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Volume 47 nº 3 - 2013 | Legados

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Embora cada número temático da RBP possua características singulares, este, caro leitor, se diferencia de todos os outros. Proposta arriscada embora necessária, ela foi se impondo ao corpo editorial pelo fato de, nos últimos anos, terem nos deixado alguns grandes analistas, representativos daquele que constituiu um dos momentos mais férteis da reflexão em torno do pensamento clínico e dos modos pelos quais nossa prática foi exercida e teorizada nos últimos cinquenta anos. Estes analistas nos acompanharam durante nossa formação e maturidade; identificamo-nos com seus desafios clínicos e embates teóricos, seus empenhos em busca da singularidade; também com o diálogo produtivo que sustentaram entre os diferentes modos de pensar a nossa disciplina e seus fundamentos. Sem fugir dos debates, avessos a dogmatismos e polêmicas estéreis, deram o melhor de si para o desenvolvimento da nossa disciplina.

Como compreender a ideia de Legados, título que outorgamos a este número’ Encontrei nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin, na sua introdução a um primoroso estudo sobre a história e a narração a partir da obra de Walter Benjamin, uma fina aproximação metodológica daquilo que concebemos como tarefa frente à obra daqueles que nos precederam: “tentar ouvir as questões e as exigências que esta obra formula, ou seja, reconhecer quais são suas interrogações deixadas em suspenso, tentar compreender esta suspensão, ousar aprofundar-me nesta irresolução” (Gagnebin, 1999, p. 1). Em lugar de apenas reverência ou idealização, retomar as questões que os motivaram, tendo em vista uma perspectiva em direção ao futuro da nossa disciplina.

Embora o clássico tripé – análise pessoal, supervisão e estudo teórico – constitua a base de nossa formação como analistas, a excelente introdução a este número, escrita com notável clareza e erudição por Renato Mezan, a quem muito agradecemos, nos mostra a importância do contexto histórico, institucional e científico no qual cada um de nossos homenageados cresceu e amadureceu como indivíduo e como analista. Dessacralizando o mito que por vezes envolve os discursos sobre a transmissão da psicanálise, observamos a riqueza e a complexidade do vir a ser analistas, no qual se entrelaça a trama individual e subjetiva com um contexto que, ao mesmo tempo, é o solo no qual germina a semente que dará lugar a múltiplos e variados frutos.

A perspectiva plural da nossa política editorial encontra na diversidade destes psicanalistas – Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis, André Green, Joyce McDougall e Betty Joseph – algo que nos é peculiar e que resiste à uniformização do nosso campo. Limitação para alguns, nostálgicos de um saber único, livre de aporias e contradições; virtude para outros, que enxergam na diversidade uma resposta à prematura tendência de enquadrar um saber sobre a subjetividade humana e seu mal-estar num leito de Procusto de um pensamento único.

A proposta encaminhada aos autores foi livre, de modo que cada um pudesse destacar à sua maneira um aspecto da obra ou da biografia psicanalítica do analista homenageado, já que não pretendíamos um número acadêmico ou uma síntese – algo que, embora seja importante em outros contextos, ver-se-ia limitado pelo espaço oferecido. Nossa intenção foi compor um vivo caleidoscópio que estimulasse nossos leitores em múltiplas direções, compondo e recompondo, entre o épico e o lírico, parte da história do movimento psicanalítico, dos avanços na clínica de pacientes não neuróticos e difíceis e da busca de modelos metapsicológicos que nos ajudem a tornar pensável o sofrimento no qual tais pacientes se encontram capturados.

Nossos convidados, brasileiros e estrangeiros, tiveram o privilégio de em maior ou menor grau ter tido algum convívio com o analista sobre o qual escreveram. Agradecemos àqueles que contribuíram com seus trabalhos para tornar este número possível: Mônica do Amaral, Celso Halperin, François Gantheret, Zelig Libermann, Dominique Cupa, Hélène Riazuelo, Rubens Marcelo Volich, Rosine Jozef Perelberg, Elizabeth Lima da Rocha Barros, Elias M. da Rocha Barros e Michael Feldman. Agradecemos também a Carlos Schenquerman, que autorizou publicar e nos enviou o texto de Silvia Bleichmar apresentado nas 3as Jornadas de trabalho sobre a obra de Jean Laplanche.

A sessão Artigos apresenta os textos de Leopoldo Fulgencio sobre o narcisismo primário, Marta Úrsula Lambrecht em torno da contratransferência e de Claudine Vacheret, Guy Gimenez e Cristiane Curi Abud sobre a dispositivos grupais que introduzem objeto mediador, escritos que sem dúvida despertarão o interesse dos leitores.

Como habitualmente fazemos, convidamos os leitores a consultar a seção de resenhas, ficando assim atualizados das recentes publicações no nosso campo.

Além disso, informamos que, a partir desta edição, aumentamos o número de membros do nosso Conselho Consultivo com notáveis analistas e professores universitários, que prontamente se dispuseram a contribuir com sua experiência e conhecimento para o permanente desenvolvimento da Revista Brasileira de Psicanálise, no qual estamos empenhados.

A todos, uma boa leitura!

Bernardo Tanis
Editor

Referências
Gagnebin, J. M. (1999). História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva.

Artigos temáticos: Legados

Traçando um panorama da Psicanálise entre 1945 e 1980, este artigo busca situar nele as obras de Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis, André Green, Joyce McDougall e Betty Joseph.

Palavras-chave: Psicanálise na Grã-Bretanha, Psicanálise na França, escolas de Psicanálise, Lacan, Winnicott, Bion.

Este ensaio procurou apresentar as ideias de Jean Laplanche de maneira viva, destacando o modo como o autor as articulou com a formação dada aos alunos de pós-graduação em psicanálise (Université Paris VII), bem como o diálogo estabelecido com analistas do mundo inteiro em congressos e conferências internacionais. A ênfase foi dada à ideia princeps de primado do outro na constituição do psiquismo e da sexualidade inconsciente. É a presença do outro em nós, do estranho/familiar salientado por Freud, que é retomada por Laplanche para repensar não apenas os fundamentos da psicanálise, mas os fundamentos da razão ocidental. O papel da alteridade na constituição do psíquico abre uma importante discussão a respeito da dimensão cultural que nos constitui – discussão essencial para se repensar as bases de uma psicanálise brasileira.

Palavras-chave: Laplanche; primado do outro; estranho/familiar e cultura; novos fundamentos da psicanálise.

Este trabalho privilegia, como eixo, a ideia que Jean Laplanche postula sobre o realismo do inconsciente, pelo caráter exógeno e não subjetivo de sua origem. Uma exogeneidade que passa pelo outro e que marca como excitante e traumático o início da vida psíquica. A autora apresenta a proposta de Laplanche de que entre adulto e criança, pela assimetria de saberes fundante da situação originária, circulam mensagens de significação sexual inconscientes, percebidas pela criança como enigmáticas. A partir de dois casos clínicos, mostra que o enigma se apresenta como traumatismo, em parte pela assimetria de saberes entre adulto e criança, em parte pela clivagem psíquica no adulto que envia a mensagem, o que evidencia uma assimetria de saberes do adulto com ele mesmo. Nesse sentido, a autora discute as possibilidades de tradução da mensagem do outro.

Palavras-chave: Jean Laplanche; mensagens enigmáticas; metábola; teoria da sedução.

O artigo propõe uma aproximação à obra de Jean-Bertrand Pontalis. Com uma singular trajetória na psicanálise e na cultura francesa a partir da década de 50, Pontalis desenvolve uma forma própria de transmitir suas ideias e vivências. Percorrendo os caminhos dos sonhos, da linguagem e da clínica, podemos ter uma ideia aproximada do que seja a obra desse original psicanalista.

Palavras-chave: autografia; sonhos; linguagem; literatura; psicanálise francesa.

J.-B. Pontalis, que nos deixou em 15 de janeiro de 2013, aos 89 anos, foi um dos mais importantes psicanalistas franceses. Foi também editor e escritor. Analisado por Lacan, de quem em seguida se separou, foi amigo próximo de Sartre, Merleau-Ponty, J.-P. Vernant, Starobinski e muitos outros. Este artigo trata mais particularmente de seu relacionamento com Sartre e a revista Les Temps Modernes, e através desse episódio, de sua concepção livre e generosa da psicanálise.

Palavras-chave: J.-B. Pontalis; Sartre; Les Temps Modernes; psicanálise francesa; linguagem.

Na introdução de seu livro Sobre a loucura privada, André Green afirma que escreve, entre outros motivos, pelo desejo de organizar a experiência e como expressão de sua busca da verdade na filiação a Freud. Um contato mais amplo com sua obra nos mostra que Green permaneceu fiel a esses objetivos durante toda sua trajetória. Muitos de seus textos, em que pese a ausência de relatos de caso, emanam o que ele denomina de pensamento clínico. Além disso, ele é o psicanalista contemporâneo que melhor articulou o pensamento de Freud com a psicanálise da atualidade (sempre com uma postura de tributo e de questionamento), evidenciando a presença das ideias freudianas na compreensão dos períodos iniciais da vida psíquica e dos indivíduos fronteiriços considerados os pacientes típicos do nosso tempo. Frente à diversidade de temas que sua vasta obra nos apresenta, escolhi abordar neste trabalho algumas ideias de Green sobre o conceito freudiano de pulsão e sua aplicação clínica nos casos dos pacientes fronteiriços.

Palavras-chave: Freud; André Green; pulsão; estados limítrofes; pacientes fronteiriços.

André Green instala os fundamentos de seu pensamento sobre o afeto a partir de uma crítica nocional dos textos freudianos e pós-freudianos, mostrando, assim, sua preocupação em se inscrever numa história, sem deixar de insistir no aspecto estrutural da questão. Procura, também, propor uma alternativa ao modelo lacaniano, explorando os recursos consecutivos à exclusão, por Lacan, do afeto no seio de sua teoria. As autoras retomam os principais componentes do afeto segundo Green, em particular seu aspecto insconsciente, para em seguida mostrar que seu trabalho de pensamento clínico lhe permite precisar o funcionamento do afeto. Foram escolhidos três exemplos importantes no pensamento clínico de André Green: a alucinação negativa da mãe, a paixão e os estados de indiscriminação afeto/representação.

Palavras-chave: afeto; pensamento clínico; inconsciente; alucinação negativa; paixão; estados de indiscriminação.

A partir da história pessoal de Joyce McDougall, este texto descreve o caminho por ela percorrido em sua formação em Londres e Paris. Destaca sua abertura às diferentes correntes psicanalíticas e as influências das trocas por ela estabelecidas com seus contemporâneos na criação de seus próprios conceitos. Analisa, igualmente, as principais concepções de J. McDougall sobre sexualidade, perversão, desenvolvimento do psicossoma, somatizações e a originalidade de seus conceitos de normopatia, desafetação, histeria arcaica, psicose atual.

Palavras-chave: Joyce McDougall; psicanálise; psicossomática; homossexualidade feminina; neossexualidades; normopatia; desafetação; criatividade; histeria arcaica; psicose atual.

Joyce McDougall afirma que a sexualidade humana é na sua origem traumática, traumatismo que está ligado ao reconhecimento da diferença entre os sexos. A configuração edipiana, seja na sua dimensão homossexual ou heterossexual, confronta o indivíduo com a impossibilidade de possuir os dois sexos, como também de possuir seus pais. Este artigo sugere que a distinção entre “pai assassinado” e “pai morto” é crucial na internalização da diferença sexual. A fantasia de “um pai espancado” e suas transformações emergem na análise de certos pacientes homens e expressam a apropriação do pai morto (pai simbólico). Quatro casos clínicos são descritos. A autora formula a hipótese de que alguns casos clínicos demonstram a incapacidade de elaborar a perda do pai simbólico e apresentam erotização desta perda.

Palavras-chave: pai morto; pai assassinado; pai espancado; cena primitiva; foraclusão; fantasias primárias; perversão; diferença sexual.

A contribuição de Betty Joseph é examinada à luz do conceito de intertextualidade (Octavio Paz) e dentro do contexto dos desenvolvimentos clínicos da cultura psicanalítica da Sociedade Britânica de Psicanálise. Os autores buscam relacionar dialeticamente as ideias dela com as contribuições de Klein, Balint, Rycroft, Bion, Rosenfeld, Segal e outros. Betty Joseph focava sua abordagem no que estava ocorrendo no aqui e agora da sessão, e procurava discernir os convites inconscientes que o paciente fazia ao analista (por meio de identificações projetivas) para atuar certos papéis ou sentir certos sentimentos, com vistas a manter seu equilíbrio psíquico inalterado e dessa forma impedir qualquer mudança psíquica de ocorrer. Estas projeções e a resposta do analista a elas podem ou não produzir uma mudança psíquica que desafia seu estado atual de equilíbrio psíquico, o que por sua vez nos permite observar como o passado é vivido no presente, reafirmando o caráter imediato da verdade psíquica. As primeiras contribuições publicadas de Betty Joseph datam do fim dos anos de 1950, mas pensamos que ela atinge o pico de sua singularidade na década de 1970.

Palavras-chave: intertextualidade; Klein; Balint; Rycroft; Bion; Rosenfeld; Segal.

Neste trabalho o autor faz uma pequena biografia de Betty Joseph, seguida pelas principais contribuições teórico-clínicas de sua obra. Atenta aos pacientes de difícil acesso, buscou constantemente uma forma de tornar compreensível, aos pacientes, as interpretações. Sublinha a ocorrência da mudança psíquica pela ênfase nas interpretações baseadas no que o paciente experimenta nas sessões na interação com o analista, e não nas formulações explanatórias ou nas construções históricas. Enfatiza a contratransferência como norteadora da situação transferencial e dos enactments vividos pela dupla como a possibilidade de observação dos aspectos perversos do paciente.

Palavras-chave: Betty Joseph; contratransferência; enactement; mudanças psíquicas.

Artigos

Neste artigo pretende-se mostrar que Winnicott redescreveu a noção de narcisismo primário, apoiando-se nas indicações de Freud mas acrescentando-lhes desenvolvimentos significativos. Para ele, as relações mais primitivas do bebê devem considerar a sua extrema imaturidade e a sua dependência do ambiente, de maneira tal que não haveria sentido supor uma unidade pertencente ao bebê, mas que tal unidade corresponderia, na verdade, ao conjunto bebê-ambiente. Nesse caminho, procura-se também, ao final, estabelecer um diálogo com Roussillon, opondo sua consideração de que no narcisismo primário a sombra do objeto primário recairia sobre o self à afirmação de que no início não há sombra possível do objeto sobre o self porque não há uma realidade não-self. Tais distinções têm como objetivo explicitar que tipo de situação transferencial, que tipo de objetivo analítico a ser alcançado está presente nos casos em que o paciente e seu analista precisam retomar a situação do narcisismo primário.

Palavras-chave: narcisismo primário; sombra do objeto; self; ambiente; adaptação.

A partir da clínica, examinam-se aqui fenômenos contratransferenciais turbulentos e delicados, que afloram em um corte longitudinal de uma longa e profunda análise. Mostra-se, através da clínica, a sutil diferença entre a contraidentificação projetiva (Grinberg, 1956), contratransferência complementar e concordante (Racker, 1960/1982) e sua possível encenação no campo analítico pela via de um enactment agudo (Cassorla, 2012). Tais mecanismos – muitos deles erigidos na base da identificação projetiva massiva (patológica) – podem revestir-se de caráter perturbador para a dupla, em razão do impacto e consequências que são capazes de ocasionar. Depois de tratar dos movimentos comunicativos, demonstra a autora que, embora correndo o risco de propiciar rupturas do campo analítico, a análise dos fenômenos surgidos na sessão evidenciou tratar-se principalmente de um mecanismo projetivo realístico (sadio) – posto em cena pela via de um ato interpretativo –, que permitiu abrir espaço à rede simbólica de pensamentos. Revelam-se aspectos íntimos para tornar possível a objetivação desse complexo fenômeno, e reflete-se sobre o papel do analista que, como obstrutor ou facilitador do processo, pode ser coadjuvante de avanços na psicanálise contemporânea.

Palavras-chave: contratransferência; contraidentificação projetiva; ação interpretativa; enactment; identificação projetiva.

Os autores descrevem o método da fotolinguagem na clínica grupal, técnica desenvolvida por psicanalistas da cidade Lyon, e analisam a indicação clínica de dispositivos grupais que utilizam objeto mediador para pacientes cujo comprometimento mental impõe limites e, portanto, requer flexibilidade de três constantes na prática psicanalítica: a associação livre, a transferência e a interpretação. Em seguida distinguem esse dispositivo grupal que utiliza objeto mediador daqueles que não o utilizam, bem como o diferenciam dos dispositivos individuais que utilizam o objeto mediador. Finalmente, abordam a questão da sinergia entre o grupo e o objeto mediador para tentar destacar alguns processos psíquicos inconscientes e verificar suas especificidades, ilustrando-os com uma vinheta clínica de pacientes psicossomáticos.

Palavras-chave: grupo psicoterapêutico; objeto mediador; psicossomática; psicanálise; fotolinguagem.

Resenhas