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Volume 44 nº 2 - 2010 | Variações e fundamentos

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

A riqueza da psicanálise reside, entre outras propriedades, na sua permanente abertura para as singularidades. A tensão entre os sistemas teóricos mais consolidados e o específico de cada configuração psíquica, assim como aquela entre a técnica clássica e as particularidades de cada processo analítico, longe de apontarem uma fragilidade epistemológica são testemunho de um método original de abordar o sofrimento humano no contexto dos saberes sobre o psíquico. Desde seus primórdios o campo psicanalítico comportou a diversidade de olhares sobre o exercício clínico, enriquecendo e ampliando a compreensão dos processos inconscientes e, deste modo, contribuindo na elaboração do mal-estar daqueles que nos procuram. Variações e fundamentos é o nome que encontramos para contemplar este movimento.

O leitor encontrará, na seção “Debate”, textos dos colegas Anette Blaya Luz, Jane Kezem e Humberto da Silva Menezes Junior, que tratam das modificações na técnica e seus
fundamentos. O estímulo para esse debate nasce do diálogo possível entre o momento atual da clínica psicanalítica e as ricas e ousadas contribuições de Ferenczi que, mesmo sujeitas à crítica e revisões, abriram as portas para substanciais transformações na escuta analítica e avanços na compreensão do trauma infantil, das falhas nos processos de simbolização e do lugar do outro na constituição do psiquismo e no processo analítico. Esses trabalhos destacam-se pela franqueza com a qual os autores abordaram o desafio, assim como pelo fino tratamento teórico-clínico que deram ao assunto.

André Green acaba de organizar uma coletânea, recentemente publicada, Les voies nouvelles de la thérapeutique psychanalytique (Os novos caminhos da terapia psicanalítica),
da qual participam um expressivo número de renomados analistas do cenário internacional que apresentam inovações no campo da clínica e uma discussão sobre os fundamentos que as sustentam. Por sua vez, R. Roussillon em seu artigo “La conversation psychanalytique: un divan en latence” (2004), sugere que não é mais o dispositivo padrão que decide quem pode ser analisado, mas sim as necessidades singulares do analisando que assinalam o dispositivo mais adequado para essa análise. Isso aponta para as “inovações no campo da técnica”. Tomando em consideração esta instigante proposta, formulamos uma carta-convite endereçada a todos os membros da Febrapsi, e nela sugerimos aos colegas a seguinte indagação: “O que está em jogo no trabalho analítico? O que sustenta clínica e metapsicologicamente a diversidade de dispositivos utilizados pelos analistas?”.

Há algumas décadas reconhece-se um universo clínico cujo escopo se estende para além da classificação entre neurose e psicose. Os pacientes borderline, as configurações não
neuróticas e o mutante contexto sociocultural demandam um manejo original da transferência que foge aos padrões clássicos. Para além do valor e do interesse de cada texto em particular, o conjunto dos trabalhos publicados, em resposta ao nosso convite, constitui um rico mosaico; uma amostra da criatividade clínica e do compromisso ético com o qual nossos colegas vêm abordando estes assuntos, cuja complexidade não escapa ao leitor. Os autores apresentam suas respectivas modalidades de operar clinicamente com estas difíceis e desafiadores configurações psíquicas, assim como procuram construir recursos metapsicológicos para pensá-las. Temos certeza de que o movimento que se origina da diversidade de posturas apresentadas poderá se constituir em estímulo para o leitor visando à reflexão em torno de sua própria experiência clínica. Pensamos, assim, contribuir para o enriqueci-mento do debate em torno desta matéria que, sem lugar a dúvida, diz respeito ao futuro da psicanálise.

Dois convidados estrangeiros fazem parte deste número. Janine Puget no seu trabalho,“Os dispositivos e o atual”, parte da análise de filósofos contemporâneos em torno
das perplexidades face ao que consideram como atual. Estrategicamente discorre sobre os significantes fidelidade e poder, para apontar as transformações no seu percurso como psicanalista e sua perspectiva em torno da natureza dos dispositivos clínicos. Já na seção “Intercâmbio” publicamos a conferência “Figuras da protomelancolia”, de Jean Claude Rolland, que aborda a raiz melancólica das psicoses que visa avançar na compreensão da psicopatologia psicanalítica. O diálogo com Biswanger, a inspiração literária e sua clínica são matériaprima para investigar o que será tratado como tentativa de abolição do campo do outro que se desdobra na cena transferencial.

Antes de encerrar este editorial, gostaríamos de expressar nosso agradecimento a Luciana Gobbato que, com dedicação e carinho, transmitiu para a nova equipe editorial sua experiência na função de secretária da Revista Brasileira de Psicanálise durante as duas gestões que nos antecederam e que, em função de novos projetos pessoais, solicitou seu afastamento.

Damos as boas-vindas a Nubia Brito Bueno, nossa nova secretária administrativa.

Bernardo Tanis
Editor

Debate

O texto apresenta uma breve vinheta clínica para ilustrar o que a autora propõe como uma das importantes contribuições de Ferenczi em relação aos temas sobre a teoria da técnica psicanalítica. É proposto que em casos difíceis, tipo pacientes borderline, a manutenção de um setting clássico pode colocar em risco a evolução e a sobrevivência do tratamento, já que há grandes chances de o paciente vivenciar isso como uma reprodução dos traumas que o adoeceram.
Palavras-chave: borderline; pacientes difíceis; adaptações do setting; neutralidade; tato psicológico.

A autora considera que a carta de Freud datada de 13/12/31 destacada do contexto de sua época perde a essência de seu significado. Ela pertence a um período da produtividade de Ferenczi que marcará definitivamente sua pessoa como precursora da psicanálise contemporânea e o exato período que separa a psicanálise clássica da psicanálise da atualidade. Considera que embora o nome de Ferenczi tenha sido estreitamente ligado à técnica psicanalítica, e particularmente à técnica ativa, esta ficou pelo caminho no seu percurso. Sua contribuição maior talvez tenha sido trazer à luz o humano que há em todo profissional dedicado à pratica psicanalítica, o humano a ser forjado pela própria prática da prática.
Palavras-chave: psicanálise contemporânea; elasticidade da técnica; tato; “sentir com”.

O autor, a partir de estímulos baseados nas polêmicas propostas técnicas de Ferenczi, e a visão pouco otimista de Freud sobre elas, busca examinar algumas questões e riscos que envolvem a relação analítica, enquanto um momento de exercício de ousadia, representado pelo atendimento às recomendações da regra fundamental, pelo analisando, e suas consequências na escuta do analista. Procura, também, escrutinar brevemente algumas implicações, no âmbito da clínica, decorrentes do surgimento da chamada “patologia do vazio”, bem como certas contradições e insuficiências na utilização de alguns termos de uso corrente, tais como escuta analítica, analista, psicoterapeuta, paciente e analisando. Para tanto, vale-se de dois extratos de sua clínica privada.
Palavras-chave: ousadia; clínica cotidiana; escuta do analista; experimentação; experiência; setting.

Artigos temáticos – Variações e fundamentos

Proponho diferenciar fidelidade ao contrato de fidelidade ao acontecimento, como também, poder substantivo e relações de poder, que definem os sujeitos “em situação”. Pergunto-me se o corpo teórico psicanalítico produziu acontecimentos, ou se se tratou principalmente de reacomodações e progressivas complexidades mantidas dentro de um grande enquadre comum. Proponho, portanto, que tomar em conta o outro enquanto outro, os limites dos processos identificatórios, e a subjetividade social no presente deveria levar-nos a trabalhar com dois modelos diferentes em permanente conflito: o da subjetividade identitária e o dos sujeitos múltiplos. São apresentadas algumas vinhetas clínicas.
Palavras-chave: fidelidade; contemporâneo; relações de poder; o poder.

O autor, convidado para participar de mesa-redonda sob o título Violações do setting, retoma o conceito original que esse termo tem em psicanálise para, em seguida, desmembrá-lo em suas dimensões: os aspectos formais ligados às condições externas em que a psicanálise se dá e os aspectos ligados ao psiquismo do analista que tem o método psicanalítico incorporado em si. Ao privilegiar esta segunda dimensão, ressalta aspectos ligados à atualidade da clínica e sua relação com o método analítico. A ideia de violação é examinada a partir de alguns fragmentos do cotidiano analítico.
Palavras-chave: setting analítico; método analítico.

Este estudo (subdividido em dois artigos) propõe neste primeiro tempo uma revisão das formas historicamente assumidas pela prática psicanalítica com crianças, apontando os pressupostos epistêmico-ontológicos que a sustentam e realizando uma crítica da atividade interpretativa – particularmente a operada pelos psicanalistas kleinianos – que questiona principalmente a crença compartilhada na sua potencialidade mutativa pela produção de insights. Para isso, toma como suporte as obras de Ferenczi, Winnicott e Lacan e sugere uma abordagem clínica que realça a comunicação indireta (lúdico-metafórica) e a presença viva e discreta (anobstrutiva) do analista no interior do setting.
Palavras-chave: psicanálise de crianças; diálogo transicional; indicação lúdica; testemunho presencial.

Investiga-se a questão da constituição, repetição e manejo de núcleos neuróticos e não neuróticos em uma mesma analisanda. Considerou-se a perspectiva transgeracional para imaginar, a partir da situação transferencial-contratransferencial, que elementos inconscientes poderiam estar na origem desses núcleos. Propõe-se a hipótese de que elementos tanáticos não simbolizados pelas figuras parentais, evacuados e alojados pela psique em formação, estão na origem dos núcleos não neuróticos (do sofrimento narcísico-identitário); e elementos-beta eróticos, não simbolizados pelas figuras parentais, evacuados e alojados pela psique em formação, estão na origem dos núcleos neuróticos.
Palavras-chave: núcleos neuróticos e não neuróticos; repetição; manejo; elementos-beta tanáticos; elementos-beta eróticos.

o presente trabalho pretendemos relatar situações clínicas de dois pacientes atendidos no AMBORDER em que ocorre a ruptura do setting analítico através da experiência com o corpo do analista: o abraço. A partir disso, recorreremos a conceitos fundamentais propostos por Freud a fim de discutir a prática psicanalítica em dois eixos: 1) o que define a escuta psicanalítica? 2) em quanto será preciso modificar os cânones, sobretudo do setting, para tratar os pacientes borderline?
Palavras-chave: fronteiriço; corpo; psicanálise; transferência; contratransferência.

A autora questiona a clínica contemporânea, assinalando que nossos impasses se agravam, à medida que pretendemos usar o modelo teórico do recalque numa clínica cujos pacientes oferecem uma precária capacidade de simbolização. As mudanças clínicas acompanham as mudanças sociais, sendo necessário conhecê-las para poder contemplar o sofrimento que provocam. Propõe um cotejamento entre o modelo freudiano do recalcamento e o modelo winnicottiano da transicionalidade, problematizando o conceito de sublimação.
Palavras-chave: clínica contemporânea; recalque; transicionalidade; sublimação

Partindo das mudanças observadas na cultura desde o final do século XX, o autor propõe uma discussão a respeito do lugar do psicanalista no setting analítico hoje, e as particularidades necessárias para a análise do sujeito de século XXI. Os principais desafios que se apresentam atualmente para os analistas são a hospitalidade para o radicalmente estrangeiro e o rigor de sua formação. A hospitalidade só pode ser oferecida por um analista que tenha plenamente incorporado em si o método psicanalítico
e a ética que lhe é própria, sendo essa incorporação do método na estrutura identitária do analista o que possibilita um lugar de permanência na cultura dos não lugares e da velocidade, viabilizando um setting possível e eficiente. Nos tempos de respostas, a psicanálise e os psicanalistas devem manter sua vocação em sustentar as boas perguntas.
Palavras-chave: psicanálise; hospitalidade; formação analítica; método psicanalítico.

Este artigo comenta trechos do relatório que André Green apresentou em 1975 no XXIX Congresso da IPA, e traz as contribuições desse psicanalista francês para a metapsicologia da situação analítica. Para Green, a sessão de análise deve ser pensada a partir das descobertas freudianas sobre o trabalho do sonho. Tal como acontece com o sono e o sonho, a finalidade do dispositivo acionado pelo enquadre analítico é implantar as condições necessárias e suficientes para estruturar um processo de simbolização. Ressurgidos do inconsciente ou produzidos pelo encontro analítico, esses símbolos devem poder gerar significados que possam ser traduzidos em pensamentos, palavras e interpretações
abrindo espaço para a elaboração das experiências afetivas. O autor introduz a noção de paciente-limite como sendo os pacientes que apresentam uma intolerância ao dispositivo convencional e acrescenta que as variações no dispositivo promovem uma elasticidade técnica, tendo como objetivo único preservar na sessão de análise as condições mínimas de simbolização, sem as quais o processo analítico estaria imobilizado.
Palavras-chave: André Green; simbolização; ausência; paciente-limite; enquadre psicanalítico.

Artigos

O artigo postula dois tipos de razão operando no homem saudável, tal qual concebido por Winnicott. O primeiro tipo (que guarda afinidades com aquele característico do pensamento de Heráclito de Éfeso) é a razão paradoxal: psíquica por excelência, dominando sempre que se trata de questões afetivas/sentimentais. A outra razão é a utilitária (que corresponde à lógica formal, tal qual formulada por Aristóteles), mental por excelência, operando sempre que o self tem de lidar com questões de utilidade prática, envolvendo suas relações com o mundo sociocultural. O espaço potencial (situado entre o objeto subjetivo e o objeto objetivo) constitui o instrumento de tradução bidirecional entre as duas razões.
Palavras-chave: razão; psique; mente; Winnicott.

O Homem apreende as sequências de acontecimentos em função de símbolos reguladores temporais, como se fossem característicos do Humano. A constituição temporal é inseparável do simbólico. Pelo interesse investigativo e terapêutico, instigou-se uma questão: como operar na lógica do desejo, nas lógicas temporais do campo transferencial? Buscou-se investigar até onde o método psicanalítico pode ser intimado, em uma específica lógica temporal constituinte. Qual dimensão constitui a psique? Ao pensar o tempo pela lente psicanalítica articulado à contemporaneidade, busca-se ampliar os horizontes da psicanálise e tomá-la fora da clínica padrão. Tal discussão remeteu à noção do tempo
lógico de Lacan, e aos tempos da análise de Herrmann, que articulado com o que se presentifica em determinado proceder analítico, inaugura uma outra dimensão de tempo advindo da experiência de um vínculo em condição de análise, a intemporalidade.
Palavras-chave: método psicanalítico; lógica temporal; intemporalidade do inconsciente; cura.

A partir de situações clínicas são discutidos fatores envolvidos no ato suicida, consciente ou inconsciente. Propõe-se que o suicida falhou em tornar o Inferno (no qual vive) habitável, dando-lhe sentido. Para escapar de seus tormentos fantasia Paraíso, onde todas as necessidades são satisfeitas, diferente de Nada. Tudo e N ada, incognoscíveis, se confundem. Buscando compreensão, utiliza-se o mito de Adão e Eva: a ingestão do fruto proibido sinaliza, ao mesmo tempo, contato com a realidade (Inferno) e surgimento da capacidade de pensar (simbolização e transformação de Inferno). Discutem-se situações próximas ao aniquilamento, a erotização da morte e aquelas em que se cria carapaça protetora contra a realidade, atacando-se a vida e a criatividade. Impulsos homicidas se tornam suicidas objetivando vida imaginária dentro do outro. Finalmente, propõe-se considerar Paraíso fetiche substitutivo de Nada impensável, o que acarreta consequências para a psicanálise.
Palavras-chave: suicídio; função alfa; mito do Paraíso; psicose; pulsão de morte.

Intercâmbio

O autor expõe, nessa conferência, uma perspectiva instigante sobre a origem da melancolia e as vias de sua inseminação. A melancolia reside no cerne daquilo que move a trama edípica, humana, ou, mais precisamente, abriga o potencial aniquilador de sua própria realização. O incesto, como fonte do desejo, quando levado às suas últimas consequências, visa a abolição da alteridade dos protagonistas e suas moções, e com isso o sumiço do próprio palco da cena edípica, revertendo, assim, a tensão do desejo e sua estruturação para o da morte, almejando união no nirvana. Nesse extremo retorno nostálgico ao uno melancólico, na destruição da diferença, situam-se as psicoses. O autor inicia retomando o relato de Binswanger sobre um caso de psicose e sua interlocução a este respeito com Freud, a partir do que é inserida a criação literária, bem como material clínico do autor, utilizados para desenvolver a idéia de que todas as psicoses, sem exceção, encontram-se na filiação da melancolia. Essa abolição ou reversão no contrário, da vida em morte, é focada no seu desdobramento no campo da transferência. Nessa há a abolição de qualquer representação dessa ação de reversão, o que leva o autor a nos desafiar a poder enxergar a trama edípica. O efeito destrutivo maior se encontra aí. Das psicoses ele passa para outra série de configurações clínicas onde a protomelancolia se enuncia em estados da normalidade quando o trabalho de luto revela-se infindável devido ao impasse em poder se perder de vista do objeto que se retirou da cena. As consequências são aqui também dramáticas.
Palavras-chave: pulsão; reversão no contrário; psicose; transferência; protomelancolia.

Resenhas