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Volume 58 nº 1 - 2024 | Envelhecer em psicanálise

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Editorial

Percebi pela primeira vez, pelas metamorfoses que ocorreram em todas essas

pessoas, o tempo que passou para elas, o que me surpreendeu com a revelaç.o de

que também havia passado para mim. E, indiferente em si mesma, a velhice deles

angustiava-me ao avisar-me da aproximação da minha.

MARCEL PROUST

 

Na citação usada como epígrafe, de O tempo redescoberto, último volume de Em busca do tempo perdido, o narrador relata o reencontro com personalidades que há muito não via, numa festa da princesa de Guermantes. Fica impactado com a dificuldade de reconhecer muitas de suas antigas relações, pelas marcas que o tempo deixou em suas aparências, e também pela maneira como as experiências de vida de cada uma teria igualmente afetado ou deformado suas personalidades. Choca-se ao constatar que outras pessoas também o olhavam na tentativa de reconhecer quem seria ou, caso aparentassem ter alguma noção de quem ele era, pareciam esforçar-se para encontrar no ele do momento a pessoa que teria sido outrora. Impacta-se ao perceber que a mesma impressão que tinha sobre o envelhecimento de seus convivas, estes também deveriam estar experimentando em relação a si. As situações sociais haviam se alterado, pessoas das novas gerações não reconheciam ou não tinham noção de quem eram os grandes nomes de sua juventude, chegando mesmo a considerar algumas das mais importantes damas de anos passados como parvenues, para seu total escândalo. A princesa de Guermantes tampouco era a original. Madame Verdurin, milionária nova-rica durante quase toda a extensão do monumental romance, enviuvara e tornara a casar-se com o também viúvo, mas falido com as consequências da Grande Guerra, príncipe de Guermantes, entrando finalmente para o grand monde aristocrático que até então a esnobara. A duquesa de Guermantes [1] encontra o narrador, cujo nome é Marcel, como o autor, e o chama de seu mais velho amigo. Este se dá conta de que, para ele, ela foi ao menos três: uma espécie de personagem sagrado que flutuava sobre o pavimento da catedral de Combray, em batizados e casamentos na sua infância; a grande dama da altíssima sociedade com quem, quando era jovem, ele sonhava um dia poder conviver; e aquela senhora soterrada em babados e joias que agora via e percebia como uma mulher como tantas outras. (Poderíamos pensar nessa narrativa como uma belíssima descrição da oscilação da posição esquizoparanoide para a depressiva, em que a idealização cede lugar a uma visão realista de uma mãe/mulher.)

Há pouco tempo, fui a um velório no cemitério Gethsêmani, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Lá estão enterrados os meus pais e a minha querida babá. Fazia alguns anos que não passava por aqueles cantos. O caminho me atordoou, porque o local que conhecia está transformado, e as antigas mansões em boa parte estão cedendo lugar para grandes condomínios de edifícios altos. Fiz uma comparação com a experiência de visitar cidades europeias, que, pelo menos na aparência externa, conservam-se da mesma maneira há séculos. Quem visitou Paris há décadas não estranhará muito a Paris de hoje. A tecnologia disponível, no entanto, mudou bastante boa parte dos modos de funcionamento. Existe algo confortante ao encontrarmos essas invariantes, a despeito da passagem do tempo, em contraste com a substituição, muitas vezes total, do ambiente em cidades como São Paulo ou Fortaleza, em que fica difícil reconhecer que se trata da mesma localidade, apesar da manutenção do nome, assim como parece ter sido a vivência do narrador da Recherche ao se deparar com personagens como monsieur D’Argencourt, do qual só parecia ter restado, em relação ao que conhecera, o nome.

Não havia tempo a perder. Se o narrador queria ser um escritor, ele precisava parar com sua vida diletante de ir a festas e banquetes, para se dedicar à escrita. Durante anos, Proust encerrou-se em seu apartamento no boulevard Haussmann para trabalhar integralmente na produção de sua obra. Deu-se conta da inexorabilidade do tempo e da curta duração de nossa existência. Em contraponto, a obra teria uma perenidade que o autor não teve. As descrições feitas por ele de grandes damas e dos costumes da Belle Époque aparentemente datam a escrita, mas aquilo que captou da alma e da essência dos humanos que descreve a mantém atualíssima e jovem.

Ao escrever estas linhas, lembrei-me do doutor Yutaka Kubo, decano de grande projeção na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, falecido há algumas décadas. Kubo foi meu professor e um de meus supervisores. Era alguém a quem eu respeitava muito e considerava um dos grandes mestres de nossa instituição. Depois de concluir minha formação e publicar alguns trabalhos, espantei-me ao receber telefonemas seus pedindo para conversar sobre minhas publicações. Após algumas conversas, ele solicitou que eu organizasse um grupo de colegas mais jovens para falarmos sobre psicanálise. Alguns colegas se reuniram e passamos a encontrá-lo semanalmente, a fim de trocar ideias sobre nossa atividade profissional. Na primeira reunião, uma colega, apreensiva, indagou se teríamos de pagá-lo por aquela atividade. Kubo retrucou: “Se fosse para pagar, eu é que teria de pagar a vocês, porque eu é que quero me renovar ouvindo o que as pessoas mais jovens têm a dizer!”. Naturalmente, nós usufruímos muito de sua imensa sabedoria e experiência. Como lembrou recentemente a colega Regina Almeida, que participou desse grupo, em determinado momento de uma conversa, todos ficaram mudos, sem nada falar. Kubo então disse: “Estão todos tão preocupados em ser inteligentes e dizer coisas inteligentes, que ninguém diz nada!”. Octogenário, permanecia com o espírito aberto e jovem.

Neste número da RBP, contamos com os relevantes textos temáticos de Gabriele Junkers, Sylvia Salles Godoy de Souza Soares, Ronaldo Victer, Paulo Roberto Ceccarelli, Pedro Vinicius de Souza Brito e Marina F. R. Ribeiro e os artigos de alto nível de Elizabeth L. Rocha Barros, Carmen C. Mion, Liana Albernaz de Melo Bastos, Ricardo Trapé Trinca, Adriana Meyer B. Gradin, Pedro Fernandez de Souza, Andreas Zschoerper Linhares.

Estamos certos de que a leitura destas páginas tem o potencial de ser revigorante para aqueles que já tem cabelos e barbas brancos, como é o meu caso, e para os que ainda têm uma longa estrada pela frente.

[1] A princesa de Guermantes e a duquesa de Guermantes são personagens distintas.

Intercâmbio

Todas as pessoas conhecem o sentimento de solidão, descrito nas suas mais variadas formas por poetas e filósofos. A maneira de vivenciar a solidão, lidar com ela e processá-la é individual e difere totalmente de pessoa para pessoa. Envelhecer significa dominar inúmeras tarefas de desenvolvimento. Como é possível não responder às perdas iminentes e às despedidas da velhice com medidas defensivas patológicas, mas, ao contrário, viver o encerramento da vida profissional como uma nova fase de introversão, olhar retrospectivo e plenitude interior? A autora considera a capacidade de estar só um pré-requisito favorável para enfrentar com sucesso os desafios do envelhecimento e refere-se a autores psicanalíticos que se dedicaram ao tema da solidão, quando já estavam numa fase tardia da vida. Quanto mais consolidada for a capacidade de adaptação às diferentes realidades, sobretudo àquelas desagradáveis e desprazerosas, maior será a possibilidade de aceitar os próprios erros. Nesse caso, também poderia haver uma diminuição do ressentimento em relação àquelas realidades da vida que foram criadas pela própria pessoa no passado.
Palavras-chave: envelhecimento, solidão, capacidade de estar só, envelhecimento do analista

Temáticos

Neste artigo, a autora põe em cena a experiência clínica de mulheres em diferentes fases do envelhecimento. É relevante a distinção das angústias da envelhescência, que é um processo que se inicia ao redor dos 50 anos, marcado pela menopausa e pelo subsequente medo da perda da feminilidade, e que perdura ad infinitum na velhice, quando acontecem as perdas reais, das funções do corpo e das imagens ligadas a ele, além de perdas concretas dos objetos amorosos: pais, familiares, amigos… O tempo, a memória, as lembranças podem divergir, mas a solidão é a mesma em todos os casos expostos. Angústias, sonhos, pesadelos podem demudar ficção em realidade, ou vice-versa. Imperativa é a mudança de hábitos em função das mudanças do corpo. Entretanto, o eu do sujeito idoso mostra uma espantosa renovação de interesses. Freud assinala que a criança brinca no mesmo grau que o adulto sonha, devaneia. À medida que o tempo passa, ele descobre novas formas de viver, ou melhor, de saber viver.
Palavras-chave: envelhescência/velhice, angústia, solidão, vida/morte, revivescências

O autor realça a conceituação de senescência feita pelo professor Nobre de Melo, para propor uma compreensão psicanalítica do processo de envelhecimento normal do ser humano. Utiliza tópicos teóricos da psicologia do self de Heinz Kohut e as elaborações freudianas de ideal do ego descritas por Janine Chasseguet–Smirgel. Também, o enfoque de livros de Ingmar Bergman e Simone de Beauvoir.
Palavras-chave: senescência, senilidade, envelhecimento, sabedoria, ideal do ego

Partindo da noção de falências narcísicas, o autor discute aspectos relacionados a envelhecimento, morte, exclusão e luto pelo viés da psicanálise. Conclui o texto com uma breve reflexão sobre o envelhecimento de Freud.
Palavras-chave: psicanálise, narcisismo, envelhecimento, sexualidade

A longevidade populacional contemporânea pôs em questão as teorias que não contemplavam essa etapa da vida. Esse é o caso da psicanálise. Desde seus textos iniciais, Freud se opôs ao tratamento psicanalítico de pessoas muito idosas. Entretanto, ele próprio não deixou de exercer a psicanálise, e alguns dos seus mais importantes estudos se deram nessa fase da vida. Diante dessa contradição, os autores investigam o que pode ter influenciado esse posicionamento e observam uma série de questões sociais, fisiológicas e econômicas que marcaram a velhice de Freud. Utilizam seus textos para analisar sua percepção em relação à terceira idade e compreender como ele enfrentou as diversas questões que marcaram sua vivência nesse período. Discutem a ideia de que, ainda que Freud não indicasse a psicanálise para os idosos, as mudanças sociais do contemporâneo permitem defender e recomendar a psicanálise durante a velhice.
Palavras-chave: psicanálise, psicoterapia, envelhecimento, perdas

Artigos

O termo experiência emocional é de difícil definição. A autora adota a definição de conhecimento direto, intuitivo, imediato que temos dos fatos ou fenômenos. Alguns autores só consideram haver uma experiência de fato quando, e somente quando, ela está associada à vivência de um sentido, no contexto de uma relação. Inicialmente o trabalho é ilustrado com a discussão de uma obra de arte, antes e depois de haver uma expansão de conhecimento sobre ela, e a seguir com a consideração de uma situação clínica. A autora recorre ao conceito de insight ostensivo e a reflexões de Fédida.
Palavras-chave: experiência emocional, Bion, insight ostensivo, Fédida, significado e sentido

Em um dos seus últimos seminários, Bion afirma que não estava interessado nas teorias psicanalíticas ou mesmo em outras quaisquer, mas no “mais importante, que chamo de ‘a coisa real’, a prática da análise, a prática do tratamento, a prática da comunicação”. Neste artigo, a autora desenvolve os conceitos de observação e intuição como pertencentes ao tema maior da comunicação psicanalítica, restringindo-se à especificidade da “escuta” do analista às comunicações do analisando na sala de análise e seus instrumentos para isso: os órgãos dos sentidos e de percepção, incluindo aqui o conceito freudiano do consciente como órgão de percepção. Propõe que essas duas funções do psicanalista, observação e intuição, atuam em sincronia, de forma semelhante ao modelo biológico de “visão binocular” utilizado por Bion como uma aproximação ao seu conceito de barreira de contato e interação entre consciente e inconsciente. A autora inicia o artigo com uma separação artificial entre ambas as funções, para reuni-las ao final.
Palavras-chave: intuição, observação, visão binocular, comunicação na prática clínica, percepção inconsciente

A autora faz uma breve historiografia da fundação da cidade do Rio de Janeiro. Mostra a presença indígena e africana em sua constituição. Aponta as formas coletivas de resistência da cultura afrodiaspórica. Através da literatura de autores negros, critica a não consideração, pela psicanálise eurocentrada, das populações marginalizadas no Brasil. Propõe uma psicanálise à brasileira, que incorpore nossas matrizes epistemológicas e culturais.
Palavras-chave: fundação da cidade do Rio de Janeiro, resistências culturais, matrizes epistemológicas, psicanálise à brasileira

O autor desenvolve o tema do silêncio e da reclusão, considerando a diferença entre ambos. Para tanto, discute o papel da não comunicação no processo comunicativo, e como ela parte do silêncio. Enquanto o silêncio pode ser a fonte de uma escuta para palavras inconscientes e o prenúncio de uma narrativa pessoal criativa, a reclusão é considerada uma tentativa de responder ao sentimento de invasão. Por fim, o autor trata das implicações da erotização do estado de reclusão como um processo psicopatológico.
Palavras-chave: psicanálise, adolescência, silêncio, não comunicação

Neste artigo, a autora aborda novas perspectivas sobre a escuta psicanalítica “em camadas” dos movimentos ativos e das defesas passivas do psiquismo, à luz dos dois tempos de análise de Harry Guntrip, que incluem uma escuta dedicada às questões edípicas e às defesas ativas, bem como aos traumatismos precoces. Procura articular essa escuta “em camadas” com a teoria sobre os adoecimentos psíquicos por ativação e por passivação, de Luís Claudio Figueiredo e Nelson Coelho Junior. Por fim, reflete sobre a posição do analista e a extensão dos resultados obtidos nessa modalidade de escuta clínica.
Palavras-chave: defesas ativas, traumas precoces, prática psicanalítica

O objeto deste artigo são as notas de rodapé de Freud. Partindo do conceito de paratexto, de Gérard Genette, o autor empreende uma leitura comparativa de alguns textos de Freud, centrando-se em suas notas marginais. Pode-se notar um movimento textual e teórico constante em Freud, que vai das margens para o centro. É comum que ideias expressas pela primeira vez em notas marginais subam e se tornem o objeto específico de textos “reais”, às vezes com um intervalo de anos. Assim, por exemplo, a ideia de uma nota de rodapé, de 1923, ao caso Dora se torna o objeto central de um texto autônomo, de 1925, sobre a negação. Esse movimento não parece casual. Parece antes um índice fundamental não só da escrita, mas também da teorização freudiana, em que a diferença entre centro e margem é reiteradamente transgredida e liquefeita.
Palavras-chave: nota de rodapé, Freud, paratexto, escrita, teorização

O autor apresenta um estudo evolutivo da psicanálise e suas invariantes ao longo do tempo, com base na originalidade e especificidade da descoberta de Sigmund Freud. Considera as noções de intimidade, compaixão, continência e cesura no vértice analítico, configurando a sessão de análise como um campo específico no atendimento a determinadas necessidades e realizações humanas. Aponta a evolução na percepção dos acontecimentos na sala de análise, a necessidade da identificação da realidade psíquica, as capacidades que o analista deve privilegiar e desenvolver para ampliar as suas possibilidades de contato com o que se apresenta e passa a ser percebido na sessão. Também trata do aprimoramento da capacidade de observação para possibilitar e propiciar a intuição. Discorre sobre a condição de se aproximar da realidade psíquica do analisando, do que permeia a interação analista-analisando e do que se reflete na mente do analista, levando em conta a multidimensionalidade da mente, considerando ainda aspectos da mente primordial. Ao final, apresenta um material clínico que se correlaciona com o disposto conceitualmente.
Palavras-chave: continência, cesura, campo analítico, observação analítica, intuição

Resenhas