas múltiplas temporalidades”.

Múltiplas perspectivas sobre a temporalidade entre os gregos (Chronos, Kairos e Aeon) é o tema que destaca Maria de Fátima Chavarelli em seu agudo comentário à entrevista. Já Mariano Horenstein, também sobre a entrevista, desloca de modo instigante seu comentário na direção da contemporaneidade da psicanálise, de sua “eficaz inatualidade”, da preservação da singularidade em que residem os outros elementos para pensar a clínica e o contemporâneo.

Dizemos em nossa carta-convite a este número:

Freud conceitua a pulsão de morte em 1920, assim como drásticos mecanismos defensivos: a rejeição e a recusa. O Id já não possui as mesmas características do inconsciente reprimido. O Eu e as identificações tornam-se muito mais complexos. O olhar do psicanalista e sua percepção do analisando necessariamente mudam. Estas descobertas de Freud se constituem em um legado para o psicanalista contemporâneo. São novas as maneiras de viver e de padecer daqueles que chegam até nós e propõem novas demandas. Como psicanalistas, de que modo respondemos a essas solicitações’

Progressivamente, mas de modo consistente, os psicanalistas vêm procurando, nas últimas décadas, dar conta destas demandas. Os textos que compõem este número testemunham, ao lado de um trabalho clínico instigante e atual, uma reflexão que vai ao encontro da elaboração de um pensamento clínico que contemple a complexidade; transitam com maturidade fecunda e multifacetada por diferentes aspectos clínicos inerentes às diferentes configurações não neuróticas; esboçam um pensamento clínico plural que se enriquece no diálogo entre distintos modelos de pensamento, um exercício que convoca o “pensamento complexo” para dentro do campo psicanalítico, superando períodos nos quais dominava um pensamento de escolas.

Marion Minerbo, a partir de um caso clínico, nos introduz na obra de René Roussillon, um dos mais criativos analistas hoje em atividade, e que muito tem publicado sobre a clínica e a compreensão dos analisandos dominados pelo que denomina sofrimento “narcísico-identitário” – tema presente também nos trabalhos de Norberto Marucco e Gley P. Costa, nos quais cada um a seu modo, mas com vários pontos de coincidência, visa a abordar o lugar do analista na condução dessas análises.

Luís Carlos Menezes destaca o lugar da linguagem e a potência sempre renovada da metáfora no trabalho do analista. Já Gustavo Gil Alarcão, também com base em um caso clínico, convida o leitor à cada vez mais necessária reflexão sobre o lugar da medicação – tema contemporâneo por excelência em tempos de DSM-V. E o que dizer da necessidade de refletir sobre as consequências subjetivas das mudanças no campo do trabalho na atual fase do capitalismo’ Agradecemos a Christophe Dejours, destacado psicanalista francês e diretor da Fundação Jean Laplanche, pelo envio de suas reflexões.

O trabalho nas fronteiras, em um trânsito entre zonas que permitem transformações singulares e a apreensão de diferentes configurações psíquicas, é o foco do sério trabalho de Claudio Castelo Filho. Também de fronteiras, embora de outra natureza, tratam as instigantes contribuições de Gina Khafif Levinzon, no campo da adoção, e de Adalberto Goulart, pela análise de um pianista de oitenta anos. Fairbairn, psicanalista de fecundas intuições clínicas, embora pouco lido entre nós, é o foco no texto de intercâmbio de autoria de Paul Finnegan e Graham Clarke.

Ser contemporâneo: medo e paixão, tema do nosso próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise, é sem dúvida um tema de máxima atualidade. Esperamos que a riqueza e diversidade de ideias em torno do pensamento clínico contemporâneo, contidas neste número, se constituam em estímulo e motivação para as reflexões que terão lugar em Campo Grande.

A todos, uma ótima leitura!

Bernardo Tanis
Editor

Diálogo

Comentários sobre a entrevista

À maneira de diálogo com a entrevista que a RBP fez com Olgária Chain Féres Matos, o autor expõe algumas características ligadas tanto à contemporaneidade quanto à singularidade da psicanálise como prática.

Palavras-chave: contemporaneidade; discurso do analista; vazio da experiência; anacronismo da psicanálise; singularidade.

A autora constrói seu texto a partir das impressões que a entrevista de Olgária Chain Féres Matos suscita em seu psiquismo. Pondera certo desconforto entre o que pensa sobre a contemporaneidade e o que sente. Comenta sobre o fenômeno da velocidade do tempo, marca da contemporaneidade, e o contrasta com a visão de tempo dos gregos. Acredita que a “terapia” seja de fato um antídoto para a psicopatologia do mundo contemporâneo. Relata sua experiência com a educação e desenvolve uma hipótese sobre a questão do totemismo na atualidade. Conclui que a informática vem sendo o eixo estruturante da organização do mundo e da ética, semelhantemente à organização totêmica dos povos selvagens.

Palavras-chave: contemporaneidade; totemismo e modernidade; temporalidade veloz.

Artigos temáticos: o pensamento clínico e o contemporâneo

O autor destaca a função da linguagem de tornar possível nomear, discriminar os imponderáveis e fortuitos que, no dia a dia de uma análise, carregam e dão corpo, circunstancialmente, ao enigmático da transferência. Para além da interpretação, sustenta a ideia de que o ficcional da construção, como metáfora, contém uma verdade fundamental para a análise e para o analisando, operando não por sugestão, e sim pelo efeito de resgate de um vivido arcaico inacessível. Um fragmento clínico ilustra esta argumentação.

Palavras-chave: interpretação; construção; verdade na análise; sugestão.

O autor destaca a vigência teórica e clínica do conceito de cesura em Bion, em que se observa a grande importância das noções de coexistência de estados mentais e do trânsito entre eles na mente humana. Estas últimas implicam e são implicadas por um modelo mental de tipo espectral, fundamental para a compreensão da teoria de Bion. O autor enfatiza a importância da cesura para pensar e trabalhar – o que denomina complexidade do mal –, criando a palavra des-cesura para dar conta desse fenômeno. Ao diferenciar ética e moral, o presente trabalho igualmente destaca a relevância ética do conceito bioniano de cesura, expressada nas possibilidades de maior tolerância às diferenças entre o sujeito e o outro, e entre os sujeitos outros do próprio sujeito.

Palavras-chave: cesura; des-cesura; complexidade; moralidade; ética.

Este trabalho é parte de uma apresentação feita em 2012, no II Encontro Internacional André Green, realizado na Asociación Psicoanalítica Argentina. O texto retoma alguns conceitos fundamentais de Green, particularmente os conceitos de pulsão, representação e pulsão de morte. Desenvolvem-se, a partir daí, algumas ideias sobre as reformulações da técnica, interpretação, construção, contratransferência imaginativa e silêncio do analista.

Palavras-chave: psicanálise contemporânea; clínica atual; psiquismo aberto; pensamento clínico; enquadre interno do analista; estruturas não neuróticas.

A autora apresenta algumas ideias de René Roussillon sobre o pensamento clínico contemporâneo. Partindo de duas sessões consecutivas de uma análise, deixa que o próprio caso “convoque” a teoria necessária para sua compreensão. O caso clínico permite acompanhar duas faces do “negativo da própria história emocional em ato”, que deverão ser subjetivadas no/pelo processo analítico: o Isso e o Supereu severo e cruel.

Palavras-chave: René Roussillon; compulsão à simbolização; negativo em ato; retorno do clivado; função reflexiva do objeto.

O artigo retoma as questões levantadas por Freud em “O mal-estar na civilização” (1930/1994) para reuni-las em torno da clínica do trabalho contemporâneo. Se o trabalho pode gerar o que há de melhor em termos de sublimação e de autorrealização, pode também gerar o pior, qual seja: a banalização do sofrimento infligido ao outro, que leva alguns indivíduos a não encontrar outra saída senão o suicídio no local de trabalho. Será que os novos métodos de organização do trabalho favorecem o consentimento com práticas que, no entanto, condenamos moralmente’

Palavras-chave: trabalho; sublimação; sofrimento ético; banalidade do mal; solidão; clivagem; autonomia moral.

Por meio deste trabalho, propõe-se o modelo do palco para entender o processo de mudança psíquica na clínica psicanalítica atual, repleta de problemáticas narcísicas, depressões e fenômenos limítrofes, que se mesclam ou se associam às patologias neuróticas clássicas sob a forma de correntes psíquicas. O modelo do palco se insere na concepção contemporânea da psicanálise, a qual, de acordo com Urribarri (2012), baseia-se em uma leitura renovada de Freud, que revaloriza a metapsicologia e o método freudianos como fundamentos da psicanálise, a apropriação crítica e criativa das principais contribuições pós-freudianas, juntamente com um diálogo com autores contemporâneos de diversas correntes, e a ampliação da clínica aos desafios da prática relativa aos quadros não neuróticos.

Palavras-chave: modelo do palco; mudança psíquica; psicanálise contemporânea; enquadre interno; patologias não simbolizadas; experiência traumática da sexualidade; o lugar do analista hoje.

O artigo trata da relação entre psicanálise e medicação a partir da discussão de um caso clínico.

Palavras-chave: medicação e psicanálise; pacientes difíceis; intervenções não usuais.

Interface

Este artigo trata da maneira como na antropologia a questão da temporalidade se transformou num tema candente, ora a dividir, ora a aglutinar escolas. A partir desse debate é possível pensar em diferentes formas de história presentes em outras sociedades, ou mesmo inscritas na nossa: circulares, evolutivas, rogressivas, cronológicas ou mesmo aquelas que negam a mudança e o devir. O ensaio faz largo uso de romances, poesias e letras de música.

Palavras-chave: tempo; temporalidade; etnologia; história.

Artigos

Durante um atendimento, o analista tem uma visão que dura alguns segundos: um homem aparece e passa entre ele e o analisando. Isso tem a concretude de um fato real. Considerando essa experiência não como algo de natureza psicopatológica (apesar de ter sido considerada a possibilidade), mas como o que permite a realização e a evolução da situação em andamento no consultório, o autor discorre sobre uma situação mental que seria essencial para o desenvolvimento da atividade criativa e da expansão da capacidade de pensar. Associa suas ideias às apresentadas por Bion, Longman, Junqueira Filho, entre outros, além de depoimentos dados por personalidades da dramaturgia e da literatura, como a atriz Fernanda Montenegro, cujo processo de trabalho em cena é descrito por sua filha como algo que transita por uma zona extremamente perigosa e “louca”. Outras situações na prática clínica são apresentadas.

Palavras-chave: imagem; pensamento-sonho; loucura; sonhar.

O autor apresenta uma vinheta clínica sobre a análise de um pianista de oitenta anos de idade e sua tentativa de fugir da vida para evitar o encontro com a morte. Apoiado pelas hipóteses de Ferrari, questiona o alcance da psicanálise em relação a pacientes em idade avançada e pacientes terminais. Propõe que o analista precisa ter uma atitude de respeito diante do inconsciente, mas também de humildade diante da natureza e do tempo. Assim, ainda que em situações extremas, quando espaço e tempo se condensam, a psicanálise poderia ser útil no sentido de ajudar esses pacientes a sonharem o que ainda não foi sonhado, e a viverem o que ainda não foi vivido.

Palavras-chave: tempo; envelhecimento; morte; relações corpo-mente; psicanálise.

Este trabalho aborda o tema da adoção inter-racial e seu manejo na clínica psicanalítica. Vários fatores contribuem para o sucesso deste tipo de adoção, como as expectativas e fantasias dos pais adotivos e sua capacidade para lidar com as diferenças raciais. Do ponto de vista da criança, há a tarefa de construir uma autoimagem positiva e um sentimento de identidade sólido, que superem as diferenças físicas existentes entre ela e seus pais. É apresentado um caso clínico no qual a questão racial não tinha sido bem elaborada, resultando em um sentimento imenso de inadequação na criança. Como forma de sobrevivência, esta havia criado uma espécie de “falso self branco”. No trabalho analítico, foi possível construir, por meio da transferência, uma relação com uma “mãe biológica sonhada” e/ou com uma “mãe adotiva simbólica”, com quem a criança tinha afinidade racial e podia celebrar suas peculiaridades.

Palavras-chave: adoção; adoção inter-racial; clínica psicanalítica; psicoterapia de crianças; falso self.

Intercâmbio

Fairbairn descreveu sua teoria madura como “obviamente adaptada para explicar tais manifestações severas como as encontradas em casos de personalidade múltipla” (1952/2002, p. 159). Nosso objetivo aqui é demonstrar a utilidade da teoria de Fairbairn para a compreensão e tratamento psicanalítico deste transtorno. Começaremos com um breve resumo introdutório da teoria madura do autor, salientando alguns aspectos de seu pensamento anterior sobre este transtorno que guiaram o subsequente desenvolvimento dessa teoria. A seguir, apresentaremos uma versão estendida do modelo de Fairbairn. Em nossa discussão do material clínico de cinco casos de personalidade múltipla, ilustramos as maneiras pelas quais este modelo nos permite: 1) identificar diferentes personalidades múltiplas com estruturas de ego ou objetos internos específicos; 2) ilustrar agrupamentos (clusters) de múltiplos geralmente encontrados; 3) antecipar aspectos das relações que tipicamente existem entre personalidades múltiplas; e 4) antecipar as dinâmicas transferenciais relacionadas. Em seguida, discutimos nossa perspectiva fairbairniana em relação às importantes contribuições de Davis e Frawley (1992a, 1992b) e de Grotstein (1991, 1992, 1994a, 1994b). Postulamos que pode ocorrer uma dissociação traumática das estruturas endopsíquicas, e que tais estruturas endopsíquicas dissociadas podem ser reprimidas por longos períodos de tempo antes de a repressão ser retirada. Essas estruturas endopsíquicas e suas personalidades relacionadas, novamente conscientes, funcionam de uma maneira indicada pelo conceito de cisão vertical.

Palavras-chave: Fairbairn; personalidade múltipla; cisão; estrutura endopsíquica.

Resenhas