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Volume 48 nº 1 - 2014 | Mutações e perplexidades

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

A mutação é um grande momento revolucionário, muito diferente da ideia de crise
(Adauto Novaes).

Acostumados há algumas décadas a falar em crise da psicanálise, prevalece em certos meios uma nostalgia pelo passado que, mais do que honrar a potência transformadora da psicanálise, confunde a força e a riqueza da tradição com inércia e engessamento. A Revista Brasileira de Psicanálise, nos últimos anos, não tem se furtado a promover um debate plural, clínico e teórico desses importantes temas. Comemoramos, assim, a escolha temática para o Congresso da IPA em Boston, em 2015 – Um mundo em mutação: formas e uso das ferramentas psicanalíticas na atualidade, que anuncia em sua proposta: “Vivemos em um mundo em rápida transformação, que desafia os ideais psicanalíticos de reflexão e de tempo para o pensamento. Como essas mudanças afetam a mente, a nossa técnica e nossos consultórios’”. Dos vários temas que estarão em pauta, destacamos: a natureza das ansiedades no século XXI; o trabalho psicanalítico em diferentes contextos; as novas configurações familiares; o sexual e identidade de gênero; homofobia, transfobia e bifobia; tempo, ética e cultura; o uso de novas ferramentas eletrônicas e seu impacto sobre a psicanálise e o setting analítico, conectividade onipresente e como pensamos a privacidade.

O número que apresentamos aos nossos leitores inscreve-se neste movimento de convite à reflexão em torno de alguns desses tópicos. Como disparador e introdução a nosso tema, publicamos uma entrevista com Ivo Mesquita, atual diretor da Pinacoteca de São Paulo e curador-chefe da 28ª Bienal de São Paulo. Além de apresentar uma reflexão autobiográfica sensível sobre seu percurso formativo como curador, Mesquita comenta acerca das mudanças e transformações no cenário cultural brasileiro:

Claro que o MASP, o MAM, a Bienal são todos parte de um projeto de modernização, durante os anos de 1950, do nosso meio artístico a partir de um modelo hegemônico e eurocêntrico. Acho que até ali nós estávamos presos a essa ideia de sermos um desdobramento da Europa.

Assim pensamos que, na América Latina, ao lado das transformações globais das últimas décadas, estamos também engajados, como parte de nossa identidade, no debate em torno da colonização e seus efeitos econômicos e culturais. Talvez por isso o tema mutações mais do que evoca tensões e conflitos imanentes a nossa cultura.

Um outro elemento destacado por Mesquita, que será abordado pelos autores convidados, diz respeito ao lugar das instituições museológicas, que guarda interessantes analogias com as instituições psicanalíticas e as expectativas que nelas depositamos:

Eu acho que o maior risco, do ponto de vista da arte e do museu, é o engessamento da instituição, tanto pela adoção de modelos externos aos processos específicos da disciplina quanto pela adoção de noções de otimização e produtivismo na avaliação da performance, do desempenho da organização. Esses princípios de gestão não podem intimidar a noção de liberdade regente no interior do museu, porque é a condição primeira para o aparecimento da arte.

Duas analistas convidadas, Sônia Eva Tucherman e Eliane de Andrade, comentam a entrevista a partir do vértice psicanalítico.

A seção temática tem início com o interessante trabalho de Rogério Coelho de Souza, que, no contexto das mutações, reflete em torno da possibilidade do conhecimento advindo da surpresa e da dúvida. Na sequência, publicamos dois trabalhos que certamente resultarão instigantes ao leitor – ambos voltados para a transmissão da psicanálise em um mundo em mutação. Sverre Varvin e Bent Rosenbaum se debruçam sobre os estimulantes desafios inerentes à transmissão da psicanálise na China, projeto iniciado há trinta anos; descrevem o seu desenvolvimento e assinalam proximidades e diferenças entre certos aspectos da cultura chinesa e a psicanálise, o que, no dizer dos autores, “pode ser ilustrado pelo exame de alguns princípios – por exemplo, o da mudança, o da contradição e o da relação ou holismo”. Já Javier García, que foi o primeiro diretor do Instituto Latino-americano de Psicanálise (ILAP) – cuja função é promover a transmissão da psicanálise em países nos quais não há sociedades pertencentes à IPA –, apresenta de modo claro e direto o desafio dos institutos e da formação de analistas na atualidade. Como adequar os novos formatos das demandas sem perder o essencial que recebemos das primeiras gerações de analistas’ O autor transita com lucidez pelas delicadas questões da relação entre a instituição, suas normas e regulamentos e a liberdade inerente à transmissão e ao exercício da clínica psicanalítica.

Oswaldo Ferreira Leite Netto e Sonia Kleiman abordam, em dois trabalhos consis-tentes, temas que estão na ordem do dia em nossa cultura e nos consultórios psicanalíticos. Leite Netto, retomando a questão da sexualidade e do erotismo desde Freud e sua diferença com a postura médica, discute a importante posição da psicanálise e sua contribuição para a despatologização da homossexualidade e a escuta das singularidades. Kleiman, por sua vez, propõe a necessidade de uma transformação de certos aspectos da teoria psicanalítica, de modo a permitir uma abordagem a partir dos vínculos. Nas palavras da autora:

Pensar a partir dos vínculos, diferentemente de pensar sobre os vínculos, implica começar no meio, ou seja, abandonar a ideia de núcleo, de centro ao redor do qual tudo ficaria coagulado. Requer deixar de pensar em cada sujeito como centro, ou pensar o vincular como igual à relação, um e outro. O vincular é produção.

“Realidade virtual e setting: de costas para o futuro’” é o título de um artigo apresentado por um grupo de colegas de São Paulo que se debruça sobre o lugar das novas tecnologias nas subjetividades e no trabalho psicanalítico. Suas indagações ampliam a reflexão sobre as possibilidades e limites destas práticas – indagações ancoradas em experiências e em um estimulante diálogo com colegas de várias latitudes que têm se voltado para este assunto. Finalizamos esta seção com Myrna Pia Favilli, que aproxima as vivências do navegante à experiência do psicanalista frente ao desconhecido da clínica. Qual será o destino destes aventureiros em um mundo mutante como o nosso’ O que restará da ousadia desta tortuosa travessia pelos confins mais remotos da nossa subjetividade’ Com a força da linguagem poética, Favilli transita pelos fundamentos da experiência analítica.

Luís Claudio Figueiredo, em um exercício em torno da natureza da escuta psicanalítica e da escuta poética, alude ao modelo de uma escuta polifônica, resultado da ampliação da capacidade de escuta do analista, enriquecida pela contribuição dos avanços na compreensão dos modos de comunicação e das diferentes organizações psíquicas que envolvem distintos níveis de simbolização, e pelas transformações no lugar do analista. Publicamos também um texto de intercâmbio de autoria de Dominique Scarfone, analista canadense que, comentando um trabalho de Michel de M’Uzan, examina a dimensão traumática da “comoção criativa”, sugerindo que esta pertence à dimensão temporal do “impassado”, própria do inconsciente. Este tema se vincula à questão do Atual na psicanálise, assunto do 74º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, que terá lugar em maio de 2014, no Canadá.

Finalizando, são de muita riqueza os artigos de Roosevelt M. S. Cassorla, Leda Codeço Barone, Patricia Vianna Getlinger e Alfredo Menotti Colucci e Ester Woiler – estes autores sinalizam trilhas de investigação importantes que dizem respeito à atualidade da nossa clínica.

Inauguramos assim nosso ano de 2014 de olho nas mutações e perplexidades – no mundo e em nosso campo. A todos, uma excelente e agradável leitura.

Bernardo Tanis
Editor

Diálogo

Comentários sobre a entrevista

A partir da entrevista de Ivo Mesquita, a autora relata ideias que lhe ocorreram à medida que se deixou afetar pelos comentários do entrevistado. Passeia pelo conceito freudiano de unheimlich, pela noção de sem memória e sem desejo de Bion, e pela literatura, para propor que o comprometimento do analista com a liberdade se expressa na capacidade e/ou possibilidade de expor a si mesmo ao desconhecido e ao estranhamento.

Palavras-chave: unheimlich; vínculo; assombro; tolerância; liberdade.

Este artigo parte de um breve comentário sobre a entrevista de Ivo Mesquita e, lançando mão de uma associação com o Projeto para uma psicologia científica, propõe reflexões sobre experiências de dor e satisfação.

Palavras-chave: mãe; amamentação; perceptos; fruição artística.

Artigos temáticos: mutações e perplexidades

Em uma conversa entre dois colegas psicanalistas, compartilha-se uma experiência clínica na qual um deles é tomado de perplexidade causando-lhe verdadeira mutação em sua postura analítica. A partir disso, percorre-se a trajetória de uma discussão sobre o contexto das mutações no qual a perplexidade pode ocorrer, destaca-se a possibilidade do conhecimento derivado da surpresa e da dúvida, bem como leva-se em conta que, para a Psicanálise, a noção de Eu, e do seu saber, está em conjunção com a tensão inerente à dualidade pulsional.

Palavras-chave: mutações; perplexidade; dúvida/conhecimento; dualidade pulsional; saber do EU.

A China é um país em rápido desenvolvimento, que apresenta necessidade crescente de atendimento psiquiátrico e psicoterapêutico devido a um aumento do sofrimento mental ligado tanto a mudanças na sociedade como a condições traumáticas do passado. O entendimento psicanalítico e as terapias psicanalíticas, cada vez mais, vêm atraindo o interesse dos profissionais e da sociedade. Neste artigo, descrevemos o desenvolvimento da psicanálise na China, e alguns dos desafios envolvidos no ensino da psicanálise e na formação de profissionais em psicanálise e psicoterapia psicanalítica. O conhecimento das diferenças culturais existentes entre a China e o Ocidente é enfatizado.

Palavras-chave: psicanálise; psicoterapia psicanalítica; China; cultura.

Como preservar o fundamental da transmissão da psicanálise das resistências institucionais e culturais contemporâneas e como adequar-se aos novos formatos das demandas de formação sem perder o essencial que recebemos das primeiras gerações de analistas’ Neste ensaio, o autor busca formular algumas respostas a esta questão a partir da sua experiência. A razão da pergunta que dá lugar ao ensaio gira em torno do desafio dos institutos de psicanálise e da formação de analistas na atualidade.

Palavras-chave: formação analítica; análise didática; pluralismo; modelos de formação; plano de estudo.

A revolução freudiana permitiu a fundamentação de uma clínica emancipadora do ser humano e um instrumental para a compreensão da peculiar relação do ser humano com seu desejo. Descaminhos na instrumentalização das teorias psicanalíticas podem levá-las a sustentar posições comprometidas com normatização e prescrições comportamentais alheias às propostas freudianas para a novidade de um “pastor de almas profano”. Psicanálise é essencial e profundamente diferente de medicina e religião no que diz respeito à valorização de determinados comportamentos. O autor preocupa-se com o legado freudiano e a sustentação dessas posições que nos colocam, nós psicanalistas, na contracorrente.

Palavras-chave: medicina; psicanálise; pulsão; homossexualidades; erotismo; poder psiquiátrico; medicalização; teorização; despatologização; preconceito.

Um grupo de psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP percebe a incidência cada vez maior de temas ligados à comunicação virtual em seus encontros clínicos semanais. A reflexão faz-se então necessária a partir da experiência de cada um dos membros e da literatura disponível. Autores como Giovanetti, Dorado de Lisondo, Guignard e Sharff contribuem para a discussão de um ponto de vista psicanalítico, bem como Novaes e Franklin Silva, através de uma abordagem filosófica. Várias vinhetas clínicas são apresentadas.

Palavras-chave: psicanálise; comunicação virtual; realidade virtual; técnica.

O trabalho propõe uma diferença entre pensar nos vínculos e a partir dos vínculos. Nessa segunda opção, é necessário incluir a lógica da multiplicidade, um pensamento rizomático, ou seja, que não coloque o centro nem no sujeito, nem na história, nem no inconsciente, mas sim que transite pelo Entre, a partir do meio. Entre como produção vincular. Essas ideias são trabalhadas a partir do relato de uma consulta familiar.

Palavras-chave: vincularidade; Entre; produção; multiplicidade.

A autora, a partir de uma clínica já experienciada e de leituras diversificadas, propõe refletir sobre qual é a tarefa do psicanalista nestes “novos tempos”. Inicia o texto com um convite a uma viagem. Como os navegadores das descobertas do Novo Mundo, uma viagem ao novo, ao inesperado pleno de surpresas e perigos. Aproxima a vivência e as indagações dos navegantes à experiência dos psicanalistas frente ao sempre desconhecido da clínica. Assinala que “é preciso partir, quando o antigo já não basta”, como o fizeram Colombo e Freud em suas inquietações, assim como o faz aquele que procura uma análise. Traz questões em várias frentes: desde o ponto de partida, o início de uma análise, até o ponto de chegada, que seria o momento do seu término. Assim levanta inúmeras questões que envolvem esta travessia tortuosa e que envolvem, fundamentalmente, a análise de si mesmo, o caminho interno para avalizar sua própria tarefa e a proposta oferecida aos novos analisandos: o encontro consigo na difícil tarefa do viver. Estas reflexões vão implicar, necessariamente, em termos da instituição, o tema da formação analítica.

Palavras-chave: mundo interno; núcleo de identidade; epistemologia; formação analítica; fim de análise

Interface

O texto está dividido em duas partes: (I) a diversidade das estratégias de escuta em psicanálise a partir de Freud, e (II) as correlações entre o que fazemos como psicanalistas e o que fazem nossos colegas que exercem sua hermenêutica sobre textos literários, em especial, poesias. Tentaremos ir além da resposta clichê: “Escuta-se em atenção flutuante”. Como posição ética, a atenção flutuante se mantém ao longo de toda a nossa história; em termos técnicos, os procedimentos vão se diferenciando, sucedendo e articulando em função dos avanços metapsicológicos e psicopatológicos na psicanálise. Hoje prevalece o que convém chamar de escuta polifônica.

Palavras-chave: atenção flutuante; ética da escuta; procedimentos de escuta; escuta poética.

Artigos

O campo analítico reflete aspectos da capacidade de simbolização do paciente e da dupla analítica. Com base na teoria do pensamento de Bion, descrevem-se as vicissitudes da simbolização que se manifestam em um espectro que inclui sonhos e diferentes tipos de não-sonhos. Estes se apresentam no campo analítico por meio de fatos clínicos que revelam diferentes graus de simbolização. Material clínico ilustra como o analista, sonhando fatos clínicos em área psicótica (objetos bizarros) e em área traumática inicial (gestos psíquicos e enactments), promove os processos de simbolização. Dessa forma, o processo analítico amplia a rede simbólica do pensamento.

Palavras-chave: teoria do pensamento; sonho; não-sonho; simbolização; enactment.

Este trabalho retoma a crítica ao conceito de inconsciente proposta pela Teoria dos Campos, de Fabio Herrmann. Para Herrmann, o inconsciente – destituído do estatuto ontológico, substancialista e unitário – é uma lógica produtiva das representações. Ele não existe, mas há na medida em que o método interpretativo (a ruptura de campo) o faz surgir. Outra ideia apontada por esta crítica ao inconsciente é que o efeito desta ordem lógica que se manifesta no sintoma, nos atos falhos e nos sonhos está presente também nos rendimentos normais. Fragmentos da análise de uma criança serão utilizados para ilustrar implicações do conceito na clínica.

Palavras-chave: inconsciente; lógica produtiva; ruptura de campo.

Este artigo procura colocar em discussão a transformação de processos agidos em processos de simbolização no campo transferencial-contratransferencial. A partir da apresentação de um caso clínico, o trabalho focaliza a experiência contratransferencial e seu poder de fornecer níveis fundamentais de comunicação inconsciente; privilegia, no contato da dupla analista e paciente, os elementos não verbais (corporais, musculares, sensoriais, interações cinestésicas, o tom de voz e a cadência etc) em seu potencial comunicativo e, no horizonte, simbolizante; defende que, em casos mais graves, é a experiência compartilhada de situações traumáticas angustiantes e o engajamento do próprio trabalho de simbolização da analista (contratransferência simbolizante) que podem vir a gerar, progressivamente, níveis de simbolização primária (representação da coisa) e níveis de simbolização secundária (representação da palavra).

Palavras-chave: contratransferência; agieren; comunicação não verbal; corpo; simbolização

A reconstrução criativa dos desenhos de uma criança de sete anos permitiu observar que eles correspondiam à expressão de angústias primitivas relacionadas a fantasias arcaicas sobre a concepção, nidação e gestação. Foram três reconstruções: a primeira ocorreu por ocasião da análise, há vinte e nove anos; a segunda foi possível pela digitalização dos desenhos, ampliando a investigação e permitindo o acesso à mente primitiva; a terceira, feita com o reforço dos traços dos desenhos, permitiu alcançar novos níveis de expressão. A capacidade da mente de se inscrever em vários planos, tal qual um palimpsesto, graças à pulsão de vida, presente neste caso, é objeto desta investigação. Os autores sugerem uma leitura em dois níveis: o da realidade presente e o da verdade histórica. Estes vértices possibilitam à mente aproximar-se de sua “verdade”, objeto da psicanálise – “verdade” que, por sua vez, permite a construção analítica da identidade do analisando.

Palavras-chave: desenhos infantis; preconcepção edípica; hipótese abdutiva; verdade histórica (historisch).

Intercâmbio

A partir do trabalho de Michel de M’Uzan sobre a criação literária e, em particular, da noção de “comoção criativa” que ele introduziu nos anos de 1970, o autor examina a dimensão traumática dessa “comoção”. Propõe que esta pertence a uma temporalidade específica, que denomina de “impassado”, ou “tempo atual”, e que seria característica da emergência da “coisa inconsciente”.

Palavras-chave: temporalidade; inconsciente; criação; trauma; Michel de M’Uzan.

Resenhas