Carta-convite “Envelhecer em psicanálise”

da Revista Brasileira de Psicanálise

Orientação aos colaboradores | 12/2018

Carta-convite

Envelhecer em psicanálise

 

Shall I compare thee to a summer’s day? [1]

Thou art more lovely and more temperate:

Rough winds do shake the darling buds of May,

And summer’s lease hath all too short a date;

Sometime too hot the eye of heaven shines,

And often is his gold complexion dimm’d;

And every fair from fair sometimes declines,

By chance or nature’s changing course untrimm’d;

But thy eternal summer shall not fade,

Nor lose possession of that fair thou ow’st;

Nor shall death brag thou wander’st in his shade,

When in eternal lines to time thou grow’st:

So long as men can breathe or eyes can see,

So long lives this and this gives life to thee.

WILLIAM SHAKESPEARE, “Soneto 18”

 

bobo [dirigindo-se ao rei Lear]: Não devias ter envelhecido antes de ficares sábio.

WILLIAM SHAKESPEARE, Rei Lear

 

O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. … O valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

SIGMUND FREUD, “Sobre a transitoriedade”

 

O tempo urge, e a vida é uma só, dizia-me frequentemente o Dr. José Longman durante minha análise com ele, que durou 12 anos, até que um tumor no pulmão encerrou sua vida, ainda aos 72 anos de idade. Não havia tempo a perder. Cada instante passado nunca retornaria, e as oportunidades perdidas poderiam não mais se apresentar, uma vez passadas. Era necessário aproveitar cada momento, aquilo que ele apresentava e o que se poderia extrair dele, em vez de ficar à espera de um tempo em que a vida seria conforme às expectativas, para aí então se decidir a vivê-la. Não há ensaio para a vida. O fato é que fiquei privado de sua valiosíssima companhia muito antes do que gostaria. Entretanto, alertado quanto à escassez do recurso insubstituível, penso que fui capaz de aproveitar ao máximo o trabalho que fizemos juntos. Eu era muito jovem quando iniciei essa análise, mas a passagem do tempo e o envelhecer não foram desconsiderados como algo extremamente essencial.

Em situação correspondente ao soneto de Shakespeare, Frank Julian Philips,[2] durante um seminário clínico em 1987, relatou uma história que disse ser verdadeira. Um garoto muito apegado à avó indagou-lhe aflito como seria quando ela não estivesse mais com ele, o que faria quando ela não estivesse mais viva, ao que a avó teria respondido: “Toda vez que você pensar em mim, eu vou estar viva!”.

Um fenômeno impactante é dar-nos conta de que somos transitórios e que nossa importância no mundo ou no cosmos é insignificante. Muitos podem fazer coisas mirabolantes ou desencadear guerras sanguinárias como modo de se tornarem “eternos” (uma síndrome de Aquiles?). Lembro-me de um meme que tem circulado pelas redes sociais, em que se apresenta uma foto da Via Láctea com a Terra e outra sem. Na verdade, é a mesma foto: não fazemos a menor diferença. Mas podemos ser importantes para nós mesmos no piscar de existência que nos é concedido? Outra analista dizia-me que o desejo de ser importante era desastroso. Penso que é fato, pois se pode tentar desenvolver um personagem “notável” que usurpa a vida daquele que o produz.

Reconheço que o tempo passou para mim quando menciono para algumas pessoas mais jovens, como se fossem referências óbvias, alguns nomes da cultura universal. Grandes estrelas de Hollywood de outrora tornaram-se nomes sem significância ou registro.

Sentimos uma angústia ao verificar que aqueles que foram nossos decanos e referências envelhecem e morrem.[3] Na nossa profissão, é possível seguir trabalhando indefinidamente, pois é das poucas em que, com a maturidade, a experiência pode nos tornar mais argutos. A contrapartida, contudo, também pode ser real, visto que se pode perder a humildade e viver como se fosse iluminado, não tendo mais o que aprender. Há um tempo para parar?

Nos nossos pacientes, vemos amiúde a aflição de observarem que seu tempo vai diminuindo, mas não sabem se a maneira como vivem realmente atende às suas autênticas necessidades. Com muita frequência sequer sabem o que realmente querem, e temem que a vida se encerre sem que cheguem a saber.

Mulheres que alcançam a faixa dos 50 ficam aflitas com a perda do viço e apreensivas de que sem a juventude se tornem descartáveis. Não raramente o mesmo pode ocorrer com os homens. Surge o medo da perda da potência sexual e da libido, da limitação das capacidades físicas e mentais, da finitude. Problemas de saúde até então desconhecidos começam a aparecer. Muitos não se reconhecem ou não querem se reconhecer na imagem que observam refletida no espelho. Torna-se igualmente mais proeminente a angústia da perda de pessoas amadas e significativas, e também o temor da solidão e de um final de vida desamparado e senil.

Em contraponto, há figuras respeitáveis como Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg, Laura Cardoso, Ney Matogrosso, Ary Fontoura, Paul McCartney e Jane Fonda, que continuam extremamente produtivos e arrebatando plateias, a despeito da idade que têm. O que os mantém jovens?

Recentemente, ao ler uma biografia da grande Sarah Bernhardt, soube que quase até os 78 anos que viveu, volta e meia, encarnava papéis de jovens como Hamlet e Aiglon (como ficou conhecido o filho de Napoleão) da forma mais convincente possível, deixando a audiência estupefata.

Por outro lado, é possível observar adolescentes que parecem já estar velhos e senis.

O que é envelhecer? Como é o envelhecer de um paciente? Como ajudá-lo a lidar com a inexorabilidade do tempo? Como um analista lida com essa mesma questão no que lhe diz respeito?

Convidamos os colegas a se debruçar sobre esse tema, que nos pareceu tão importante, e a submeter seus artigos para o próximo número da RBP.

Os trabalhos deverão ser encaminhados para o email da revista –
rbp@rbp.org.br – até a data-limite de 19/03/2024. As orientações para a submissão de artigos encontram-se em nossa página eletrônica: www.rbp.org.br.

 

 

Claudio Castelo Filho

Editor

 

[1] Considero que todas as traduções que encontrei deixam muito a desejar quanto à beleza e à força dos versos originais. A que apresento a seguir, contudo, pode dar uma aproximação razoável da essência: “Se te comparo a um dia de verão/ És por certo mais belo e mais ameno/ O vento espalha as folhas pelo chão/ E o tempo do verão é bem pequeno./ Às vezes brilha o Sol em demasia/ Outras vezes desmaia com frieza;/ O que é belo declina num só dia,/ Na eterna mutação da natureza./ Mas em ti o verão será eterno,/ E a beleza que tens não perderás;/ Nem chegarás da morte ao triste inverno:/ Nestas linhas com o tempo crescerás./ E enquanto nesta terra houver um ser,/ Meus versos vivos te farão viver.

[2] Foi membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). (1906-2004)

[3] Logo após escrever esta carta, recebi a notícia da morte do nosso querido colega Antônio Carlos Eva.