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Volume 48 nº 2 - 2014 | Intervenções em psicanálise

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Superado o luto, percebemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta de sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.
(Freud, “A transitoriedade”, 1916)

A ética em psicanálise existe como elemento constitutivo do fazer do psicanalista, seja na experiência da sua própria análise, seja na clínica com seus analisandos, no compromisso com o desenvolvimento do campo do conhecimento no qual sua práxis incide ou nas instituições às quais o analista se vincula. Assim como o Drang, um dos quatro elementos assinalados por Freud como constitutivos da pulsão, que representa a exigência de trabalho imposta ao aparelho psíquico, a singular ética inerente ao método psicanalítico nos convoca permanentemente a um aprofundamento dos limites e possibilidades de nossa experiência, dos avanços e retrocessos a que estamos sujeitos.

Ao dedicar um número temático de nossa revista às Intervenções em psicanálise, reconhecemos as transformações presentes no campo subjetivo oriundas de mudanças significativas na nossa cultura; reconhecemos também o amadurecimento da clínica, do campo de conhecimento e reflexão da psicanálise, a qual, embora sujeita (muitas vezes) a dogmatismos e ideologias, busca assintoticamente se aproximar, na sua pluralidade, dos diferentes modos de subjetivação, construindo uma clínica capaz de oferecer um espaço de transformação para os diferentes modos em que o sofrimento psíquico se manifesta.

A transitoriedade introduz a dimensão temporal de todo saber, revela a força do novo e convoca o analista ao permanente exercício de diálogo entre passado e presente, ao reconhecimento do perecedouro e do invariante inerente ao método e sua ética. O tom de esperança expresso na epígrafe freudiana nem sempre foi mantido pelo pai da psicanálise, que, poucos anos após esse escrito, reconheceu a dimensão desagregadora da pulsão de morte. No entanto, os trabalhos publicados neste número resgatam com vigor, ousadia e criatividade clínica, e não menos rigor metapsicológico, a dialética própria ao luto por uma clínica padrão idealizada e o encontro com a potência transformadora de uma psicanálise viva, seja no espaço do consultório, seja nos múltiplos espaços nos quais a psicanálise pode contribuir.

Os trabalhos em resposta à carta-convite, publicada na sequência deste editorial, se estendem por diversos campos e contextos, e são de uma riqueza e variedade que mostram a força e o potencial criativo das intervenções psicanalíticas na sua multiplicidade. Inicialmente, Bernard Miodownik não se furta à complexa tarefa de abordar o tema da frequência de sessões e sua relação com a manutenção do método psicanalítico. O autor nos apresenta o rico debate internacional sobre o tema, assim como sua experiência clínica, abrindo interessantes indagações para os leitores.

Régine Prat, renomada psicanalista francesa, indaga a interpretação a partir de seus efeitos e discute um tema de extrema atualidade clínico-teórica: os diferentes níveis de interpretação que se harmonizam com o nível de simbolização do analisando. Daniel Kupermann, por meio de um percurso histórico-crítico – desde Freud até o brincar compartilhado de Winnicott, passando pelas ousadas e criativas experiências de Ferenczi –, busca desconstruir a ideia de que a clínica é, privilegiadamente, um exercício interpretativo.

O trabalho de Leda Herrmann, em torno da clínica extensa, sustenta uma discriminação entre método interpretativo e técnica, sendo o primeiro considerado como fundamento da clínica e a segunda sujeita às contingências e contextos nos quais a psicanálise poderá contribuir. Os ricos artigos de Nara Amália Caron e Maria Elisabeth Cimenti abordam interessantes possibilidades de intervenção e pesquisa clínica no âmbito da psicanálise com crianças. Caron amplia o campo de aplicação do método de observa¬ção de Esther Bick para novas situações, como ultrassonografias obstétricas, com impor¬tantes desdobramentos. Cimenti relata uma experiência de psicanálise com crianças em grupo, enfatizando os pilares teórico-clínicos que sustentam o campo interpretativo nesta configuração.

Cristina Parada Franch e Rodrigo Blum apresentam um trabalho com grupos no tratamento das psicoses. A clínica grupal, inspirada no trabalho de Didier Anzieu e René Kaës, é descrita como instrumento privilegiado de intervenção e pesquisa clínica na instituição Projetos Terapêuticos. Já o artigo de Maria Teresa Naylor Rocha e colegas da SBPRJ, por meio da reafirmação da exclusão social como experiência traumática, busca refletir acerca dos aspectos teórico-clínicos envolvidos na prática extensa com populações vulneráveis.

João A. Frayze-Pereira, a partir da pergunta “A arte salva’”, nos conduz pelos meandros de uma rica reflexão sobre a questão dos limites e das relações entre ideologia/saber, tradição/esquecimento da origem nos campos da arte e da psicanálise.

Os trabalhos da seção Artigos, enviados espontaneamente para a RBP, testemunham e ilustram os desafios clínicos e as reflexões dos autores em torno da clínica atual.

O texto de Jean-Claude Rolland, publicado como Intercâmbio, procura exami¬nar em detalhe as operações específicas do procedimento analítico (que contribuem para restaurar as condições de renúncia aos objetos edipianos), em particular as diferentes desconexões (significante/significado, conteúdo ideativo/envoltório conceitual) e as transposições incessantes das moções de desejo entre linguagem de imagem e linguagem verbal.

Muitas das resenhas e lançamentos que integram este número se alinham com os temas discutidos pelos autores. Acreditamos que o conjunto das colaborações apresentadas poderá contribuir substancialmente para o avanço dos debates em torno da clínica em um mundo em mutação e para o uso criativo do dispositivo psicanalítico nesses novos contextos.

A todos, uma boa leitura!

Bernardo Tanis
Editor

Artigos temáticos: Intervenções

Tratamentos com menor número de sessões, de duas até uma sessão semanal, considerados de baixa frequência, não são incomuns na clínica atual dos psicanalistas. Questões socioculturais da contemporaneidade e aspectos da clínica psicanalítica que remontam às origens do debate sobre psicanálise e psicoterapia analítica, e que vieram desembocar no período denominado de “crise da psicanálise”, são desenvolvidos para contextualizar o fenômeno da diminuição da frequência. A partir dessas referências, são apresentados argumentos que procuram demonstrar como, em certos casos e sob certas condições, um trabalho psicanalítico, não uma psicoterapia, pode se estruturar na baixa frequência. Ilustrações clínicas são apresentadas. Enfatizam-se as características que instrumentam o psicanalista para a prática do tratamento psicanalítico em baixa frequência. Possíveis conflitos em relação à formação de psicanalistas são discutidos.

Palavras-chave: frequência de sessões; psicanálise e psicoterapia analítica; clínica contemporânea; enquadre; escuta analítica.

A autora interroga a pertinência da distinção entre Interpretação e Construção, em particular na análise de crianças. Propõe definir o estatuto de interpretação não a partir de sua forma, mas a partir de seu efeito, tanto sobre o psiquismo quanto sobre o processo analítico. A forma da interpretação será considerada como uma ferramenta que facilita a comunicação com o paciente e constitui um vocabulário específico, que se harmoniza com seu nível de simbolização. Exemplos clínicos propõem, como vias de reflexão, diferentes modalidades de interpretação, da linguagem do corpo e do ato até a da dramatização, bem como um trabalho com os espaços e limites identitários, em particular com os pais.

Palavras-chave: atos; copensamento; interpretação; dramatização; linguagem não verbal; trabalho com os pais; distúrbios identitários; distúrbios da simbolização.

Pretende-se, neste artigo, apresentar as modalidades de intervenção clínica experimentadas por Sigmund Freud, Sándor Ferenczi e Donald Woods Winnicott, de maneira a atender às demandas impostas pelos diferentes quadros de sofrimento psíquico. Por meio de um percurso histórico-crítico, buscou-se desconstruir a ideia, ainda bastante difundida no campo psicanalítico, de que a clínica é, privilegiadamente, um exercício interpretativo. A partir dos impasses vividos por Freud no caso conhecido como “Homem dos Lobos”, assistiu-se, primeiro, ao advento da técnica ativa; depois, à inauguração, por Ferenczi, de um estilo clínico que enfatizou o princípio de relaxamento e a neocatarse, em diálogo direto com a problemática da elaboração psíquica (Dürcharbeitung) discriminada por Freud; por fim, ao desenvolvimento, realizado por Winnicott, dos aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão à dependência e do brincar compartilhado.

Palavras-chave: clínica psicanalítica; elaboração; trauma psíquico; Sándor Ferenczi (1873-1933); brincar (Winnicott).

O texto trabalha a questão das intervenções psicanalíticas pelo ângulo das pressões que o mundo em que vivemos impõe ao seu homem e à prática analítica atual. Considera-se clínica psicanalítica as intervenções orientadas pelo método interpretativo da Psicanálise, com sua função terapêutica, mesmo aquelas que não seguem o enquadre da clínica padrão de consultório. Apresentam-se dois exemplos de intervenções em clínica extensa.

Palavras-chave: clínica extensa; clínica padrão; método interpretativo

A autora destaca os desafios que o contato direto com crianças e bebês traz para a teoria e a técnica psicanalítica. Ressalta a importância do método de observação de bebês criado por Esther Bick para instrumentalizar melhor o analista para lidar com fenômenos transferenciais/contratransferenciais primitivos, para o quais o setting se torna mais importante do que a interpretação. A função do observador e as transformações que ele sofre no decorrer do processo – especificamente na forma de uma escuta refinada dos fenômenos psíquicos primitivos – resultam em um setting aprimorado pela experiência de observação que se adapta a diferentes settings externos. É apresentado material de aplicações do método em ultrassonografias obstétricas, centro obstétrico e UTI neonatal com o objetivo de ilustrar o enriquecimento pessoal do analista, assim como a importante função terapêutica dessas aplicações, muito bem-vindas nessas etapas primitivas do desenvolvimento humano.

Palavras-chave: método Bick; aplicações do método Bick; setting; etapas primitivas do desenvolvimento; crianças e bebês.

Este artigo apresenta o relato de uma experiência clínica com um grupo de crianças. Refere-se a uma vivência terapêutica transferencial surpreendente pela intensidade e riqueza do material produzido. Trata-se de um trabalho compartilhado com mais quatro colegas, que foi tecnicamente discutido e revisado pela equipe no decorrer do desenvolvimento. Destaco, ainda, os pilares teórico-técnicos principais, salientando a presença, a escuta analítica, o apoio no discurso e a função do corte na sessão.

Palavras-chave: clínica de crianças em grupo; transferência; presença do analista; discurso.

A exclusão social é um fenômeno que atinge grande parte da população brasileira e nos coloca, enquanto psicanalistas, uma questão ética diante do sofrimento que ela veicula. A partir da reafirmação da exclusão social como experiência traumática, o artigo busca refletir acerca dos aspectos teórico-clínicos envolvidos na prática extensa com populações vulneráveis, moradoras de favelas da cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: exclusão social; trauma; intervenções psicanalíticas; clínica extensa.

Partindo da perspectiva teórico-clínica psicanalítica de que o grupo pode ser instrumento de intermediação paradoxal e fecundo no tratamento das psicoses, pretendemos neste artigo apresentar a clínica de grupos desenvolvida na instituição Projetos Terapêuticos. Para tanto, ao longo do texto, trabalharemos as ideias de Didier Anzieu e René Kaës sobre os envoltórios psíquicos e oníricos grupais, bem como sobre as funções constitutivas e reparadoras desses envoltórios para psiquismos em que os contornos são imprecisos ou fragmentados.

Palavras-chave: psicose; grupos; instituição; intermediário; projetos; envoltório psíquico; contrato narcísico; intervenção.

Interface

A situação de uma paciente em análise que descobre a pintura, sem se preocupar com o seu reconhecimento como artista, é considerada por associação a certa tradição que reconhece como arte a produção plástica dos não profissionais (art brut). À pergunta “A arte salva’”, respondemos com uma reflexão sobre a questão dos limites e das relações entre ideologia/saber, tradição/esquecimento da origem no campo da arte e da psicanálise.

Palavras-chave: arte; clínica; criatividade; tradição; invenção.

Artigos

O autor trata da questão da recusa da realidade, mecanismo de defesa característico de estruturas perversas da personalidade, diferenciando-a da repressão – própria das neuroses – e da rejeição – entendida como traço distintivo das psicoses. Apoiado em uma história clínica, assinala suas repercussões na área da identidade sexual em um paciente que reluta, ao longo de todo um percurso de vida, em aceitar-se a si mesmo, num severo boicote às suas possibilidades de desenvolvimento. Vislumbram-se algumas conexões da problemática da recusa com aspectos derivados do sentimento invejoso, o que contribui para as dificuldades de relacionamento, prejudica o progresso pessoal e compromete sensivelmente a capacidade de fruição.

Palavras-chave: fetichismo; inveja; recalcamento; recusa; rejeição.

Os analistas participantes do Centro de Atendimento Psicanalítico da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre deparam-se, frequentemente, com a questão de por que alguns pacientes aderem ao tratamento psicanalítico e muitos outros, não. Neste trabalho, é feita uma reflexão em torno de alguns fatores do paciente e do analista que possam estar implicados nessa questão, envolvendo vicissitudes da transferência e da contratransferência. Os dados levantados em relação à adesão ao tratamento referem-se ao período de janeiro de 2012 a janeiro de 2013.

Palavras-chave: adesão ao tratamento; Centro de Atendimento Psicanalítico; transferência; contratransferência.

Neste artigo, os autores procuram investigar nuances do humor na experiência clínica psicanalítica. Descrevem algumas das situações vivenciadas pelo analista no seu cotidiano em que, não raro, frente a certos disparates engendrados pelo inconsciente, se depara com o “só rindo”. Compartilham algumas experiências que contribuíram para a percepção do humor como uma ferramenta capaz de favorecer a liberdade mental do analista em seu ofício. Apoiados em modelos extraídos da música e da poesia, interligados a elementos da metapsicologia freudiana, buscam expressar aquilo que apreenderam como função e lugar do humor na constituição de uma parceria analítica. Neste sentido, viram favorecidos elos entre o vasto mundo teórico e as peculiaridades da história dos membros da dupla, contribuindo para a retomada da produção de conhecimento pessoal e progresso interior de cada um e, portanto, da psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; humor; relação analítica; liberdade mental.

Intercâmbio

Os homens penam para renunciar aos objetos a que os vincula sua sexualidade infantil. Parte desses objetos permanece conservada na memória inconsciente, dando força e vida às múltiplas manifestações da psicopatologia. Foi para essa inércia, para esse poder patogênico da libido, que Freud foi ficando cada vez mais sensível, à medida que sua pesquisa e sua teorização avançavam – a pulsão de morte podendo ser considerada sua versão mais radical. O tratamento analítico trabalha para restaurar as condições dessa renúncia, voltando a dar figura a esses objetos recalcados ou introjetados e submetendo-os ao processo da enunciação, que os liberta de sua carga erótica e os constrange à sublimação. Também retoma, amplificando seus efeitos, o procedimento próprio do sonho, que é a ferramenta do trabalho do luto. O texto tenta examinar em detalhes as operações específicas desse procedimento, em particular as diferentes desconexões (significante/significado, conteúdo ideativo/envoltório conceitual) e as transposições incessantes das moções de desejo entre linguagem de imagem e linguagem verbal.

Palavras-chave: renúncia; sonho; tratamento analítico; objeto edipiano; relação de objeto; interpretação analógica; endereçamento; linguagem de imagem; linguagem verbal.

Resenhas