Orientação aos colaboradores | 12/2018
Phármakon
Phármakon é um termo que nos acompanha desde o Fedro de Platão (século 5 a.C./1964). Ali o filósofo se refere à linguagem como phármakon e diz que ela poderia ser usada de diferentes maneiras: como remédio, para a comunicação e o diálogo, permitindo ampliar o conhecimento; como veneno, por ser capaz de expressar a injustiça e criar verdades. Pode ser considerado uma substância que, uma vez ingerida ou aplicada, teria três efeitos: inócuo, remédio ou veneno.
Em Transformations (1965/1977c), Bion destaca que o crescimento mental parece depender da verdade tanto quanto o organismo vivo depende de comida. Todavia, boa parte das pessoas parece reagir à verdade como se ela fosse veneno, preterindo-a pela mentira que se maquia de certezas e promessas onipotentes de gratificação.
Tratei minhas descobertas como contribuições comuns à ciência e esperei ser recebido com o mesmo espírito. Mas o silêncio com que minhas comunicações foram recebidas, o vácuo que se formou em torno de mim …. Compreendi que a partir de então eu fazia parte daqueles que haviam “perturbado o sono do mundo”. (Freud, citado por Jones, 1953/1989, p. 277)
O poder observado na disseminação de fake news parece ser equivalente àquele que se percebe no uso intenso de drogas lícitas e ilícitas mundo afora. A indústria farmacêutica também produz cada vez mais todo tipo de “remédio” para qualquer alteração de humor dos indivíduos, sobretudo no sentido de evitar que sofram qualquer tipo de dor psíquica ou depressão, mesmo quando essas vivências indicam o contato com percepções efetivamente dolorosas ou tristes, e quando esses estados de espírito são, na realidade, expressões de saúde psíquica, pois correspondem a captações pertinentes.
A psicanálise surgiu para lidar com perturbações mentais de pessoas que não conseguiam alívio real para seus transtornos. Emergiu no meio médico e como um trabalho essencialmente médico. Entretanto, os próprios médicos, logo no início, se afastaram de Freud e daquilo que ele foi expressando e propondo. Trataram-no como charlatão e degenerado, e levou bastante tempo para que uma fração do corpo médico passasse a abraçar a psicanálise e sua prática. Até hoje, contudo, um amplo grupo de médicos e psiquiatras continua considerando a psicanálise uma prática esotérica, sem fundamento científico. A crença numa psiquiatria orgânica, em que todos os problemas mentais poderiam ser resolvidos por meios químicos ou eletrochoques, ao contrário, parece ser hegemônica, apesar das evidentes limitações que os fatos revelam quanto à mágica que estes em princípio produziriam, como foi o caso do Prozac. Atualmente vem sendo criadas cada vez mais “síndromes” mentais e, para cada qual, uma substância química que a trataria.
O psicanalista se propõe a lidar com uma realidade psíquica não sensorial, em contrapartida à abordagem organicista, que desconsidera a existência de uma mente não tangível ou observável pelos sentidos ou por instrumentos que ampliariam suas capacitações. Entretanto, não é raro recebermos pacientes para quem uma análise foi indicada até por médicos psiquiatras organicistas ou de outras cadeiras, quando todos os recursos farmacológicos se mostraram insuficientes.
Por outro lado, a psicanálise não é uma panaceia. Volta e meia nos deparamos com pessoas que nos chegam em tamanho desespero que não vemos nelas condições para estabelecer uma conversa produtiva, e amiúde as encaminhamos para um acompanhamento psiquiátrico, de modo que tenham suficiente continência (nesse caso, farmacológica) para que outro tipo de continência – mental – seja desenvolvido por meio do trabalho analítico.
Porém, conflitos aparecem, como um médico que passa a interferir na análise ou mesmo a propor que seja interrompida, indicando outros tipos de tratamento. Podem surgir dificuldades caso o analisando fique impregnado ou demasiadamente anestesiado para ter contato com as emoções, sem as quais não há como desenvolver o nosso trabalho.
Há também outro problema: a psicanálise desenvolveu-se a partir da medicina, mas ainda há correlação com essa prática?
A maioria das pessoas pensa a psicanálise, assim como Freud a considerava, como um método de tratamento de uma queixa. Esta era percebida como equivalente a uma enfermidade que, uma vez que se soubesse o que era, deveria ser tratada conforme as regras da medicina. O paralelo com a medicina foi, e ainda é, útil. Mas à medida que a psicanálise se desenvolveu foi possível perceber que se diferenciou da medicina física, até que o hiato entre elas passou de óbvio para intransponível. (Bion, 1970/1977a, p. 6)
Outro aspecto relevante a ser considerado: o que é normalidade? O que é saúde? Quais os padrões de valores morais e sociais que interferem na saúde mental de uma pessoa? O conceito de cura continua pertinente em psicanálise?
A medicação é algo que pode viabilizar uma análise ou impede o acesso ao funcionamento mental? Como lidar com diagnósticos? O que fazer quando o paciente já vem com um diagnóstico feito por ele mesmo ou por um profissional? Ele é algo que encapsula o paciente e impede uma verdadeira investigação? Os diagnósticos servem para esclarecer ou para dar uma ilusão de conhecimento ao analista, que fica cego para enxergar o que tem diante de si e ignora, como propõe Bion? Os diagnósticos também podem ser um phármakon, no sentido cosmético ou envenenador da mente – coluna 2 da grade de Bion (1963/1977b)?
Por outro lado, o próprio Bion considerava que pacientes esquizofrênicos teriam quatro traços básicos, entre os quais ele destacava a personalidade em que há uma
preponderância tão grande de impulsos destrutivos que mesmo o impulso para amar é impregnado por estes e se transforma em sadismo … [e] ódio à realidade, interna e externa, que se estende a tudo que contribua para a percepção desta. (1957/1988, p. 46).
No mesmo livro, ele ressalta:
A natureza do problema fica patente quando o paciente é suicida ou está ansioso por causar o máximo de dano que puder ao analista, a si mesmo, ou a pessoas que se preocupam com seu bem-estar. O tempo, o dinheiro e o esforço que uma análise implica a transformam em arma eficaz para um paciente que tenha esse intento. Se o analisando abriga tais intenções, é evidente que ao analista deve ter bem claras, na mente, as metas que o levam a ser analista. A ambição de ajudar o paciente é inadequada, facilmente captada por este e incluída em seu sistema de ataque. Quaisquer que sejam os objetivos do analista, ainda assim, ele não estará em melhores condições – o paciente poderá detectá-los e destruí-los. (p. 125)
Como se lida com pacientes com adição, seja de drogas legais ou ilegais; que fazem uso constante de ansiolíticos e antipsicóticos; que recorrem ao santo-daime e congêneres?
A análise também pode ser usada em busca de alívio rápido, de forma análoga a um remédio calmante – ou que proporcionaria alívio em contraponto à análise, que desenvolveria a capacidade de maior tolerância à angústia. A banalização da psicanálise que observamos com a apresentação de pessoas que se autointitulam psicanalistas sem que tenham se submetido a uma rigorosa e séria formação, não estaria levando a própria psicanálise para o campo da cosmética e da propagação de fake news?
Os trabalhos deverão ser encaminhados para o email da revista – rbp@rbp.org.br – até a data-limite de 19/11/2023. As orientações para a submissão de artigos encontram-se em nossa página eletrônica: www.rbp.org.br.
Referências
Bion, W. R. (1977a). Attention and interpretation. In W. R. Bion, Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. Jason Aronson. (Trabalho original publicado em 1970)
Bion, W. R. (1977b). Elements of psychoanalysis. In W. R. Bion, Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. Jason Aronson. (Trabalho original publicado em 1963)
Bion, W. R. (1977c). Transformations. In W. R. Bion, Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. Jason Aronson. (Trabalho original publicado em 1965)
Bion, W. R. (1988). Diferenciação entre a personalidade psicótica e a não psicótica. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (W. M. M. Dantas, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1957)
Jones, E. (1989). A vida e a obra de Sigmund Freud (J. C. Guimarães, Trad., Vol. 1). Imago. (Trabalho original publicado em 1953)
Platão. (2019). A república de Platão (J. Guinsburg, Trad.). Perspectiva. (Trabalho original publicado no século 5 a.C.)
Platon. (1964). Phèdre. In Platon, Le Banquet et Phèdre. Garnier-Flammarion. (Trabalho original publicado no século 5 a.C.)
Claudio Castelo Filho
Editor