Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)
É com enorme satisfação que chegamos aos 50 anos da Revista Brasileira de Psicanálise.
Para este número comemorativo, selecionamos textos de nossos pioneiros, publicados pela revista. Aqui, encontramos um ponto de confluência que já indica nosso histórico caminho: os pioneiros da revista são os pioneiros da psicanálise no Brasil.
A republicação destes trabalhos atende ao intuito de que a história da qual somos parte se preserve a partir da presença de nossos antecessores; que eles falem por suas próprias palavras, que se façam conhecer, que se apresentem ao leitor de hoje com o pensamento de então. E mais: que este material nos ajude a considerar a psicanálise brasileira associada à história de suas gerações, contextualizando o pensamento psicanalítico que nos precedeu e que também nos formou.
Tarefa difícil, nem é preciso mencionar. Mas, dentre tantos, optamos por artigos que consideramos representativos da psicanálise em diferentes momentos, no período entre 1928 e 2000.
Como vocês notarão, abrimos o nosso número com o fac-símile da carta de Freud a Durval Marcondes, agradecendo o envio do primeiro número da Revista Brasileira de Psicanálise, em 1928, com o artigo de Franco da Rocha, então ali publicado.
Isto nos leva ao início da revista, que se dá conjuntamente à criação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, segundo o relato de Virgínia Leone Bicudo e Antônio Luiz Serpa Pessanha (1994), eles próprios pioneiros de nossa história.
Sabemos que a primeira referência a Freud e sua A interpretação dos sonhos aconteceu em 1899, no curso ministrado pelo médico baiano Juliano Moreira, professor catedrático da Faculdade de Medicina de Salvador. Em 1914, Genserico de Souza Pinto, médico cearense, defende a tese Psicanálise: a sexualidade nas neuroses, na Faculdade Nacional de Medicina (Salim, 2010).
O estudo mais sistematizado da psicanálise, porém, ocorre com Francisco Franco da Rocha, cuja aula inaugural sobre a “doutrina” de Freud, na Clínica Neuropsiquiátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1919, foi reproduzida como artigo pelo jornal O Estado de S. Paulo com o título “Do delírio em geral” (Sagawa, 1994). Em 1920, ele publica um dos primeiros livros psicanalíticos, O pansexualismo na doutrina de Freud.
Como seu professor Franco da Rocha, que além de médico era músico, escritor e ornitólogo, o jovem médico Durval Bellegarde Marcondes era também escritor e poeta, com estreitos vínculos com a geração modernista brasileira. Seu poema “Sinfonia em preto e branco” foi publicado na Klaxon em 1922, juntamente com “Pauliceia desvairada”, de Luiz Aranha, e “São Pedro , de Mário de Andrade, leitor atento de Freud. Os artistas do modernismo brasileiro foram seus parceiros na divulgação da psicanálise, uma vez que utilizavam as teses freudianas em suas reflexões sobre a produção literária e sobre a questão da identidade nacional (Oliveira, 2002).
Franco da Rocha foi o fundador e o diretor do Hospital do Juquery, que por muito tempo foi lugar exclusivo das inovações no tratamento psiquiátrico em São Paulo, e onde se mantinha a preocupação de ampliar a compreensão da doença mental a partir de mecanismos exteriores à psiquiatria (Ribeiro, 2010).
Por sua vez, Durval Marcondes, em 1926, apresenta a tese O simbolismo estético na literatura: ensaio de uma orientaç.o para a crítica literária baseada nos conhecimentos fornecidos pela psicanálise, em que, na esteira modernista, ressalta a importância do simbolismo na literatura e a contribuição da psicanálise para a crítica literária.
Assim, ambos compartilhavam o compromisso de divulgar e difundir o conhecimento psicanalítico extramuros, bem como ampliar o seu entendimento, utilizando-o como ferramenta de trabalho (Oliveira, 2002).
Em outubro de 1927, no salão nobre do Liceu Nacional Rio Branco, foi fundada a Sociedade Brasileira de Psicanálise, uma organização dedicada ao estudo e à difusão do pensamento freudiano, tendo Francisco Franco da Rocha como presidente e Durval Marcondes como secretário. Desta sessão, participaram os médicos Osório César, Raul Briquet e Pedro de Alcântara Marcondes Machado, os escritores modernistas Menotti Del Picchia e Cândido Motta Filho, e o educador Lourenço Filho (Sagawa, 1994).
Mas o interesse de Durval era o de criar um centro de formação que seguisse o modelo da IPA, algo que a Sociedade Brasileira de Psicanálise não era. Conseguiu então, por intermédio de Ernest Jones, que chegasse ao Brasil, em 1936, a psicanalista alemã Adelheid Lucy Koch, que aqui exerceu a função didática. Desta forma, em 1937, São Paulo tem o primeiro centro de formação psicanalítica da América Latina: o Grupo Psicanalítico de São Paulo, que contava entre seus primeiros candidatos o próprio Durval Marcondes, Flávio Dias, Darcy Uchôa, Virgínia Bicudo, Frank Philips e o advogado José Nabantino Ramos (Oliveira, 2002).
Com a presidência de Durval, o Grupo foi reconhecido pela IPA em 1944, mas por conta da guerra só foi ratificado como Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 1951, no XVII Congresso Internacional, em Amsterdã (Bicudo & Pessanha, 1994).
Importante considerar que o trabalho de divulgação da psicanálise já acontecia desde 1927, na Sociedade Brasileira de Psicanálise. É este grupo que, em 1928, publica o primeiro número da Revista Brasileira de Psicanálise – primeiro e único, que, enviado por Durval Marcondes a Freud, motiva a carta de agradecimento antes mencionada.
O empenho de ampliação e difusão continua nos anos seguintes. Em 1934, Durval assume como professor de higiene mental no Curso de Educadoras Sanitárias do Instituto de Higiene, do qual Virgínia Leone Bicudo e Lygia Alcântara do Amaral fazem parte (Moretzsohn, 2014). Em 1939, cria o Serviço de Higiene Mental Escolar e sua Clínica de Orientação Infantil, onde também trabalhavam Virgínia e Lygia. Ali, elas deram início ao trabalho de atendimento psicanalítico com crianças, que mais tarde contou com a colaboração de Frank Philips, recém-chegado da Inglaterra (Moretzsohn, 2014).
Firme no propósito de divulgação, nos anos 1950 Virgínia Bicudo manteve na Rádio Excelsior o programa Nosso Mundo Mental, o mesmo nome da coluna dominical que escrevia para a Folha da Manhã (Sagawa, 1994).
Em maio de 1966, Virgínia e Serpa Pessanha criam o Jornal de Psicanálise, cujo sucesso estimulou o relançamento da Revista Brasileira de Psicanálise no ano seguinte. Agora publicada ininterruptamente, seu êxito deveu-se, em parte, à colaboração de Nabantino Ramos, também proprietário do conglomerado de comunicação da Folha da Manhã (Sagawa, 1994). Em 1975, a revista foi doada à Associação Brasileira de Psicanálise (Bicudo & Pessanha, 1994).
Mantendo a linha editorial de preservar nossa memória, convidamos todos os ex-editores da revista a escrever um breve texto sobre o seu período de editoria, que aqui publicamos.
É claro, porém, que este número comemorativo amplia a discussão para além da divulgação e da difusão do conhecimento psicanalítico. Ele nos leva a pensar o que faz de uma revista uma revista de psicanálise. E, ainda, o fato de sermos uma revista brasileira de psicanálise nos estimula a considerar a produção de uma psicanálise brasileira e a discutir a função da revista de fomentar não apenas a construção de leitores, mas também a de autores, levantando questões como: Qual a especificidade da escrita psicanalítica? Como publicar psicanálise, particularmente o caso clínico, e qual a ética de sua publicação? A escrita do caso clínico constitui um gênero literário? Como fazer com que cada analista em formação construa em si o ser um autor psicanalista? São questões que levamos como desafio nestes próximos anos de editoria.
Feliz 50 anos!
Silvana Rea
Editora
Referências
Bicudo, V. L. & Pessanha, A. L. S. (1994). Meio século de história: 1944-1994. Revista Brasileira de Psicanálise, 28(3), 413-418.
Moretzsohn, M. A. G. (2014). De Berggasse a Villa Nova: uma aventura vienense na pauliceia desvairada. Jornal de Psicanálise, 47(87), 251-260.
Oliveira, C. L. M. V. (2002). Os primeiros tempos da psicanálise no Brasil e as teses pansexualistas na educação. Ágora, 5(1), 133-154.
Ribeiro, P. S. (2010). Franco da Rocha e publicação de suas ideias: uma análise do meio social na explicação etiológica da loucura. Cadernos de História da Ciência, 6(1), 27-56.
Sagawa, R. Y. (1994). A história da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. In L. Nozek et al., Álbum de família (pp. 15-28). São Paulo: Casa do Psicólogo.
Salim, S. A. (2010). A história da psicanálise no Brasil e em Minas Gerais. Mental, 8(14).
não disponível
O presente trabalho refere-se à introdução da psicanálise em São Paulo, a primeira cidade sul-americana a recebê-la. Seus introdutores entre nós foram o professor Franco da Rocha, precursor, e Durval Marcondes, realizador. O primeiro, professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1919 deu uma aula em que ressaltava a importância das ideias de Freud. Desta aula teve conhecimento Durval Marcondes, que iniciava seu curso médico e que, de imediato, se apaixonou pelas novas ideias apresentadas. Sua vida então se orientou no sentido de lutar para que germinasse o movimento psicanalítico em nosso país. Formado em 1924, Durval Marcondes começou a clinicar e viu confirmados, na prática, os primeiros achados da psicanálise da época. Em 1927, organizou o primeiro grupo de estudos de psicanálise. Neste mesmo ano, fundou-se a primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise, com a satisfação de Freud, que a ela se referiu em carta a Ferenczi, de 4 de janeiro de 1928. Em 1928, Durval Marcondes foi ao Rio de Janeiro para lá organizar a Sociedade Brasileira de Psicanálise. Deste primeiro grupo, o único a persistir em seu interesse pela psicanálise foi Durval Marcondes. A primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise foi reconhecida pela IPA em 1929. Esta Sociedade, que durou alguns anos e depois veio a desaparecer, chamou a atenção para a psicanálise em nosso meio, além de nos colocar em contato com o meio psicanalítico internacional. Paralelamente, Durval Marcondes trabalhava pela psicanálise, difundindo-a através de cursos, artigos para a imprensa e pela publicação, em português, de um trabalho de Freud, cuja tradução empreendeu juntamente com J. B. Correia. Acima de tudo, Durval Marcondes desejava que viessem analistas didatas para o Brasil, a fim de formarem devidamente nossos analistas, nos moldes exigidos pela IPA. Finalmente, em 1937, a doutora Adelheid Koch chegou a São Paulo e logo iniciou a preparação técnica de nossos candidatos para a análise. Fundou-se então a segunda Sociedade Brasileira de Psicanálise, graças aos esforços de Durval Marcondes e Adelheid Koch. Dessa forma, é São Paulo, historicamente, o centro pioneiro da formação sistemática de analistas na América Latina. Adelheid Koch, formada em Medicina pela Universidade de Berlim e membro da Sociedade Psicanalítica da mesma cidade, obtivera em 1936 o direito de trabalhar como analista didata no Brasil. Tal direito lhe fora conferido pelos doutores Jones e Fenichel. Durante anos foi ela a única analista professora, formando a geração de analistas que viria depois. Durval Marcondes foi um de seus primeiros candidatos. Em 1944, por intermédio da doutora Koch, a nova Sociedade Brasileira de Psicanálise foi reconhecida provisoriamente pela IPA. Seu reconhecimento em caráter definitivo deu-se em 1951, por ocasião do Congresso Psicanalítico Internacional realizado em
Amsterdam. Hoje a psicanálise é estudada em várias de nossas escolas superiores, como na Escola de Sociologia e Política e em faculdades de medicina. Nessas notas, restringimo-nos apenas às figuras de Durval Marcondes e Adelheid Koch, pela sua obra pioneira e pelo muito que São Paulo lhes deve.
Palavras-chave: história da psicanálise; pioneiros; Franco da Rocha; Durval Marcondes; Adelheid Koch.
Através do estudo de dois casos clínicos, a analista tece considerações em torno da passagem da fase da latência para a maturidade – o período da adolescência. Servindo-se desses casos – um em que a análise atinge pleno êxito e outro em que se vê barrada por circunstâncias prejudiciais –, o estudo em questão aborda a influência exercida pelos pais na viabilidade do tratamento analítico de adolescentes, bem como esclarece o leitor sobre a própria natureza da adolescência.
Palavras-chave: latência; adolescência; tratamento analítico.
O processo analítico é uma retificação do passado. Uma de suas condições básicas é a revivência dos acontecimentos patogênicos, a qual envolve tanto o paciente quanto o analista. Ao voltar, através da regressão, ao ponto crítico da gênese de seus conflitos, o paciente tem a possibilidade de retomar a linha de desenvolvimento que ficou anteriormente prejudicada. Isto se dá na medida em que as particularidades de seu relacionamento com o analista o permitam. Além de uma tendência regressiva, a transferência contém uma tendência progressiva que cabe ao analista favorecer, guiado pela acuidade e pela flexibilidade de sua aptidão contratransferencial. O meio pelo qual essa aptidão se manifesta é a interpretação. Afora seu significado puramente intelectual, a interpretação encerra outras mensagens ligadas à atitude psíquica do analista. Disso resulta existir um sentido transferencial na interpretação dita não transferencial. Ela é transferencial através das comunicações adicionais que nela existem, ao lado de seu conteúdo intelectual específico. É o estímulo dessas comunicações implícitas na interpretação que lhe confere sua função mutativa. Ao analista é atribuída pelo paciente a qualidade de objeto propício ou eufrenogênico, que, em contraposição ao objeto não propício ou disfrenogênico de sua infância, teria sido, na situação histórica que está sendo revivida na análise, o objeto apropriado para a solução de seus problemas psíquicos. A intervenção interpretativa do analista é inspirada na contratransferência. É pela participação empática nos problemas do paciente e suas causas que o analista pode captar sua motivação profunda. O elemento fundamental desse processo está na identificação. O autor examina os diferentes tipos de identificação regressiva que têm lugar no analista (identificação com o ego infantil do paciente, identificação com o objeto infantil não propício ou disfrenogênico, identificação com o objeto infantil propício ou eufrenogênico etc.), identificações essas que permitem ao analista enquadrar-se na situação conflitiva do paciente e produzir a interpretação. São mencionadas as qualidades restritivas próprias a esses tipos de identificação. A seguir, são postos em foco os perigos que essa identificação pode acarretar, os quais resultam em certos tipos de resistência contratransferencial. A base mais profunda dessa contratransferência está naquilo que o autor chamou ameaça regressiva existencial. Há o temor inconsciente de ser absorvido de modo irreversível na situação do analisando e perder a posição psíquica de autonomia e segurança. O analista não suporta acompanhar o paciente no processo regressivo, receando ser atingido na integridade de seu próprio ego. As angústias que, no analista, traduzem tais perigos assumem aspectos paranoides (medo diante das fantasias do paciente) ou depressivos (pessimismo, sentimento de culpa). As defesas habitualmente postas em jogo são, por um lado, de caráter inibitório (imobilidade do analista) e, por outro lado, de feição onipotente (atitude de superioridade). A onipotência
do analista assume, muitas vezes, a qualidade de defesa maníaca, que se manifesta por um impulso à atuação sob a forma, por exemplo, de uma forte tendência ao asseguramento ou de uma produção excessiva de interpretações. A dissecção e a melhor compreensão do sistema de identificações regressivas do analista e do papel desse sistema no trabalho analítico são, como se vê, elementos básicos na elucidação da essência e do mecanismo íntimo de nossos recursos técnicos.
Palavras-chave: processo analítico; regressão; transferência; interpretação; identificação.
A regressão é, de certa forma, o acompanhamento de cada análise e isto deve ser diferenciado do acting out. A incapacidade para tolerar frustrações pode ser a causa de regressões mais profundas. O insight ganho através da análise é o mais importante fator para a regressão, por causa da inveja que este insight estimula. A acentuada confusão sentida pelo paciente, na situação regredida, pode tornar o analista negligente com o que realmente está acontecendo; daí a importância de se interpretar não só a natureza positiva da regressão como também seu significado negativo. A regressão possibilitada na análise pode tornar o paciente capaz de alterar alguns aspectos da primitiva catástrofe remanescente na sua mente. Diferenças de opinião entre analista e paciente emergirão continuadamente; portanto, um constante acordo obliterará uma profunda instabilidade na transferência, da mesma forma que a ansiedade do paciente com relação à regressão. Assim, um conluio dentro de tal situação poderá ser mais bem evitado se o analista não tiver necessidade de sentir suas teorias impregnáveis. A atitude do analista para com a memória e o desejo se relaciona diretamente com o problema da regressão. A “cura” é a alternativa sedutora oferecida à capacidade do paciente para verificar quem ele é, ou seja, entre o reconhecer sua realidade psíquica ou ser “curado” de tal necessidade.
Palavras-chave: regressão; acting out; Bion; cura.
A realidade social se insere inevitavelmente na situação analítica através das personalidades do paciente e do analista. Entretanto, as posições de paciente e de analista são diametralmente opostas. Enquanto o primeiro revive suas experiências pretéritas no relacionamento com o analista, este se utiliza da técnica psicanalítica para obter um conhecimento sobre a realidade psíquica elaborada sob a influência de fatores míticos e místicos, ideológicos e doutrinários, científicos e tecnológicos, em suma, sob a influência de processos das estruturas sociais.
Palavras-chave: realidade social; personalidade; paciente; analista; estrutura social.
Trata-se de um trabalho apresentado pelo autor à mesa-redonda sobre o tema no X Congresso Latino-Americano de Psicanálise. A psicanálise, em sua origem, está intimamente relacionada à medicina, a uma visão médica, nem sempre mencionada mas reconhecida nas ideias de doença, patologia, prognóstico, resultados, tratamento, e também está impregnada de ideias de cura, fundamentadas no princípio do prazer e na experiência sensorial. Os analisandos alimentam fantasias onipotentes de livrar-se de sofrimentos psíquicos, anseiam um estado de bem-estar ou idealizam alcançar, através da psicanálise, qualidades que são mais próprias das divindades. Estes desejos podem ser entretidos pelos analisandos e pela parte onipotente não analisada dos analistas; desse modo, a psicanálise corresponderia a um verdadeiro processo de purificação religiosa. Os desejos de cura ou de um ideal moral, assim entretidos, impregnam a prática da psicanálise, a teoria e a teoria da técnica psicanalíticas, estabelecendo comportamentos característicos que podem ser conhecidos quando observamos mais livremente o nosso modo de ser na prática da psicanálise. O autor aborda como essas deformações da técnica e da teoria, segundo sua opinião, podem ser reconhecidas nas diversas etapas da história da psicanálise. Com respeito à transferência, diz o autor: “A concepção de compreender a relação analítica em termos da teoria da transferência, em termos da relação inconsciente com os objetivos primitivos, pode ser substituída pela concepção de tentar conhecer, através da observação psicanalítica, em statu nascendi, a origem, as características de formação da imagem interna, que o analisando vai fazendo do analista durante a experiência analítica pelo operar dos elementos não desenvolvidos de sua personalidade, e também conhecer o seu modo de relacionar-se, de pensar e de aprender desta experiência e deduzir os fatores que estão em jogo neste processo.” Após comentários sobre trabalhos de Freud, K. Abraham, M. Klein e J. Riviere a respeito do tema em questão, afirma que o impasse analítico é um conceito inspirado pelos desejos de cura ou de um ideal moral, intimamente relacionados a uma visão médica ou religiosa da psicanálise. É um conceito estabelecido e aceito entre os psicanalistas que têm em comum este vértice. Por fim, refere-se à tentativa que, há algum tempo, vem fazendo de trabalhar com uma disciplina
para afastar desejos, memórias e compreensão, e segundo o vértice psicanalítico, objetivando as suas ideias sobre o tema com material clínico.
Palavras-chave: cura; prazer; experiência sensorial; fantasia; transferência.
O autor trata dos percalços por que passou a Revista Brasileira de Psicanálise, desde que surgiu a ideia de se ter uma revista até os dias de hoje, em que ela se tornou um órgão oficial da Associação Brasileira de Psicanálise, após cumprir uma trajetória tumultuada, em que não faltaram obstáculos a vencer. Nascida a ideia de uma revista de psicanálise, com a finalidade de estimular a produção de trabalhos psicanalíticos, primeiramente de São Paulo e posteriormente de todas as Sociedades brasileiras, instalou-se um longo processo de amadurecimento do projeto, que permaneceu à espera de condições favoráveis que o fizessem vicejar. O primeiro passo para a concretização da ideia da revista foi dado quando passou a ser publicado o Jornal de Psicanálise. Com o apoio entusiasta de alguns colegas, a revista foi lentamente se tornando uma realidade. Nabantino Ramos, ligado à imprensa e à psicanálise, orientou todo o processo de estruturação da revista, que afinal foi lançada em 1967, por ocasião da I Jornada Brasileira de Psicanálise. O autor, que foi diretor editorial da revista por quatro anos e seu redator-chefe no biênio 1969-1970, relata as dificuldades econômicas que levaram à doação da revista, por parte da Sociedade de São Paulo, à ABP. Sendo veículo de expressão de todos os psicanalistas brasileiros, ela vem cumprindo as finalidades que lhe foram atribuídas, até os dias de hoje.
Palavras-chave: história da RBP; estruturação da RBP; dificuldades da RBP; RBP hoje.
Neste trabalho, que se refere à análise de uma personalidade psicótica, trazemos à consideração três pontos fundamentais: (a) Transcendendo o mundo psicótico, parece existir uma inteligência e uma estranha intuição e arte que funcionam em termos completamente desconhecidos e incompreensíveis para o nosso mundo lógico racional; esta inteligência, fortalecendo os vértices do mundo psicótico, captando perigos imperceptíveis para a razão, organiza e comanda as defesas psicóticas, no sentido que considera a solução mais adequada para evitar a destruição total; (b) Na base mais primitiva do complexo de Édipo, parece existir algo como uma mutilação ao próprio direito de ser, de existir, ocasionada, talvez, por um catastrófico desencontro criança-mãe, que faz a primeira ficar sem ponto referencial para sentir-se existente, tombando num caos através de angústias inimagináveis; (c) Alguns pacientes peculiares têm seu limite de suporte para as angústias decorrentes do conhecimento de profundos níveis da mente; até que limite deverá o analista prosseguir no seu trabalho de investigação e conhecimento, atendendo às limitações do próprio paciente?
Palavras-chave: personalidade psicótica; intuição; inteligência; defesa psicótica; angústia.
A autora cita seus trabalhos anteriores sobre o assunto, “Psicologia da mulher” e “Frustração oral e falicidade”, estudando neste último o aparecimento de condutas ativas, vistas como “masculinas”, consequentes a antigas e intensas fontes orais não resolvidas. No presente trabalho, tenta compreender a mulher levando em conta quatro elementos: castração, identificação, masoquismo e narcisismo. A castração não pode ser considerada o problema fundamental da mulher, porquanto seria apoiar o desenvolvimento de sua personalidade em um órgão que existe no outro. O masoquismo, depois que se admitiu a existência do masoquismo moral no homem, deixou de ser apanágio feminino. A identificação apresentaria na mulher uma intensidade muito grande, sobretudo se a estudarmos na mulher que está amando, e pode levá-la a graus maiores ou menores de perda da identidade. Finalmente, o narcisismo, que segundo H. Deutsch pode ser usado como guardião para protegê-la da perda de sua identidade, principalmente quando houver tendência a uma renúncia masoquista intensa. A autora pensa que Freud, a partir de Dora, teve dificuldades para entender a mulher por razões pessoais e por ter tido predominantemente pacientes histéricas, hábeis no uso da vingança.
Palavras-chave: conduta ativa; castração; identificação; masoquismo; narcisismo.
Baseado na teoria psicanalítica da dualidade dos instintos, o de vida e o de morte, o autor propõe uma concepção para a apreensão e o estudo da manifestação psicossomática. Esta poderia ser consequência, expressão e também defesa contra a percepção da ação simultânea dos dois instintos. Vista assim, a manifestação psicossomática teria um caráter integrativo. O autor tenta consubstanciar esta maneira de ver com argumentos e material clínico apresentados no trabalho.
Palavras-chave: psicossomatização; percepção; instinto de vida; instinto de morte; integração.
Para os autores deste trabalho, a função mental se inicia com o primeiro registro de uma percepção sensorial. Atribuem, às operações de perceber e de registrar, significados diversos. Existe um sujeito, o aparato que registra, e existe um objeto registrado. O objeto do registro (a ser registrado) é denominado de objeto originário concreto, que compreende o corpo no sentido físico e o conjunto de sensações esparsas que provém deste corpo. Sob a pressão das sensações físicas violentas e marasmáticas, perigosas também para um funcionamento físico harmônico, e na presença da rêverie materna, o aparelho mental inicia a sua função que é tanto de registro como de contenção. Alguns conceitos são formulados para dar conta desse processo: eclipse seria a redução progressiva do espaço ocupado inicialmente pelas sensações de marasmo, que vão cedendo lugar a modos mais funcionais para a sobrevivência do indivíduo no ambiente; por objeto originário, evoca-se a diversidade originária e original que cada indivíduo apresenta ao nascer, originalidade que vai acompanhá-lo durante toda a sua vida; por objeto concreto, atesta-se que é a partir desta “concretude” do objeto (qualidade de ser concreto), ou seja, das características físicas do bebê, que se desenvolve a mente. Para que o eclipse do objeto originário concreto possa ter lugar é necessário que exista uma mãe para atender o bebê, que com suas qualidades perceptivas e sua atenção alimente nele uma confiança que lhe consinta permanecer em relação com o mundo externo. É a permanência
desta confiança primária que, reforçando o vínculo objetal, permite a estruturação dentro da criança de um sistema binário físico-psíquico. O início do eclipse dá vida ao funcionamento mental e ao processo de diferenciação entre o bebê e a mãe. Um ponto de particular interesse para os autores é o do aparecimento das emoções, zona intermediária entre ser somente sensações e ser pensante. Consideram que o caminho do desenvolvimento psíquico parte da percepção sensorial, passa pelas emoções, para então se tornar cada vez mais abstrato, até alcançar a simbolização e o pensamento. Com o objetivo de mostrar a utilização deste modelo, apresentam três situações clínicas.
Palavras-chave: relação corpo-mente; percepção sensorial; rêverie; ser pensante; relação analítica.
Na psicanálise, existe uma lacuna relativa ao conceito de intuição. Freud mencionou o termo apenas três vezes, sem ater-se a ele, sem defini-lo, demonstrando pouco caso. No trabalho de seus discípulos, uma idêntica indiferença pode ser encontrada. Por quê? Será porque o dissidente Jung o valorizou? Ou por medo de que a psicanálise poderia vir a ser considerada não científica, caso o uso da intuição fosse reconhecido no trabalho clínico? Depois de tantas infrutíferas pesquisas bibliográficas, encontramos em Bion um interesse claro pela função intuitiva, considerando-a um artifício fundamental do analista. A alusão à intuição, sem a menção do termo, é frequente nos trabalhos psicanalíticos posteriores a Freud. Os que o desvalorizam usam-no; quem o usa não o define; quem o valoriza o usa entre aspas. A pouca clareza relativa ao termo na psicanálise favorece a anonimidade de sua função. Este artigo estabelece relações entre alguns dos poucos autores que se referiram especificamente à intuição (Jung, Bion, Grinberg, Medina, Trinca etc.), na tentativa de construir uma definição para esta função. Contudo, quando depois disto se disser que algo é intuição, ainda assim alguém poderá afirmar ser outro o processo – o que evidencia a lacuna que permite que se atribua o mesmo termo para outros princípios teóricos e definições conceituais. Se não se puder chegar a uma definição amplamente aceita, torna-se necessário observar como os autores aqui mencionados se utilizam da intuição.
Palavras-chave: intuição; transferência; empatia.
Em nossa formação analítica, somos bem treinados a lidar com o material do paciente quando ele distorce, projeta, imagina, alucina, quando está no mundo do “como se”, quando nos sente pelo que nós não somos. Relembra-se, porém, neste artigo, citando exemplos clínicos, que o paciente não somente deforma a realidade, mas às vezes é capaz, pela intuição, de captar verdades íntimas e secretas do analista. O que fazer nestes casos? Raríssimas são as respostas a respeito desta questão dentro das obras de técnica psicanalítica e ainda menos por parte dos supervisores. Poderíamos, pelo menos em certos casos, sendo que o analisando veio conosco para se conhecer melhor, torná-lo ciente de seus dotes intuitivos, quando os tem? Salienta-se no artigo a importância de sabermos perceber, no aqui e agora do setting, pelo material associativo, onírico e transferencial do cliente, o eventual aparecimento de captações intuitivas e de como ele as utiliza. Isto nos permite, também, ter uma ideia de como funcionou ou funciona em outras situações, em termos de decifrações inconscientes dos dados ambientais.
Palavras-chave: intuição; técnica; transferência; sonho; supervisão.
Ao tratar, numa reflexão psicanalítica, do problema da construção da sexualidade e da fertilidade, assim como dos inúmeros significados que pode adquirir na vida psíquica esta construção, a autora privilegia o medo da fertilidade, medo este que mobiliza a situação de violência na vida mental e social. Na genealogia desta situação de medo e violência, a autora destaca a posição de Laio no mito de Édipo, por meio da qual ilumina o material clínico de iversos pacientes.
Palavras-chave: sexualidade; fertilidade; medo; violência; significado.
Os problemas psicanalíticos mais comuns requerem, não raro, os mais inusuais processos de demonstração. Este texto deve ser lido como uma ficção teórica, bem assim as pessoas, locais, situações, entidades e teorias mencionados, em que qualquer semelhança com figuras reais será mera coincidência, a menos que não o seja. De mais a mais,
coincidência é quando duas realidades se encontram de maneira indistinguível.
Palavras-chave: coincidência; obra de arte; realidade psíquica.
Neste artigo, o autor propõe ser impossível falar do futuro sem que se esteja imerso no destino humano, que tem um passado, um presente e um futuro. Ressalta a importância de retomar o passado para incorporá-lo à reflexão psicanalítica e faz um alerta para que a teoria não se transforme em doutrina. Também destaca o valor da intersubjetividade, da troca afetiva que aproxima e permite ao analista estar junto de seu paciente.
Palavras-chave: psicanálise; futuro; passado; teoria; intersubjetividade.
O trabalho tenta rastrear os processos intersubjetivos que podem estar na base da ocorrência de determinados estados emocionais do analista. É dada ênfase à ocorrência de identificações projetivas por parte dos pacientes, o que poderia explicar ditos estados. A recorrência frequente ao conceito de identificação projetiva como fator explicativo não só ampliou seu campo de abrangência como também alterou o significado original (uma fantasia) que Melanie Klein lhe atribuiu. Dada essa indevida e enganosa ampliação do poder explicativo do conceito, surge a necessidade de investigar outros processos cuja presença seria responsável por algumas reações emocionais ou, mesmo, atuações do analista. Algumas vias alternativas, já investigadas na literatura psicanalítica, são discutidas. O valor de uma discussão desse tipo reside na importância de se prover o campo da análise de instrumentos conceituais aptos a abordar os processos clínicos na sua dinâmica, evitando-se, assim, meras explicações fenomenológicas que, sem profundidade, acabam conferindo ao acontecer da sessão um aspecto mágico, até esotérico. A atenção a esses aspectos interacionais na análise recoloca em pauta, inevitavelmente, o confronto entre as concepções que privilegiam o plano intersubjetivo na situação analítica. Este encaminhamento da questão mostra que, se lidamos com um determinado enfoque e com seus conceitos correlatos, temos de alinhá-los, de forma coerente, a outros conjuntos de conceitos que fazem parte da trama teórica com a qual nos identificamos. Sem esse cuidado, nos arriscamos a transformar a teoria e o método psicanalíticos num quebra-cabeça cujas
peças jamais se encaixam.
Palavras-chave: identificação projetiva; comunicação paciente–analista; fantasias inconscientes; intersubjetividade.
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