Editorias e Resenhas

Sujeitos da psicanálise. Freud, Ferenczi, Klein, Lacan, Winnicott e Bion: diálogos teóricos e clínicos

Sujeitos da psicanálise
Freud, Ferenczi, Klein, Lacan, Winnicott e Bion: diálogos teóricos e clínicos
Organizadores: Claudinei Affonso, Paula Peron e Regina Célia C. de Carvalho
Editora: Escuta, São Paulo, 2018, 120 p.
Resenhado por: Maria Cristina B. Gondim (1)

Agradeço o convite dos organizadores do livro para escrever esta resenha. Como companheira de docência de alguns dos autores na puc-sp, acompanhei em 2006 o início do curso que serviu de base e inspiração para a obra. Não sendo obrigatório, seus 12 anos ininterruptos de existência sina­lizam que está atendendo com eficiência às necessidades dos estudantes que o têm procurado. Na introdução, os coordenadores contam a história dessa trajetória, em cujo início está a sintonia da professora Regina Cavalcantti com a desorientação e as dificuldades dos alunos interessados no estudo da psicanálise diante de tantos autores e escolas.

O início do percurso não poderia deixar de ser a apresentação do fun­dador do campo psicanalítico: Freud. Para fazê-lo, Thais Garrafa opta por or­ganizar sua exposição em torno de três eixos: o recalque, a sexualidade infantil e a transferência (nessa ordem) – opção feliz, pois cada um desses conceitos opera como uma grande abertura, através da qual a autora aborda elementos fundamentais da obra freudiana.

Dissertar sobre o recalcamento põe o leitor em contato com o Freud médico, interessado em resolver o problema clínico da histeria, e o mergulha na história da construção do pensamento freudiano e da psicanálise como modelo teórico e terapêutico. Trilhando esse caminho, a autora mostra o trajeto de Freud, do uso da hipnose até a associação livre, da formulação teórica de uma predisposição patológica até a compreensão da dissociação histérica como defesa, dando lugar ao nascimento do “homem freudiano”, possuidor de desejos inconscientes, conflitos e defesas.

O eixo sexualidade infantil e teoria das pulsões descortina o horizonte de toda a obra de Freud. Mais uma vez, a autora olha para a história da psicanálise a fim de mostrar a grande novidade do conceito de sexualidade proposto por Freud em relação à definição clássica de sexualidade, vigente na época. Introduz os principais conceitos da sexualidade infantil enquanto apresenta o processo do desenvolvimento psicossexual, entrelaçando-o com a construção dos recursos do funcionamento psíquico, que vão desde o movimento tudo ou nada até as necessárias renúncias para a inserção na cultura. Ainda que a maior parte do texto esteja centrada na libido, não deixa de abordar a última teoria pulsional de Freud, destacando os objetivos destrutivos de desinvestimento e a compulsão à repetição. O capítulo termina voltando-se para a clínica e para os importantes vínculos de transferência e contratransferência.

Na sequência histórica, encontramos o grupo de analistas que se reuniam em torno de Freud. Entre eles, os professores selecionaram Ferenczi. Depois de expor as origens húngaras desse psicanalista, Adriana Pereira e Paula Peron observam que, além de parte do grupo mencionado, ele também foi amigo e analisando de Freud. Diferentemente do mestre, porém, sua ex­periência clínica incluía crianças e pacientes difíceis, com distúrbios que hoje classificaríamos como borderline e psicóticos.

As autoras mostram que atender pessoas com patologia diversa da his­teria conduziu Ferenczi a novas formulações teóricas (o conceito de trauma e sua influência no processo de desenvolvimento é uma das mais importantes) e clínicas (modificações na atuação do psicanalista). Essas inovações, ainda que tenham influenciado analistas como Winnicott e Klein, começaram a gerar problemas internos no grupo. Como resultado, por muito tempo a obra de Ferenczi ficou à margem das grandes discussões no cenário psicanalítico internacional. Hoje, no entanto, seu pensamento vem sendo retomado, jus­tamente porque na clínica contemporânea é muito frequente a presença de pacientes considerados difíceis.

Na sequência, Adriana e Paula tratam de um conceito central na obra de Ferenczi: a noção de trauma. Elas observam que a experiência dele com as si­tuações traumáticas durante a Primeira Guerra Mundial foi significativa para a elaboração de seu pensamento. Gradualmente, as lesões corporais da guerra, somadas a seu trabalho analítico com crianças, levaram-no a estender a noção de trauma às experiências infantis, acentuando a importância dos primeiros tempos de vida para a constituição do psiquismo.

Descobrimos que esse tema-chave aparece em vários textos ao longo da vida do autor, revelando como relações traumáticas podem se instalar no seio familiar desde o início da vida da criança e permitindo conceber uma dimensão intersubjetiva na construção da pulsão. A partir de 1929, os escritos de Ferenczi abordam o trauma da sedução concreta de uma criança por um adulto. Essas ideias alcançam seu clímax no artigo “Confusão de línguas entre os adultos e a criança” (1932), em que encontramos a concepção do trauma em dois tempos: primeiro, a ação do adulto e, na sequência, a negação da ex­periência vivida pela criança, quando ela recorre ao cuidador de sua confiança. A compreensão dessa experiência lança luz sobre certos processos psíquicos, como angústias mortíferas, inibição do desenvolvimento psíquico, identifica­ção com o agressor e transformação de abusados em abusadores.

Ferenczi se afastou de Freud ao afirmar que a neutralidade do analista pode retraumatizar o paciente, pela repetição do trauma vivido na infância, e ao propor que o analista responda empaticamente ao sofrimento do paciente. Isso o conduziu a uma série de experimentos, modificando a técnica clássica no intuito de ver se conseguiria alcançar melhores resultados. Essas tentativas compõem o que conhecemos como técnica ativa.

Para ele, o trabalho psicanalítico visa não só dar conta da fantasia, mas também considerar a dimensão intersubjetiva do processo de desenvolvimen­to. Percebeu que os pacientes atuam e repetem na transferência os aspectos cindidos e não metabolizados da experiência traumática. Como o intersubje­tivo ganha mais peso, a abordagem da contratransferência, o exame do que o analista vive no encontro com o paciente, também adquire significado capital. Adriana e Paula finalizam o texto com algumas considerações sobre o pensa­mento sociopolítico de Ferenczi.

No capítulo seguinte encontramos a exposição das ideias de uma ilustre analisanda do psicanalista húngaro: Melanie Klein. Rendendo tributo ao legado kleiniano por sua capacidade de suscitar e nutrir o pensamento de várias gerações, Elisa Cintra toma como fio condutor para apresentar esse legado a teoria do desenvolvimento psíquico, explicitando-a através do aten­dimento de uma criança de 8 anos realizado por Oswaldo Di Loreto, que se encontra publicado no livro Posições tardias (2007).

Lemos que Klein começou seu trabalho e suas publicações entre os anos de 1914 e 1921, apontando os cinco primeiros anos de vida como es­senciais à constituição psíquica, destacando entre eles os dois primeiros anos do bebê. Para ela, a vida psíquica se inicia com o predomínio do funciona­mento da posição esquizoparanoide, caracterizada por angústias persecutó­rias e mecanismos que, com seu funcionamento tudo ou nada, visam apagar o sofrimento decorrente das frustrações, construindo um eu/outro tudo de bom ou tudo de mau, o que tem como correspondência sentimentos tudo de amor, tudo de ódio.

Em torno dos 6 meses, essa configuração onipotente é gradualmente substituída pela posição depressiva, que cria uma aproximação entre objeto bom e mau, entre amor e ódio. Ainda que haja um ganho de complexidade, essa aproximação também dará início aos conflitos de ambivalência. É nesse momento que surge o reconhecimento crescente da própria agressividade, do que decorre dar-se conta de que o mau não está só fora, está também dentro, tornando inviável manter a concepção de si mesmo e do outro como perfeitos. Dessa maneira, com o luto das idealizações e da onipotência, configura-se a posição depressiva, possibilitando o surgimento de uma nova subjetividade.

No que diz respeito aos relacionamentos, esses ganhos de percepção dão origem ao outro-sujeito. Os sentimentos de culpa, o remorso e os desejos de reparação em relação a esse objeto mostram a presença de responsabilidade no que diz respeito a ele, e a necessidade de atendê-lo e cuidar dele.

Elisa cita autores como Bion e Ogden, que a partir da leitura da obra kleiniana propõem que as posições coexistem e oscilam entre si, como formas de significar a experiência emocional. Na sequência, ela se dedica a sintetizar o livro de Di Loreto (2007) que contém o relato do atendimento de Power, um garoto com patologia narcísica. Para isso, caracteriza o paciente e descreve as dificuldades do analista no trato com ele e a trajetória do atendimento.

O pensamento de Lacan é o próximo a ser apresentado, por Alessandra Barbieri. Ela relata a história do autor, seu percurso de médico psiquiatra a psicanalista, sua relação com a Associação Psicanalítica Internacional (ipa), as influências sobre seu pensamento (destacando Saussure), até chegar à funda­ção da Escola Freudiana de Psicanálise em 1964. Toma como fio condutor do desenvolvimento do capítulo “a constituição do sujeito e o edifício da lingua­gem que o rodeia” (p. 72).

Observa que para Lacan a realidade psíquica é constituída por três dimensões: real, simbólico e imaginário, mostrando que no início o bebê lacaniano é puro real, um corpo biológico. Ele necessitará fazer um longo percurso de desenvolvimento com um Outro (grande outro), que garantirá seu acesso ao campo da linguagem, ou seja, do humano e do simbólico. É a relação mãe-bebê, sendo a mãe esse Outro primordial, que marca a criança com sua história de sujeito desejante, dando origem ao inconsciente (discurso do Outro).

É no intercâmbio com o Outro primordial que Lacan propõe o estádio do espelho, momento significativo do processo de desenvolvimento, que per­mitirá, através da identificação com a imagem de si oferecida pela mãe, a pas­sagem do autoerotismo para o narcisismo. Todavia, ainda será preciso outro passo para tornar-se sujeito desejante: sair da alienante posição de ser o falo materno. Isso é obtido, de um lado, pela não realização do desejo da mãe, uma vez que a completude mãe-criança é imaginária; de outro, pela presença da lei contra o incesto. É a abertura para o terceiro, o pai, fundando o complexo de Édipo, e a emergência do sujeito marcado pela falta. Finalizando, Alessandra aborda questões relativas ao processo terapêutico, cujo objetivo não é outro senão permitir que o analisando se aproprie de sua condição de ser desejante.

Para introduzir o leitor ao pensamento de Winnicott, Regina Cavalcantti optou por tratar de um tema clínico: a transferência. Como na apresentação de Freud feita por Thais Garrafa, também nesse caso ocupar-se do concei­to de transferência é, na verdade, abrir uma porta através da qual se pode descortinar toda a obra do autor. Ela se refere inicialmente ao processo de desenvolvimento do ser humano, enfatizando suas etapas mais primitivas, com destaque para a dependência absoluta durante o princípio da vida. Isso põe em evidência a relação mãe-bebê e a importância da resposta sintônica do ambiente às necessidades da criança (mãe suficientemente boa). Quando a falha do ambiente é excessiva, o desenvolvimento do self é interrompido, e o sujeito defensivamente constrói a estrutura falso self.

A revivência dessa relação básica com a mãe, desse momento de fragi­lidade originária, caracteriza a regressão na transferência, ponto que o texto se propõe a esclarecer. Regina nos convida a perceber a diferença existente entre esse conceito de regressão, aquele relativo às fases do desenvolvimento da libido e a concepção clássica de transferência como papéis parentais. Aqui, a transferência é a reencenação de um estágio primordial, que possibilitará destravar o desenvolvimento do self, tornando desnecessária a estrutura de­fensiva falso self.

Para que o processo de desenvolvimento retome seu curso, Winnicott propõe que o analista ofereça a adaptação adequada, de que o ambiente ori­ginal não foi capaz, agindo como mãe suficientemente boa. Tal acolhimento possibilitará que o self verdadeiro surja e se desenvolva, eliminando a necessi­dade da defesa relativa à constituição de um falso self, reinstaurando a conti­nuidade do desenvolvimento do ser.

O trabalho de adequação à regressão não recobre a totalidade do tra­balho psicanalítico, mas ele é fundamental para que outras intervenções possam ser feitas – por exemplo, interpretações sobre a angústia e o complexo de Édipo. A nova ferramenta clínica proposta por Winnicott mostra-se mais apropriada para lidar com os problemas que decorrem das vicissitudes vividas pela criança no início de seu processo de desenvolvimento.

Para abordar o pensamento de Bion, Elisabeth Antonelli conta alguns fatos da biografia do autor, deixando claro que vai centrar seu texto no período entre Experiências com grupos e Aprender com a experiência, esboçando uma transição para a última parte da obra bioniana por meio de Elementos de psi­canálise e “A grade”.

Somos apresentados a um autor cujas ideias estão enraizadas no pensa­mento de Freud e Klein, mas que não aplica a teoria psicanalítica do indiví­duo aos grupos. Efetivamente, constrói uma teoria psicanalítica da dinâmica grupal, entendida como diferentes mentalidades: grupo de trabalho (ajustado à tarefa proposta) e grupo de pressuposto básico (dominado pelas necessida­des de dependência, luta, fuga ou acasalamento).

Lemos que Bion, influenciado por uma atuação clínica com psicóticos, descobriu, principalmente no pensamento de Melanie Klein, novas soluções para os problemas clínicos que encontrava. Atribuiu um papel importante ao mecanismo de identificação projetiva, tomando-o não só como manobra defensiva (excessiva na psicose), mas também como mecanismo primitivo de comunicação da relação mãe-bebê. Nesse caso, a capacidade de reverie materna se torna imprescindível ao bebê: a mãe, mediante o empréstimo de seu funcionamento egoico, consegue processar as angústias e devolver ao bebê o conteúdo psíquico que ele tem condição de acolher.

Outro ponto destacado pela autora na teoria bioniana é o ódio à realida­de frustradora e o modo como o sujeito lida com o sofrimento psíquico dela decorrente, o que permitirá a Bion falar de aspecto psicótico e não psicótico da personalidade.

Na segunda parte do texto, Elisabeth expõe a teoria das funções e os vínculos conhecimento (K), amor (L) e ódio (H). Finaliza com as propostas bionianas mais voltadas para a clínica: os elementos de psicanálise e a grade. Ela não se esquece da recomendação do autor de que o analista deve estar na sessão sem memória e sem desejo, para que tenha condições mentais de ser continente das angústias do paciente e realizar o trabalho psíquico da reverie.

O livro, como o curso, certamente será bem recebido e útil para todos os interessados no estudo das teorias psicanalíticas.

 

Referências

Di Loreto, O. (2007). Posições tardias: contribuição ao estudo do segundo ano de vida. São Paulo: Casa do Psicólogo.

(1) Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 53, n. 1, 279-284 · 2019

 

4 de dezembro de 2020