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Volume 50 nº 3 - 2016 | O analista desconcertado

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Editorial

Em 1883, o jovem Freud escreve à sua então noiva Martha Bernays:

Um fracasso em uma investigação estimula a criatividade. Cria um livre fluxo de associações, faz surgir uma ideia atrás de outra, ao passo que, uma vez assumido o êxito, aparece com ele um estreitamento e torpor mental que obriga a retroceder ao estabelecido e impede uma nova combinação. (Caparrós, 1997, p. 309)

Poucos anos depois, ele se desconcerta com as ideias de Charcot, em Salpêtrière. No prefácio à tradução das Conferências sobre as doenças do sistema nervoso, ele afirma que só pôde se dedicar a esta tarefa “após superar minha perplexidade inicial diante das novas descobertas de Charcot, e depois que aprendi a avaliar a sua grande importância” (Freud,1886/1969, p. 53).

Uma atitude adotada por Freud por toda a sua vida, e que o fez ultrapassar os limites do conhecimento do ser humano. Ao surpreender-se com aquilo que escapa ao estabelecido, como os lapsos de memória, as trocas de palavras, os sonhos, ele construiu a psicanálise. Foi dando atenção ao equívoco e ao inusitado que neles encontrou o indício de que existe, no homem, uma comunicação que se subordina a outra ordem.

A psicanálise provocou desconcertos na comunidade científica da época, ao abalar as convicções do século das luzes e sua defesa da racionalidade humana. Com ela, o homem racional e unitário deu lugar ao homem fendido do inconsciente.

Uma investigação que já fora empreendida por Franz Brentano, professor na Universidade de  Viena, e que intrigara Freud com o pressuposto de uma “consciência inconsciente” atuando no psiquismo. Mas o espanto do discípulo o fez ir além de seu mestre. A partir dele, o inconsciente conquistou o estatuto de alteridade, com leis e lógica próprias – uma noção que, para certa surpresa nossa, ainda hoje desconcerta setores do conhecimento científico.

Exercemos a psicanálise cotidianamente nos consultórios. Em nossa prática clínica, confrontamos a alteridade do inconsciente em nós mesmos e na relação com o paciente, que chega com suas questões e com sua proposta transferencial. Como o encontro com o outro é traumático, em algum momento algo desconcertante quebra nossas certezas, ainda que ínfimas; destrói nossa sensação de êxito, ainda que momentânea; e estimula a nossa criatividade.

São situações imprevistas que deixam o analista desconcertado: um engano, uma provocação, uma quebra de setting; pode ser um sobressalto que excede a sua possibilidade de representação, ou o impacto da surpresa, do estranho que surge no familiar das sessões com determinado paciente; algo que o leve a agir – por vezes, um acting out; ou o analista age guiado por um pensamento não pensado, que só pode ser organizado a posteriori, muitas vezes depois da conversa com um colega, ou talvez de uma supervisão. Do que ele, realmente, lançou mão? Qual foi o recurso por ele utilizado?

Qualquer analista já viveu algumas situações desse tipo. São aquelas que não se aquietam; voltam à lembrança recorrentemente, pois o espanto que elas causam produz uma memória que permanece incômoda (um fracasso?), que exige alguma elaboração, que nos convida a ir além do estabelecido, criando novas combinações, como nas palavras de Freud. São oportunidades para a reflexão e a teorização psicanalítica sobre as quais vale a pena escrever.

De fato, na visão aristotélica, a origem e a evolução do pensamento (e, portanto, da filosofia) dão-se a partir do espanto, momento no qual aquilo que era evidente torna-se inédito e  incompreensível. O sentido da perplexidade leva à suspensão de certezas, incita o querer conhecer, exige uma reorganização do saber. Aqui o analista é aparentado do filósofo, pois, como diz Kristeva (2000), é fundamental a qualquer psicanalista em seu exercício a experiência de uma surpresa desconhecida e a posterior compreensão desse choque.

Afinal, como afirma Roussillon (2006), a pragmática da intervenção do analista é de suma importância no curso de uma situação-limite. As condições de analisabilidade para qualquer análise dependem da dinâmica transferencial/contratransferencial, mas principalmente dependem das concepções técnicas do analista, ou de sua teoria da prática – que muitas vezes é posta em xeque.

Fica aqui nosso convite para essa reflexão, pelas palavras dos colaboradores deste número.

 

Silvana Rea

Editora

 

Referências

Caparrós, N. (Ed.). (1997). Correspondencia de Sigmund Freud (N. Caparrós, Trad., Vol. 1). Madrid: Biblioteca Nueva.

Freud, S. (1969). Prefácio à tradução das Conferências sobre as doenças do sistema nervoso, de Charcot. In S.

Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 51-56). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1886)

Kristeva, J. (2000). Sentido e contrassenso da revolta (A. M.Scherer, Trad.). Rio de Janeiro: Rocco.

Roussillon, R. (2006). Paradoxos e situações limites em psicanálise (P. Neves, Trad.). São Leopoldo: Unisinos.

Em pauta

O autor conta suas aventuras e desventuras com pacientes desde as primícias de sua atividade como candidato e na continuação de sua formação até hoje. Imaginou como título maior da série de casos apresentados: “Se arrependimento matasse…” Reserva especial consideração para dois pacientes: o caso do rapaz de vida “largada” e o da mocinha injustamente acusada de seduzir o pai – paciente que adota, então, uma imagem aparentemente masculinizada, que vai se desfazendo na análise, inclusive somaticamente, lembrando um filme de Fellini. No filme, as escavações no subsolo de Roma deixam apenas entrever imagens cujos pigmentos se tornam descorados ao entrar em contato com o ar atmosférico. Assim seriam as imagens masculinizadas construídas pela paciente sob o impacto edipiano e que, com o oxigênio da análise, se desfariam, dando lugar a imagens mais autênticas, femininas. Na parte final, o autor acrescenta uma revisão do caso, na qual considera que se tivesse uma fé real na psicanálise poderia ter ajudado a paciente a confiar nas modificações extraordinárias que havia mostrado na análise, com o desenvolvimento dos seios, e tentar, com a psicanálise, dispensar a cirurgia plástica.
Palavras-chave: não abandonar o paciente; charitas; fé na psicanálise; prioridade para a interpretação; constrangimento; revisão.

Partindo do tema deste número da RBP, o analista desconcertado, a autora localiza na obra de Fabio Herrmann a descrição de um relato clínico em que o analista comete um erro técnico. Toma-o como exemplo de desconcerto de Herrmann na situação clínica e, recorrendo ao próprio texto de Herrmann, compõe um metatexto de citações para mostrar o caminho da construção, por Herrmann, de dois conceitos – erro necessário e mentira original – que, em sua conjugação, armam o caminho para a reflexão de Herrmann
sobre o originário do nascimento do humano no homem e na cultura.
Palavras-chave: psicanálise do quotidiano; erro necessário; mentira original.

O autor discorre sobre situações impactantes, utilizando histórias clínicas acontecidas no decorrer de um longo percurso. Nos exemplos iniciais, em função de aspectos narcísicos insuficientemente trabalhados em sua análise pessoal, o analista encontra dificuldades para sustentar a posição analítica. Com o passar do tempo e a elaboração desses traços narcísicos, desenvolve tolerância e capacidade de reparação, o que lhe possibilita acolher angústias e projeções dos pacientes, funcionando como continente que processa emoções.
Palavras-chave: continente-conteúdo; ferida narcísica; fúria narcísica; reparação; tolerância.

Algumas experiências clínicas nos confrontam com impasses quando as palavras parecem incapazes de transmitir o que se deseja comunicar. É preciso encontrar outros modos
de escuta e de interpretação nesse campo dos efeitos psíquicos de experiências traumáticas que não alcançam representação. Este trabalho pretende refletir sobre essas questões a partir de alguns relatos clínicos. São exploradas a busca de formas de comunicação possíveis e a concepção da análise como um campo de construção de um objeto continente e como uma experiência de reconhecimento e de esperança que não pôde ser encontrada na relação com os objetos iniciais.
Palavras-chave: representável; irrepresentável; terror noturno; interpretação; simbolização.

Neste artigo, tomo a palavra desconcerto em diferentes acepções de modo a discutir: as emoções que são evocadas no analista por alguns acontecimentos inusitados no trabalho com crianças; o desencontro que pode ocorrer entre a realidade dessa clínica e alguns cânones teórico-técnicos; algumas características dos processos implicados na função
analítica do analista.
Palavras-chave: análise com crianças; desconcerto; des-concerto; teoria da técnica; função analítica.

Uma experiência de atendimento problematiza as intensidades, o pulsional, a dificuldade de fazer transições e passagens. Da excitação sexual desmedida ao controle extremo, um paciente, que busca análise após rupturas no campo profissional e amoroso, traz ao analista questões que encontram ressonância nos textos de Freud sobre os sonhos – quando ele toma em consideração o conceito de outra cena – e nos trabalhos de Walter Benjamin, sobre as passagens. O conceito de limiar, de Benjamin, é tomado como uma ferramenta de trabalho, aludindo à dificuldade de ocupação de espaços transitórios, fluidos, muitas vezes incertos, prelúdios de transformações psíquicas.
Palavras-chave: limiar; outra cena; morada do sonho; metapsicologia;desmesura.

O autor propõe pensarmos sobre situações descons(c)ertantes presentes na prática psicanalítica cotidiana. Considera desconCertos, com C, como movimentos mentais necessários para o analista poder abrir-se a captações intuitivas de dimensões arcaicas, pré-verbais e desconhecidas da realidade psíquica do analisando; desconSertos, com S, são trabalhados como movimentos mentais do analista, mais ou menos conscientes, que podem ser fruto de atuações contratransferenciais ou vir a se constituírem em atos interpretativos úteis ao desenvolvimento de funções da personalidade do analisando. Modelos estéticos e clínicos são utilizados para ilustrar estas conjecturas.
Palavras-chave: alucinose; ato de fé; cesura; intimidade; mente multidimensional.

Este artigo relata o atendimento psicanalítico de um menino de 12 anos que apresentava um quadro clínico bastante complicado, com comportamento muito destrutivo por
conta de um funcionamento psíquico primitivo. A narrativa dessa análise mostra uma fase inicial de “guerra” na situação clínica, seguida por uma fase de “trégua” em que, graças à capacidade do analista em sobreviver à ferocidade inicial, o paciente pôde transitar de uma atitude referente ao auge de seu sadismo, determinada pelo funcionamento da parte psicótica de sua personalidade, para outra em que se observa o desenvolvimento do aparelho para pensar pensamentos, dando sinais da parte neurótica de sua personalidade. A transformação clínica observada permite teorizar sobre as ligações existentes entre a pulsão de conhecimento e o sadismo, desde que haja continência para a destrutividade manifestada, como se pode perceber pela possibilidade de o analista lidar com sua contratransferência.
Palavras-chave: transferência; turbulência; auge do sadismo; aparelho para pensar pensamentos.

Diálogo

Com o passar do tempo, vamos percebendo que algumas teorias que utilizamos não nos permitem abordar o que concerne à subjetividade social e ao sujeito político nas sessões, isto é, um presente sempre surpreendente, que não corresponde a um passado conhecido. Torna-se necessário, então, ampliar nossos corpos teóricos para abordar esses
temas que dizem respeito ao ir pertencendo, a nossas interações em diferentes territórios, à ética social e a responsabilizar-se pelos próprios atos, ou seja, reconhecer-se
como sujeito político.
Palavras-chave: subjetividade social; sujeito político; impolítico; opinião; discordância; desentendimento; ir pertencendo.

Pontos de vista

A ciência avança por meio de descobertas, algumas radicais, mas a maioria simplesmente aditiva ao conhecimento corrente. As descobertas radicais provocam reações negativas, tanto nos próprios cientistas como em leigos, dependendo da natureza da descoberta. Este artigo define desconcerto na ciência como sendo uma reação negativa provocada pelo advento de um novo paradigma científico. Há cerca de cem anos, Freud fez uma comparação entre a descoberta do inconsciente e as descobertas de
Copérnico e Darwin, procurando mostrar que todas elas provocaram golpes no amor-próprio da humanidade, ou seja, desconcertos de acordo com a definição aqui usada.
Essa comparação de Freud é analisada, e outros exemplos de desconcertos semelhantes são descritos, oriundos da genômica, da biogeografia histórica e do estudo da escrita
dos antigos maias.
Palavras-chave: revolução científica; Copérnico; Darwin; Freud; narcisismo.

Outras Palavras

O artigo aborda o problema da transmissão da psicanálise na produção escrita e aponta como Wilfred R. Bion lidou com a questão por meio de seu estilo literário em momentos
distintos de sua obra. Através da leitura de Experiências com grupos, “Mudança catastrófica” e o capítulo “Comentário” de Second thoughts, são identificados três modelos de
transmissão nomeados por nós de modelo de grupo, modelo pictórico e modelo de transformação em O, respectivamente. O artigo mostra como, nesses modelos, há uma ligação estreita entre a teoria que estava sendo apresentada, a forma de Bion apresentá-la e o processo de leitura. Aponta ainda como Bion emprega a linguagem para estimular o leitor a lidar com questões clínicas, sobretudo com o método, durante a leitura do texto, mantendo-o comprometido com a psicanálise fora da prática analítica.
Palavras-chave: Wilfred R. Bion; transmissão; escrita; grupo; linguagem pictórica; transformação em O.

A autora propõe algumas reflexões sobre a alta nos processos de análise com crianças utilizando-se de exemplos clínicos e da metapsicologia. Aborda situações que levam esses
pacientes a retornar à análise quando adolescentes. Busca compreender o que estaria aquém do recalcado e as construções e representações presentes nesses processos.
Apresenta alguns índices evolutivos das análises com crianças que possibilitam pensar no seu término, do irrepresentável ao além do recalcado.
Palavras-chave: análise com crianças; alta; irrepresentável; além do recalcado.

Este trabalho apresenta e desenvolve uma discussão sobre o método clínico psicanalítico e suas afinidades com o campo do materno. Ressalta aspectos do enquadre e do manejo bem como qualidades de presença do analista e seu corpo que corresponderiam a modalidades do materno instituintes e organizadoras da clínica. Sem esquecer a dimensão paterna do enquadre – aquela referida a sua função terciária –, o presente trabalho destaca na função materna a propriedade mais conhecida por moldura. Operando duplamente, a moldura cria um topos a ser preenchido, ao mesmo tempo que protege os processos e vivências ali produzidos. Denominado clínica da presença, ou do sensível, e baseado na afetação mútua do par analítico, o campo do materno aqui descrito segue de perto o das trocas oferecidas pela mãe, sem no entanto confundir-se com maternagem – o que deixaria de ser psicanálise. Ferenczi e Winnicott são autores de referência, cujas propostas inspiram as reflexões deste trabalho.
Palavras-chave: materno; enquadre; transferência; presença; reflexividade.

Resenhas