Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)
A Otavio Frias Filho (in memoriam),
por sua luta pela liberdade de expressão. (1)
Pode-se reconhecer a necessidade biológica e psicológica do sofrimento para a economia da vida humana e no entanto condenar a guerra nos seus meios e nos seus fins. … É verdade que as guerras não podem acabar enquanto os povos viverem em condições tão diferentes, enquanto divergirem de tal modo no valor que atribuem à vida individual, e enquanto os ódios que os dividem representarem forças psíquicas tão intensas.
(Sigmund Freud, 1915)
O número Política i foi elaborado no contexto da grave e complexa crise política que estamos vivendo em nosso país. A Revista Brasileira de Psicanálise é uma publicação científica de peso internacional que, fazendo jus ao conceito de contemporaneidade (2) no sentido agambiano, não poderia deixar de revelar e problematizar os importantes acontecimentos que experenciamos no Brasil e, de certo modo, no mundo.
Faz parte da tradição psicanalítica refletir sobre os conflitos internos e externos, não alheios, do ser humano. O inconsciente, de acordo com Freud, é perceptível por suas manifestações em nosso cotidiano, o que já seria por si uma evidência de como somos atravessados por alguma forma de organização de interesses, uma conjugação entre forças, entre a irrupção da pulsão e os mecanismos de recalque, vivemos em nossos corpos e mentes a dimensão do conflito, mesmo sem termos consciência. Encontramos nos escritos de Freud demonstrações de preocupação e participação da psicanálise nas esferas culturais, sociais e políticas.
Muitos psicanalistas trataram de política, como Erich Fromm, Roger Money-Kyrle, Donald Winnicott, Hanna Segal, Jacques Lacan. Mencionamos esses autores a título de ilustração, a lista de nomes deve ser bem maior, e continua aumentando, o que mostra que a política faz parte do nosso campo de estudo e, também, em permanente diálogo com outros campos do saber.
A política não está distante de nós, encontra-se em tudo que pensamos, fazemos, sentimos, ocultamos e desconhecemos. Não temos a consciência de sua proximidade e nem refletimos que viver é em si um ato político. Em tempos de crise perguntamos: o que nós, psicanalistas, pensamos sobre tudo isso?
Com os artigos deste número, a Revista Brasileira de Psicanálise pretende apresentar o que de específico os psicanalistas têm a indagar, questionar, dizer ou mesmo esclarecer na esfera da política, sempre numa perspectiva ética e de respeito à alteridade, à liberdade de pensamento e à verdade.
Quando os leitores estiverem recebendo este exemplar, já teremos um novo presidente eleito. Portanto, o que preparamos para este número trata de preocupações que emanaram do processo de discussão relativo à escolha de um novo presidente e à sua proposta para o país. Este número, porém, transcende a eleição em si, pois traz questões postas pelo momento atual, não só no Brasil, mas no mundo.
Em alguns fragmentos póstumos de sua obra, Hannah Arendt (2004) trabalha a pergunta “O que é política?” com o esforço de uma pensadora original e independente, que se confronta com a experiência política histórica dos sistemas totalitários, como o nazismo e o comunismo no século xx, e nos convoca a refletir sobre o sentido da política, com uma atualidade ainda assustadora. Em sua definição a política se baseia na pluralidade dos homens e trata da convivência entre diferentes. Explica que,
os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças … a política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens…
A política surge no intraespaço e se estabelece como relação. … A política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas. (pp. 23-24)
Afinal, o que é política? Não ousamos pensar em respostas para tal questão, mas sim reconhecer sua importância para os psicanalistas e dar início a uma nova tradição na rbp de incluir a política como um tema central, assumindo que as diferenças, as singularidades, as relações entre-os-homens são conceitos ou noções que dizem respeito igualmente ao campo psicanalítico, à intersecção com o campo das ciências humanas e a cultura.
Arendt indaga: “Tem a política ainda algum sentido?”. A resposta que ela nos apresenta é: “O sentido da política é a liberdade” (p. 38). Acreditamos que a psicanálise comunga o mesmo sentido – de liberdade – e, por isso, a política também será o tema do nosso próximo número.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Referências
Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? (V. N. Honesko, Trad.). Chapecó, sc: Argos.
Arendt, H. (2004). O que é política? (R. Guarany, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Marina Massi
Editora
marinamassieditora@rbp.org.br
(1) Otavio Frias Filho, diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo, de 1984 a 2018, faleceu em 21/8/2018.
(2) “É uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma associação e um anacronismo” (Agamben, 2009, p. 59).
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Para além dos sofrimentos causados pelas forças da natureza e pela fragilidade do corpo, há aqueles causados no interior das relações sociais em que estamos inseridos desde o início da vida. Os valores que constituem uma cultura operam em sistemas de crenças socialmente partilhados, sendo introjetados pelos sujeitos como ideal do eu. Tanto as crenças como os valores cimentam a organização social e ordenam as relações entre seus integrantes, mas são suscetíveis de sofrer mudanças pela capacidade crítica e inovadora do pensamento, o que Freud chama de trabalho da cultura e de impulso à liberdade, em particular quando voltado para crenças e valores percebidos como causa de sofrimento social. Ocorre então uma reviravolta, em que estes passam a ser entendidos como preconceitos e intolerâncias, animados pelo ódio primário ao diferente, sendo questionados num processo político no interior da sociedade. Isso porque um período de mutação é desestabilizador e desperta reações regressivas violentas, que encontram uma descrição útil na noção de posição ideológica radical, de René Kaës. A conquista da cidadania nas democracias ocidentais, as mudanças no lugar da mulher e a evolução das mentalidades sobre a vida sexual, como a exigência da virgindade e a normatividade estrita sobre as orientações sexuais, ilustram o tema deste artigo.
Palavras-chave: intolerâncias, crenças, valores, diferenças sexuais, ideologias
Partindo das reflexões de Hannah Arendt, o autor descreve, do ponto de vista psicanalítico, a formação e o funcionamento da mente totalitária, isto é, daquela que orientou a ação dos regimes hitlerista e stalinista. Busca caracterizar a estrutura psíquica sem a qual a mente totalitária não se organiza e cuja presença a torna operacional. Apresenta a hierarquia necessária à existência dela e as diferentes formas que assume (mentor, aderente e vítima). A compreensão da estrutura e do funcionamento da mente totalitária é fundamentalmente baseada em Melanie Klein, Wilfred Bion, Donald Meltzer e André Green.
Palavras-chave: totalitarismo, terror, destrutividade, onipotência, narcisismo, identificação projetiva, desobjetalização, vínculo
Resumo: Neste artigo, a autora aborda um dos aspectos mais sombrios da globalização neoliberal, a presença cada vez maior de refugiados e errantes, assim como a particularidade de uma escuta analítica do traumatismo vivido por essas pessoas, que aceitaram morrer para poder viver. Seria possível falar de uma clínica da errância?
Palavras-chave: globalização, refugiado, trauma, errância
Resumo: Trechos do filme Praça Paris, da diretora Lúcia Murat, são usados como disparador para discutir as relações entre psicanálise e política. Recorre-se a aspectos históricos da reforma urbanística do Rio de Janeiro, entendendo-a como continuação de políticas de Estado excludentes, iniciadas no Brasil com a colonização portuguesa e mantidas até os dias atuais. O crescimento da população dos excluídos, submetida quotidianamente a situações traumáticas, traduz-se no Atlas da Violência 2018. Busca-se, via psicanálise, articular a teoria do trauma e da constituição subjetiva com a rede social. A psicanálise, tomada como ciência da singularidade, é teoria/prática política. Psicanalistas dispõem de instrumentos para ajudar a dar destinos criativos à espiral de violência resultante da exclusão social.
Palavras-chave: exclusão social, trauma, desmentido, violência, psicanálise, política
A autora propõe pensar a clínica psicanalítica como uma prática política. A clínica, ao debruçar-se com cuidado sobre o sofrimento subjetivo e sociopolítico, busca produzir desvios nos modos de ser instituídos que produzem esse mal-estar. A crise política no Brasil e no mundo contemporâneo fragmenta, segrega e exclui sujeitos, dá origem a estados emocionais turbulentos e disruptivos. Somos então convocados para uma escuta sensível à política e para novas maneiras de fazer psicanálise: a clínica do social, a clínica institucional e a clínica das ideias.
Palavras-chave: psicanálise, clínica, política
O sofrimento constitui uma realidade complexa, devendo ser distinguido da dor e demandando um tratamento interdisciplinar. São nele identificáveis dimensões várias, nomeadamente físicas, psíquicas, culturais, políticas e socioeconômicas, sendo todavia plenamente legítimo considerá-lo um fato social. As tendências para a tecnologização das respostas ao sofrimento, nomeadamente a psiquiatrização, impõem elas próprias uma abordagem de pendor sociológico, nalguns casos vincando mesmo diversos traços estritamente políticos. Tanto os aspectos atinentes à cultura e à vida religiosa quanto as questões relativas à economia são relevantes na consideração dessa problemática. Em particular, torna-se necessário sublinhar a importância do consumo competitivo e sinalizador de status. Esse relevo do consumo pode, nalguns casos, contribuir para reforçar as desigualdades sociais, do que por sua vez se ressente o bem-estar social geral. Esse reconhecimento, porém, não constitui garantia de que medidas de redistribuição igualitárias sejam consideradas desejáveis, mesmo do ponto de vista dos seus beneficiários.
Palavras-chave: sofrimento, dor, multidimensionalidade, medicalização, cultura
Neste artigo, os autores procuram compreender o papel da experiência corporal na constituição da subjetividade à luz dos conceitos de eu-pele e corpo próprio. Ao lançar mão das teorias de Anzieu e Merleau-Ponty a respeito da corporeidade, buscam resgatar seus aspectos essenciais e evidenciar a relação entre elas. Seu estudo do corpo próprio e do eu-pele mostrou que a dimensão da corporeidade, fundamental ao desenvolvimento psíquico, emocional, cognitivo e social, pressupõe a experiência do outro. Dessa forma, concluem que tanto Anzieu quanto Merleau-Ponty explicam a psicogênese pela ótica da intersubjetividade, que é marcada pela experiência sensível, compartilhada num espaço intercorporal e interpessoal, um mundo comum do qual podem emergir as subjetividades.
Palavras-chave: corpo próprio, eu-pele, subjetividade, intersubjetividade, corporeidade
Neste trabalho, o autor discute as implicações teóricas e práticas que suscita o processo de supervisão. A partir de suas bases conceituais e de sua experiência, procura superar o impasse epistemológico posto pelo termo supervisão e esclarecer como pode e deve ser validado esse processo. Para demonstrar, na prática, os elementos estruturais e dinâmicos envolvidos, o autor apresenta material clínico de uma sessão de supervisão, no qual teoria e técnica se reúnem como corolário de sua argumentação.
Palavras-chave: supervisão psicanalítica, escuta analítica, técnica de supervisão, ensino em psicanálise
Neste artigo, os autores descrevem uma experiência de supervisão compartilhada oferecida pelo Laboratório de Pesquisas e Intervenções Psicanalíticas do Instituto de Psicologia da usp. A supervisão ocorre em grupo e baseia-se no modelo de investigação das teorias implícitas do psicanalista, que busca investigar como o encontro clínico é pensado pelo psicanalista e expandido pela discussão em grupo. O terapeuta apresenta o relato da sessão, e o grupo é convidado a associar livremente. A associação livre produzida nesse tipo de dispositivo é apreciada como capacidade de sonhar, ou possibilidade de perlaborar os conteúdos inconscientes e a afetação do par como elementos que circulam no campo transferencial e determinam o manejo clínico. Os autores apresentam a discussão de um caso clínico com um paciente de difícil acesso, buscando demonstrar como o dispositivo de supervisão compartilhada possibilita gestar a função psicanalítica dos participantes do grupo.
Palavras-chave: supervisão, metapsicologia do psicanalista, sonho, paciente de difícil acesso
Neste trabalho, as autoras investigam entrevistas preliminares com famílias, feitas numa clínica-escola, procurando analisar que fatores contribuem para a formulação de indicação de psicoterapia de família. Buscam avaliar os parâmetros para essa indicação e quais indicadores, presentes na queixa inicial, devem ser considerados. Com esse fim, apresentam como ilustração clínica um caso atendido na clínica-escola de uma universidade privada. O tratamento ocorreu durante oito meses, com supervisão semanal. As autoras perceberam que, em famílias cujos membros encontram-se emaranhados, a indicação de psicoterapia de família é fundamental. Em tais situações, os limites psíquicos permanecem mal definidos, produzindo rígidas alianças inconscientes, que impedem o desenvolvimento emocional dos membros. Além disso, a escuta lapidada pela experiência do profissional tem se mostrado um fator diferencial na compreensão de uma demanda intersubjetiva e do tipo de encaminhamento terapêutico.
Palavras-chave: família, indicação de tratamento, avaliação inicial, escuta, queixa
A brusca interrupção de um processo analítico remete o autor a uma reflexão, em que constata indícios de hostilidade surgidos no vínculo com o paciente, ressaltando-se a importância do binômio inveja-gratidão. O analista correlaciona aspectos de inveja e ressentimento, experimentados pelo analisando, com o comprometimento da capacidade de sonhar a dois e o prejuízo para a evolução do trabalho. Aborda ainda a teorização sobre a função desobjetalizante como elemento essencial para uma compreensão atual do conceito de pulsão de morte.
Palavras-chave: conversando-como-sonhando, função desobjetalizante, inveja-gratidão, ressentimento, sonhar-acordado
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Este artigo aborda questões que incluem fenômenos inconscientes presentes na cultura e atravessam os sujeitos vítimas da humilhação e desamparo social. Reflete sobre a contribuição que o psicanalista pode oferecer para estabelecer novas formas de compreensão dos fenômenos que nos cercam, ampliando a relação da psicanálise com as questões do mundo, seus limites e sobretudo sua potência. Pretende explorar esse tema, apoiado em uma situação ligada ao processo de reurbanização e realocação de populações que vivem em favelas na vizinhança do Ceagesp. Discute a lógica da exclusão e preconceito vigente, trabalhando com a ideia de invisibilidade, o terror da dessubjetivação e a angústia diante do estranho. O referencial teórico centrou-se nas ideias de Arendt, Gonçalves Filho e Debieux.
Palavras-chave: clínica extensa, dessubjetivação, desigualdade social, humilhação, preconceito
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