Volumes

Volume 50 nº 2 - 2016 | In corpore

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Diz o jovem agregado Inácio, no conto machadiano “Uns braços”, que da casa que o abrigara não conseguia fugir porque se sentia “agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina”. E continua, explicando ao leitor, que de tão belos e cheios, de tão bonitos e frescos, estes braços fechavam-lhe um parêntesis no difícil período que vivia (Assis, 2004, pp. 43 e 46).
Cito Machado de Assis porque esta passagem aborda a fascinação pelos braços nus de Severina associada a um recurso ortográfico, o parêntesis. Mas “braços entre parêntesis”
é mais que ortografia – é linguagem poética. Porque são braços que fecham um abraço que contém e ao mesmo tempo cria um espaço retirado do momento de dificuldade; um
oásis do qual escapar seria o equivalente à morte.
Ora, desde que Freud iniciou o seu trabalho com as pacientes histéricas, o conhecimento do corpo não se traduz apenas pelos processos orgânicos – a conversão, entendida como linguagem, apresenta um corpo que se comunica a partir de outra ordem. Como linguagem, portanto, o corpo torna-se um significante, ainda que muitas vezes em nossas
clínicas, depois que o corpo torna-se “palavrizável”, ele seja deixado de lado.
De fato, por muito tempo na história o corpo foi esquecido, visto que a disciplina histórica acalentava a ideia de que ele pertencia à natureza, e não à cultura. Mas o corpo é cultura. Ele tem história, faz parte dela e até a constitui, como as estruturas econômicas, sociais e representações mentais das quais ele é produto e agente (Le Goff & Truong, 2006). Como nos diz Aulagnier (1994), da mesma maneira que não há corpo sem sombra, não há corpo sem história.
Desde os primórdios, o ser humano apresenta uma preocupação com o corpo que o leva a retocá-lo de múltiplas maneiras: tatuagem, escarificações e, mais recentemente,  maquiagem e cirurgias plásticas estéticas. O homem não nasce com um arcabouço instintivo suficiente, e sim com uma pele muito fina e frágil, necessitando de uma proteção artificial de natureza física, térmica, de contato e, acima de tudo, simbólica (Thévoz, 1984).
Mas sabemos que, a partir da modernidade, ocorre uma ruptura com as tradições e uma consequente inoperância das instituições para oferecer significados e referências sociais. Em um ambiente pleno de incertezas, o investimento corporal conquista um estatuto identitário sem precedentes.
Vivemos hoje em um mundo que se torna cada vez mais abstrato, de relações virtuais e ausentes, como observa Le Breton (2009) ao afirmar que as novas tecnologias, com seus
discursos, nos fazem sonhar com um corpo tão perfeito quanto o computador e nos convidam a considerar a sua qualidade carnal como algo que, por ser imperfeito, deveria ser
descartado. O homem contemporâneo pensa seu corpo como material e matéria falha, corrigível e, por fim, dispensável.
Proposta reiterada parcialmente por Ortega (2008), que aponta o paradoxo da rejeição do corpo – corpo que é o atestado de nossa existência – em prol de um ideal midiático
padronizado e sem carnalidade. E mais: não podendo mudar o mundo, resta-nos mudar o corpo, o único espaço remanescente de criação e de utopia. A experiência de um corpo
falido leva à necessidade de completá-lo por iniciativa pessoal, com intervenções que conduzem a uma recriação de si.
Nesta perspectiva, Eagleton (1998) afirma que, justamente por estarmos diante de relações abstratas e virtuais, o corpo nos dá alguma certeza sensorial, constituindo formas de
falar do humano e um acesso pelo qual o homem pode alcançar sua interioridade.

Todas estas abordagens, concordantes ou não, mostram que o corpo é uma preocupação contemporânea e está no centro das discussões multidisciplinares. Lugar onde sou, local de significação e sentido, sujeito e objeto das representações, ele é sede daquilo que sinto, aprendo e memorizo. É simultaneamente possibilidade e condição daquilo que experimento e de como entendo o que experimento. Ele é lugar de existência, dá lugar à existência e é o ser da existência, o que exige que se olhe a experiência do sujeito com novos olhos (Nancy, 2000).
Isso nos leva a pensar qual o lugar do corpo em nossas clínicas. Quais seriam as experiências que ocorrem neste encontro de dois corpos – do analista e do analisando – e de suas respectivas histórias? Como o conhecimento sensível delas participa? Como a psicanálise nos auxilia a compreender as diversas construções e organizações dos corpos contemporâneos?
Afinal, o corpo nos apresenta um tipo de produção que propõe a expansão de nossa escuta a diferentes modos de simbolização que merecem ser entendidos como tais.
Pois, como argumenta Pontalis (1988), acreditamos que é a memória que nos assegura certa continuidade, mas é o nosso corpo que, apesar de rupturas, desordens, mudanças de toda natureza, faz com que possamos reconhecer esta vida como nossa, fazer decorrer de um mesmo ponto reportar ao mesmo prenome “eu”, atos, emoções e pensamentos,
chegar a confundir o mundo com o olhar que sobre ele depositamos. (p. 129)
Silvana Rea
Editora

Referências
Assis, M. de (2004). Uns braços. In M. de Assis, Várias histórias (pp. 37-53). São Paulo: Martins Fontes.
Aulagnier, P. et al. (1994). Cuerpo, historia, interpretación. Buenos Aires: Paidós.
Eagleton, T. (1998). As ilusões do pós-modernismo (E. Barbosa, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.
Le Breton, D. (2009, 7 de maio). “Tudo o que está no mundo passa pelo corpo”. Entrevista com David Le Breton. Recuperado em 9 jun. 2016, de http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/22047–%60tudo-o-que-esta-no-mundo-passa-pelo-corpo%60–entrevista-com-david-le-breton.

Le Goff, J. & Truong, N. (2006). Uma história do corpo na Idade Média (M. F. Peres, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Nancy, J.-L. (2000). Corpus (T. Maia, Trad.). Lisboa: Vega Passagens.
Ortega, F. (2008). O corpo incerto. Rio de Janeiro: Garamond.
Pontalis, J.-B. (1988). O amor dos começos (S. Senra, Trad.). Rio de Janeiro: Globo.
Thévoz, M. (1984). Le corps peint. Genève: Skira.

Em pauta

O presente trabalho procura destacar, segundo o ponto de vista da história das ideias, as relações entre o surgimento do campo psicanalítico e um problema epistemológico,
central na primeira metade do século XIX, para a ciência e a filosofia. O problema é identificado, principalmente no que concerne à psicologia, com a relação entre alma,
espírito, mente e natureza; em outras palavras, entre corpo e mente. Procurou-se, a partir da contribuição de Franz Brentano, assinalar os percursos de três pensadores que,
coincidentemente, estiveram em contato com ele: dois filósofos, Husserl e Heidegger, e Freud. Ressalta-se, por fim, que, talvez não por acaso, nos três autores a problemática
das relações corpo-mente foi pensada de uma maneira inteiramente nova, o que contribuiu para a ruptura entre a tradição científica do século XIX e a ciência e a filosofia
do século XX.
Palavras-chave: psicanálise; fenomenologia; filosofia; positivismo; mente; corpo.

Neste texto, o autor descreve o corpo na perspectiva de uma avaliação psicossomática psicanalítica, mostrando os avanços teórico-práticos obtidos nesses últimos anos com base nos conceitos da Escola Psicossomática de Paris.
Palavras-chave: corpo somático e libidinal; afeto; vida operatória; depressão essencial; trabalho de somatização.

Com base nas ideias de Armando Ferrari, este trabalho trata da problemática do adolescente e seu processo de construção de si, em que, a partir do surgimento de eventos corporais, inicia-se a percepção mental da existência de um corpo novo que entra em cena e que origina uma nova conversa interna corpo-mente, cuja dialética se estenderá para sempre.
Palavras-chave: adolescência; corpo; mente; psicanálise.

Apesar da importância das hipóteses freudianas sobre o corpo e as relações entre o psíquico e o somático, por muito tempo o trabalho psicanalítico com as manifestações corporais teve como condição a mediação representativa e a inscrição psíquica dessas experiências. Muitos se empenharam em ampliar os recursos clínicos da psicanálise para lidar com manifestações mais primitivas, aquém da representação e do recalcamento. Este artigo analisa aspectos clínicos e metapsicológicos que sustentam essa ampliação, revelando a necessidade e a função do manejo do enquadre, da transferência, da contratransferência, dos modos de observação, escuta e interpretação para viabilizar o trabalho com pacientes que vivem desorganizações de sua economia psicossomática, crônicas ou momentâneas.
Palavras-chave: técnica psicanalítica; enquadre; contratransferência; não representado; desorganizações psicossomáticas.

A partir da experiência de dirigir o documentário De gravata e unha vermelha, fui levada à ideia de uma sexualidade cenografada e ao questionamento de alguns conceitos psicanalíticos. A roupa como segunda pele me fez repensar os conceitos de máscara e véu, a partir da obra de Joan Riviere. O pensamento lacaniano nos instrumenta ao
afirmar que existem apenas semblantes, sejam do homem, sejam da mulher. Qualquer encontro amoroso produz semblantes – isto é, há infinitas possibilidades de encontros.
Palavras-chave: teatro; véu; semblante; máscara; transexual; travesti; roupa; sexualidade; corpo; feminilidade; falo; homem; mulher.

Há relação entre tatuagem e simbolização? Para refletir sobre essa questão, considera-se: (1) a tatuagem no campo da cultura; (2) uma situação clínica em que o ato de tatuar se
fez presente; (3) a aproximação entre corpo e obra de arte, tendo em vista o conjunto das características que os definem; e (4) a relação entre tatuagem e ordem simbólica a partir da perspectiva do corpo reflexivo.
Palavras-chave: corpo reflexivo; tatuagem; símbolo; arte; psicanálise implicada.

Neste trabalho, as linhas diretrizes do corpo teórico-clínico da Escola Psicossomática de Paris são esboçadas dentro de uma perspectiva histórica, desde a sua fundação nos anos
1960 até os dias de hoje. A partir dos trabalhos recentes de seus seguidores, o pensamento de Pierre Marty, pioneiro da psicossomática psicanalítica, é apresentado e articulado
ao modelo pulsional freudiano pós-1920 e ao jogo de forças entre as pulsões de vida e a destrutividade, integrando-o assim ao movimento da psicanálise francesa contemporânea. Os transtornos da economia psicossomática são formulados à luz do problema do traumatismo, da função do objeto e dos riscos de desintricação pulsional e desorganização do
sujeito. As falhas nos processos de elaboração psíquica (de mentalização), próprias à somatose, são situadas nas falhas da ligação do afeto à representação.
Palavras-chave: excitação; pulsão; desintricação pulsional; somatização; afeto; representação.

A pesquisa em psicanálise tem mostrado que certos pacientes recorrem à sensorialidade, às ações e ao corpo para evitar a emergência da angústia. O trabalho com tais dimensões exige repensar o exercício clínico e a função do analista. O artigo procura mostrar que as manifestações corporais, os gestos e ações devem ser tomados como parte da cadeia associativa. São feitas reflexões sobre a técnica, explorando-se, a partir de recortes clínicos, casos em que as interpretações devem ser precedidas pela construção de estruturas psíquicas básicas do sujeito. Busca-se esclarecer as seguintes questões: como se comunicar verbalmente com o paciente quando a forma de comunicação mais acessível a ele não passa pelos canais verbais? Ainda se trata de interpretação? Caso sim, ela permite ir além da integração do reprimido? Finalmente, demonstra-se que o corpo do analista pode ser interpretante – seus gestos, ações e toda a sua potência expressiva podem ser essenciais ao processo de simbolização.
Palavras-chave: corpo; simbolização; técnica psicanalítica; interpretação.

Neste estudo, temos como objetivo discutir as noções de trauma e regressão nos escritos de Sándor Ferenczi e suas possíveis articulações com as propostas da Escola Psicossomática de Paris, em particular aquelas estabelecidas por Pierre Marty. Ao tratar da imbricação entre corpo e psique para compreender a traumatogênese, a angústia e a formação de sintomas desprovidos de conteúdo representacional, associados a movimentos regressivos, Ferenczi esboça uma teorização que virá a convergir com desenvolvimentos posteriores no campo da psicossomática psicanalítica. Em nosso entendimento, há um diálogo fecundo a ser construído entre as últimas teses de Ferenczi e as formulações teóricas e clínicas de Marty, malgrado o fato de este não ser apontado como um leitor daquele. Consideramos possível reconhecer certas raízes ferenczianas, sobretudo acerca das noções de trauma e regressão, nas proposições teóricas de Marty, nomeadamente aquelas relativas às noções de pensamento operatório, desorganização progressiva e regressão somática.
Palavras-chave: psicossomática psicanalítica; trauma; regressão; Sándor Ferenczi; Pierre Marty.

Diálogo

O autor abordará o fenômeno atual do sexo virtual, que cada vez mais faz parte da nossa sexualidade, em todas as idades, influenciando, moldando e sendo moldado por nossas fantasias sexuais. Ser capaz de criar uma relação analítica a dois em que esse tipo de estado mental autoerótico, com frequência dissociado, pudesse ser partilhado e colocado em palavras seria crucial para personalidades inibidas, retraídas e autísticas, mas é também importante como instrumento para investigar relações internas de objeto de nossos pacientes em geral.
Palavras-chave: pornografia; masturbação; fantasia; desejo; neurociência afetiva; teoria relacional e intersubjetivismo; trauma relacional precoce e dissociação.

Pontos de vista

O presente texto trata de configurações corporais que desafiam a autonomia do indivíduo característica do Ocidente moderno. À estabilização do indivíduo e seus decorrentes pressupostos metafísicos, tais como a distinção entre natureza e cultura, serão contrapostos modos de hibridização, de composição e de recomposição de corpos que apontam para distintos estatutos ontológicos do humano. O artigo explora sobretudo os regimes corporais ameríndios, potencialmente conectáveis com outros que produzem linhas de fuga e complexidades alternativas à moderna.
Palavras-chave: corporalidade; montagem; sacrifício; limite; indivíduo.

Resenhas