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Há um muro de pesadelos
A separar-me dos mortos
(Federico García Lorca)
Em 1900, Freud publica A interpretação dos sonhos (1900/1969b), dois anos após Gustav Klimt liderar o movimento de Secessão vienense, o Jugendstil, que recusa a tradição acadêmica e naturalista. Ainda que a coleção de antiguidades de Freud confirmasse o seu interesse pela cultura clássica, comum aos austríacos cultos de sua geração – como afirma Schorske (1988) –, neste texto Freud apresenta a sua visão dos sonhos, cujo trabalho consiste em estabelecer a mediação entre a força de elementos recalcados em busca de expressão e a resistência a ela – ideia que combina com a poética expressionista, também sua contemporânea.
Na história da arte, o espanhol Francisco de Goya é considerado um dos antecessores do expressionismo e o divisor de águas entre o último dos grandes mestres e o primeiro dos modernos.
No final de sua vida, Goya dedicou-se às Pinturas negras, ou Ciclo dos pesadelos, uma série de afrescos pintados a óleo nas paredes de sua quinta, nos arredores de Madri. Entre eles, o conhecido Saturno devorando seu filho. Imagens que mostram o horror em formas desesperadamente perturbadoras e alteradas – daí sua relação com o expressionismo. Trata-se de obras pouco mencionadas pelo pintor, que nunca teve a intenção de expô-las. Seria outra a necessidade de Goya? Afinal, eram suas vivências de terror que buscavam um caminho em direção à figurabilidade na forma de um pesadelo, na forma de um afresco.
Aparentemente uma exceção à regra de serem os sonhos uma realização de desejos, os pesadelos desafiaram Freud e o levaram a refletir sobre o que acontece quando a função onírica fracassa. Sem a mediação do desejo por uma representabilidade suficiente, os pesadelos, como sonhos acompanhados de angústia, impedem o sono e o sonhar. Mais à frente, Freud considera os sonhos de punição e os chamados sonhos traumáticos, que acompanham a mudança de tópica proposta em Além do princípio do prazer 1920/1969a), e o emblemático pesadelo dos lobos brancos sentados na grande nogueira, utilizado por ele como interpretante para o Homem dos Lobos (1919/1969c) e como elemento organizador de seu pensamento teórico.
Mas os pesadelos não se referem apenas ao momento do sono. Como diz Ogden (2006), sonhar é um processo contínuo que se dá também na vida inconsciente de vigília. E muitas vezes há um impedimento de se fazer o trabalho onírico por um excesso, por algo tão assustador que interrompe a possibilidade de sonhar, estejamos adormecidos ou não.
O que pensar desse excesso? Algo que ultrapassa o limite da capacidade sonhante? Um sofrimento traumático que pode levar à dificuldade de encontrar possibilidades representativas? Algo cuja tentativa de ser sonhado não se perfaz?
Neste sentido, propomos a questão dos pesadelos a partir da ampliação de seu entendimento como fenômenos localizados em regiões entre a ausência de representação do terror e a representação terrorífica, como as Pinturas negras de Goya. Para isso, contamos com a colaboração de autores que nos ajudam a pensá-los de diferentes pontos de vista.
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho parte de um poema de Wilfred Owen, que relata o encontro de dois soldados no Inferno, aproximando-o da experiência de Wilfred Bion na guerra. Luís Carlos Menezes trabalha desde um caso clínico centrado numa fobia de contato, em que a angústia é uma constante. Carlos de Almeida Vieira traça relações entre a obra de Freud e a literatura, com base num ensaio de Jorge Luis Borges sobre o pesadelo. Viviane Sprinz Mondrzak aborda o caso de Sergei Pankejeff, o Homem dos Lobos, e o pensamento freudiano. João Frayze-Pereira, para tratar o tema, parte de um caso clínico e traz como situação análoga a do pesadelo, do ponto de vista do espectador, diante das manifestações artísticas contemporâneas. Ambrozina Amália Coragem Saad trabalha uma situação clínica a partir de um sonho, teorizando sobre o tema.
Contamos, ainda, com textos apresentados na vii Jornada de Lacan na IPA, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Na seção Diálogo, publicamos o texto de Sára Botella sobre a memória dos sonhos, e, em Pontos de vista, a professora Walnice Nogueira Galvão foca os pesadelos na literatura.
E assim, caros leitores, convido-os a enfrentar a noite e suas criaturas, ainda que elas nos façam sentir-nos vulneráveis.
Silvana Rea
Editora
Referências
Freud, S. (1969a). Além do princípio do prazer. In S.Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, pp. 13-88). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)
Freud, S. (1969b). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vols. 4-5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)
Freud, S. (1969c). História de uma neurose infantil. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 13-156). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919)
Ogden, Th. H. (2006). Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e choros interrompidos. Livro anual de psicanálise, 20, 173-189.
Schorske, C.E. (1988). Viena fin-de-siècle (D. Bottmann, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.
Esta comunicação foi apresentada durante um encontro sobre o seminário que Lacan dedicou ao tema da angústia na análise, articulada por ele em torno do conceito de objeto a. Trata-se da apresentação de um caso clínico centrado em uma fobia de contato, particularmente viva na situação analítica. Alguns desdobramentos desta análise permitiram ao autor situá-la na linha de reflexão de Lacan, assinalando ao mesmo tempo o interesse em aproximá-la da concepção freudiana de uma neurose atual no cerne das psiconeuroses.
Considerando uma situação experimentada com um paciente acometido por uma enfermidade psicossomática, fui remetido a certas manifestações artísticas contemporâneas que, no campo da recepção estética, suscitam atitudes que expressam apreciações negativas. Tais atitudes são manifestas por espectadores perturbados pela disposição dos artistas para lidar com os próprios corpos com o propósito de formar cenas e objetos percebidos como abjetos ou sem sentido. Uma situação perturbadora, análoga a um pesadelo, se apresenta, nesse sentido, não do lado do artista, mas do lado do receptor. Como interpretar esse tipo de ressonância no plano da recepção’
Neste trabalho, a partir da leitura de várias vozes sobre o Homem dos Lobos, procurei localizar o que para mim soava como um sonho e o que me parecia da ordem do pesadelo, para Freud, para Sergei Pankejeff e, principalmente, para os psicanalistas no contato com a obra de Freud. Neste último caso, pensar o quanto a idealização de Freud tem nos dificultado, assim como possivelmente dificultou para o Homem dos Lobos, seguir sonhando o impacto que o contato com sua genialidade provoca. E questionar o quão flexível tem sido o continente oferecido pelo grupo psicanalítico (um determinado imaginário que varia de lugar para lugar e que se espera que varie com a passagem do tempo) para propiciar que cada analista se aproxime da escrita freudiana com liberdade criativa, possibilitando um conhecimento enativo, que se constrói a cada momento através da experiência. Quanto mais afastados deste ideal, mais próximos de pesadelos.
O disparador deste artigo foi o poema “Strange meeting”, de Wilfred Owen – considerado o maior poeta inglês da Primeira Guerra Mundial –, que relata de forma dramática o “estranho encontro”, no Inferno, de dois soldados. Adotando os conceitos de consternação e verdade como símbolos de sua cruzada, o poeta, em seu curto tempo de vida, dedicou-se a expressar sua indignação com a futilidade da guerra. Algo parecido ocorreu com o psicanalista Wilfred Bion, que, como sabemos, relatou o aprendizado emocional auferido na guerra em suas autobiografias, em especial a sensação de ter virado um fantasma assombrado pela culpa de não ter morrido como a maioria de seus companheiros. Neste texto, parodiando o poema, imagina-se um encontro entre o fantasma de Bion e a alma de Owen.
O autor faz um link entre literatura e psicanálise, inspirado em um ensaio de J.L. Borges sobre o pesadelo. Destaca nuances e as coloca lado a lado de questões contidas em obras de Sigmund Freud e de outros autores. Com isso, utiliza a observação dos escritores e poetas como subsídio à psicanálise no sentido da apreensão da realidade psíquica e da descrição fenomenológica do estado de pesadelo, o sonho de angústia. A intenção é também enriquecer o conhecimento dos estados da alma humana apresentado por escritores e poetas e, dessa maneira, atentar para a importância do vértice artístico como mais uma forma de observação no trabalho analítico.
A partir de um fragmento de material clínico, a autora teoriza a respeito dos sonhos, dos pesadelos, do representável e do irrepresentável.
Tenta-se dar conta da originalidade da noção de “objeto a” e de sua coerência conceitual em diferentes momentos do ensinamento de Lacan. Descrevem-se suas consequências sobre a maneira de conceber o fim da análise, em suas diferenças com o fim freudiano. Postula-se um tipo de satisfação, que resulta mais de uma mudança de gozo do que de uma formulação articulável, como marca do fim, ligada a um giro teórico que enfatiza o real por fora do sentido.
Este trabalho tem como objetivo estudar o uso de histórias na clínica psicanalítica com crianças em grave sofrimento psíquico. O tema surgiu a partir da própria experiência clínica, numa oficina terapêutica de história que era parte do dispositivo clínico Giramundo, da Clínica Psicológica da PUC-SP. Destacamos a importância de considerar a psicanálise como ferramenta de trabalho nos enquadres clínicos diferenciados, ou seja, a extensão da psicanálise para além do seu enquadre tradicional. O estudo foi realizado por uma leitura das situações e cenas vividas no encontro clínico e resgatadas de um registro textual, o Livro da oficina de história. De forma geral, notamos que o registro marca dois momentos principais: no primeiro o registro era uma narrativa do que acontecia na Oficina, enquanto no segundo momento as crianças tiveram um papel mais ativo na construção das narrativas, inventando histórias e experimentando o mundo do faz de conta. A experiência de vivenciar um eu-descrito possibilitou o surgimento de um eu-narrador – momento no qual as crianças eram, ao mesmo tempo, personagens e criadoras de personagens, e, de alguma forma, começaram a brincar de fazer histórias.
Inspirada pela leitura do filósofo Giorgio Agamben, a autora faz uma reflexão sobre a genealogia da melancolia, a partir de referências patrísticas da época medieval – que a designavam “acídia” –, de associações com a cosmologia ocidental e de distintas teorias no decorrer da história, até suas expressões na atualidade. O cerne do trabalho respalda-se em Freud, em “Luto e melancolia”, e na leitura peculiar de Agamben, que, ao cotejar a interpretação psicanalítica do mecanismo da melancolia com o complexo humoral saturnino, destaca dois elementos descritos na acídia: o recesso do objeto e o retirar-se em si mesmo da intenção contemplativa. A autora aborda os conceitos de relações de objeto, fetichismo e narcisismo para esclarecer a dialética das relações, sua tortuosa intenção em busca do objeto e a natureza melancólica que subjaz na sombra desses processos.
Neste trabalho, bordejaremos o buraco do real. E o faremos em torno dos conceitos de prazer e de gozo. Como Freud disse, só se aprende nos casos em que a defesa fracassa, porque então há retornos do recalcado e a moção pulsional encontra um modo substitutivo para se descarregar, ainda que seja um substituto mutilado, inibido ou deslocado, que já não é reconhecível como satisfação, que não produz sensação de prazer, mas gozo. Prazer e gozo. Prazer freudiano e gozo lacaniano. Em Além do princípio do prazer, Freud diz que a parte essencial do recalcado não pode ser lembrada e que não se repete a serviço da recuperação de uma vivência prazerosa, mas a serviço de uma vivência que não pôde ser. Para Lacan, em contrapartida, o sexual é o que fica fora do discurso, do lado do gozo, que, enquanto experiência do real, fica fora da palavra. Trata-se, portanto, do gozo do corpo enquanto real, do corpo que fica fora do discurso e do qual só podemos falar através de seus semblantes. Esse gozo se produz quando o sujeito é capturado pela linguagem. É o que fica como um resto que alíngua não pode significar.
Uma reflexão sobre a relevância do pesadelo em literatura deve levar em conta o ofício dos sonhadores, tão em vista na Antiguidade. Em nossos tempos, o domínio literário do pesadelo foi descoberta do Romantismo, o qual, reagindo contra a Revolução Industrial e seus valores, apela para o predomínio do irracional. O primado da razão, típico da época das Luzes, vai ser contestado pelos românticos, que põem em xeque o equilíbrio, as proporções e a simetria do Neoclassicismo. Em troca, vão privilegiar o impulso, o informe, o desequilibrado, o assimétrico. O sonho e o pesadelo como mananciais da arte serão postos acima de tudo. Daí derivam as simpatias pelo satanismo, pelo oculto e pelas perquirições do lado negro da alma. Grandes escritores figuram entre aqueles que assim procederam.
A noção de “memória do sonho” (Traumgedächtnis) aparece logo de início na obra freudiana, desde o primeiro capítulo d’A interpretação dos sonhos. Revela o interesse de Freud pelas “experiências” e pelas “impressões sensoriais” dos “primeiríssimos tempos da infância”. Mas a importância concedida a essa memória da “vivência” da primeira infância que só o sonho é capaz de conservar, uma “memória sem lembrança”, desaparecerá, sobretudo a partir dos anos 1910, em prol da memória da “transferência infantil”, do conteúdo do relato do sonho, portadores das lembranças representadas. Para a autora, Freud impõe, assim, uma limitação a seu método e reduz o campo da rememoração. Isso torna ainda mais marcante o retorno da concepção de 1900 no final da obra freudiana. Em 1938, no Compêndio de psicanálise, a retomada da noção de “memória do sonho” deve ser entendida como um momento de ampliação do método, como indicação por parte de Freud da via a seguir para ter acesso aos traços não representáveis dos traumas dos “primeiríssimos tempos da infância”, sem o que a análise fracassa, tal como a do Homem dos Lobos.