Volumes

Volume 56 nº 1 - 2022 | Crueldade

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Amor sem verdade não é mais do que paixão;

verdade sem amor não passa de crueldade.

Wilfred Bion

A escrita deste editorial coincide com os horrores da invasão russa na Ucrânia, televisionados e transmitidos por todas as mídias. Cidades devasta­das, hospitais bombardeados, homens, mulheres, crianças e idosos alvejados enquanto tentam fugir da destruição, da tortura, do estupro. Em recente repor­tagem li que um dos dramas pouco divulgados e quase sem chance de receber algum “remédio” é o estupro de meninos e homens – algo corriqueiro durante invasões de exércitos inimigos –, além daquele que sofrem as meninas e as mu­lheres. À violação de meninos e homens costuma ser negada a existência. As vítimas também silenciam sobre a crueldade sofrida, pois quase invariavelmen­te se tornam estigmatizadas por “terem se deixado” abusar. Em um caso dra­mático, num confronto prévio, um pai foi forçado a ter relações com o próprio filho. O trauma entre eles foi tão grande que, após a violência sofrida, nenhum dos dois suportou mais se encontrar com o outro. Em nome da religião e da moral cristã, o patriarca da Igreja russa abençoa e vangloria a destruição de um país por considerá-lo tomado por costumes inaceitáveis. Cidades inteiras estão arruinadas, e seus habitantes cercados e forçados à inanição e ao desespero total. Como complemento, existe a ameaça de aniquilação da própria civiliza­ção ou mesmo da espécie humana pelo uso de armas nucleares. Para arrematar o horror, grupos de espectros políticos (aparentemente) opostos se afinam com justificativas espantosas para o exercício da barbárie.

Essa é uma situação nova? Certamente não. Um colega costumava di­zer-me há cerca de uma década que, a cada 50 anos, os seres humanos tendem a produzir uma imensa guerra em que boa parte da humanidade é aniquilada. Ele estava preocupado porque já fazia mais de 60 anos desde a última confla­gração mundial. Isso tem se repetido desde os tempos homéricos, e a violên­cia e a crueldade são intrínsecas à nossa natureza. Grandes ídolos da história universal foram sanguinários genocidas: Alexandre, o Grande; Júlio César; Gengis Khan; Átila; Isabel de Castela; Catarina de Médici; Luís 14; Potemkin; Catarina, a Grande; Napoleão 1º etc. O túmulo do imperador francês foi con­cebido de tal forma que mesmo após sua morte aqueles que vão vê-lo precisam curvar-se para enxergar seu sarcófago.

Em nome da religião e da nacionalidade todo tipo de violência e cruel­dade tende a ser racionalizado e justificado. A paranoia, dessa maneira, encon­tra justificativa externa.

Iniciamos este número com o belo artigo de Marcus V. Mazzari, profes­sor de literatura comparada da Universidade de São Paulo, que focaliza o con­flito ideológico, que termina de forma violenta, entre os personagens Naphta e Settembrini do romance A montanha mágica, de Thomas Mann. O ensaio aborda a eventual posição do romancista na constelação ideológica subjacente a essa irrefutável obra-prima.

Em seguida, apresentamos sete artigos muito estimulantes, que abordam diretamente a temática proposta. O destacado colega portenho Jorge Eduardo Catelli considera a ideia de crueldade a partir de teorizações freudianas sobre o aparelho psíquico, valendo-se também de um caso clínico. Os colegas brasileiros Ignácio A. Paim Filho et al. trazem a questão da atua­lidade, uma vez que a mentalidade atual propõe a recusa de limites inerentes à existência, o que vai na contramão do complexo de castração como pedra angular para a introdução do sujeito na cultura. Bruna Bortolozzi Maia e Manoel Antônio dos Santos, apoiando-se na obra de Janine Puget, enten­dem que a crueldade é produzida pela dificuldade em lidar com diferen­ças. Fabiana Villas Boas vale-se da composição “Eles”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e da obra de Hannah Arendt para discutir a banalidade do mal sob a ótica dos textos sociológicos de Freud. Carolina Paixão de A. Pinheiro et al. partem do filme Abril despedaçado, de Walter Salles, para explorar os efeitos da transmissão geracional em situações de violência e crueldade. Vanuza Monteiro Campos Postigo aborda o universo digital, em que o mal e a crueldade se expressam de maneira feroz. E Antonio de Almeida Neves Neto retoma os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e o “Fetichismo”, de Freud, para pensar a adequação desses textos na clínica e na cultura atuais, propondo uma nova noção de fetichismo, culturalmente menos moralista.

Contamos também com valiosas contribuições não temáticas. Izelinda Garcia de Barros, com sua longa experiência de atendimentos de crianças, propõe uma reflexão sobre o conceito de objeto continente ótimo, que investi­ga modos arcaicos do funcionamento psíquico. Cleuza Mara Lourenço Perrini aborda o feminino enquanto continente, prévio à existência do masculino, em um campo no qual a autora tem se aprofundado há algum tempo. Cecil José Rezze tece profundas reflexões sobre ética e atendimento online, e se indaga – a partir da experiência digital – se o que estaria surgindo seria algo que ainda caberia chamar de psicanálise. Esse texto conversa, de forma muito instigante, com o trabalho dos autores Bruno Cavaignac Campos Cardoso et al., sobre o enquadre virtual como dispositivo de atendimento online.

Na cerimônia do Oscar um ator agrediu verbalmente, de forma aviltante, outro (valendo-se da doença da esposa dele), e este retrucou com um violento tapa e ofensas verbais, em cadeia televisiva mundial. Esperamos que a leitura deste número seja uma oportunidade de reconhecer e pensar a questão da cruel­dade e nos permita vislumbrar saídas mais civilizadas e construtivas.

Intercâmbio

O autor focaliza o embate ideológico entre duas personagens de A montanha mágica que disputam a ascendência sobre o jovem em formação Hans Castorp: o italiano Settembrini e o judeu Naphta, que após fugir de um pogrom no Leste Europeu se torna jesuíta e, ao mesmo tempo, ferrenho defensor da ditadura do proletariado. Enquanto o primeiro pauta suas intervenções por concepções liberal-progressistas, o último se distingue por um radicalismo que nega a ciência e os valores democráticos. No fecho do ensaio, o autor se debruça sobre a eventual posição do romancista Thomas Mann na constelação ideológica esboçada nesse grandioso romance de formação.
Palavras-chave: Thomas Mann, A montanha mágica, Naphta, Settembrini, ideologia

Temáticos

Neste trabalho, o autor confronta as ideias de crueldade, tal como se apresentam em certas passagens das teorizações freudianas, com as conceitualizações acerca do aparelho psíquico formuladas ao longo da obra de Sigmund Freud. Considera essas modalidades de funcionamento mental como possíveis paradigmas explicativos em que podem ser identificadas possibilidades de apresentação do psiquismo na clínica, a fim de abrir possíveis vias para pensar e analisar os modos de irrupção dessas categorias. Expõe o caso de uma jovem mulher que chega à análise com condutas bulímicas e num profundo submetimento à figura materna, com quem sustentou uma espécie de lactância nos primeiros 24 anos de vida. A partir das formulações teóricas precedentes, analisa a manifestação da crueldade no mundo enlouquecedor da paciente e mostra parte do processo de psicanálise levado adiante.
Palavras-chave: bulimia, anorexia, crueldade, próximo, semelhante

O complexo de castração, central na resolução do complexo de Édipo, pano de fundo para ansiedades a serem elaboradas no decurso do desenvolvimento psíquico e força motriz para o recalque, é o objeto de estudo dos autores. Coloca-se na conflitiva entre o desejo e as restrições a ele, introduzindo o sujeito na cultura. Os autores se perguntam: como essa complexidade está inserida na cultura atual, que em seus diferentes aspectos propõe um ideal que recusa os limites inerentes à existência e desconsidera a castração? Apoiam-se na teoria freudiana ao considerar o potencial criativo da pulsão de destruição quando relacionada com a castração. Se adequadamente instrumentalizada, a pulsão de destruição utiliza sua força disruptiva para romper com o estabelecido e viabilizar a ação da força conjuntiva de Eros, estabelecendo uma nova organização, o território edípico.
Palavras-chave: castração, pulsão de destruição, Édipo, narcisismo, cultura

A partir de reflexões acerca do impacto que o filme Abril despedaçado, de Walter Salles, produziu neles, os autores desenvolvem este trabalho em torno das noções de ressentimento, rancor e vingança e de seus aspectos traumáticos. Exploram nuances dos efeitos da transmissão geracional em situações de violência e crueldade, bem como a centralidade que os trabalhos de luto – e em especial a impossibilidade de realizá-los – desempenham em certos funcionamentos psíquicos.
Palavras-chave: ressentimento, trauma, recusa, luto, psicanálise contemporânea

Neste artigo, a autora explora como o novo território digital, que surge a partir do advento da rede mundial de computadores, se configura como um espaço onde o mal e a crueldade humana se expressam de maneira feroz, favorecidos pelas condições de anonimato e distância. As grupalidades e massas constituídas nas redes formam arenas de haters, compostas por massas de odiadores, usuários da web que se reúnem em um coliseu virtual no qual incitam o linchamento ou o cancelamento de pessoas e instituições. Esses sujeitos, em sua singularidade ou engajados nas massas virais que se configuram continuamente nas redes sociais digitais, são regidos por pulsões mortíferas que encontram lugar nessa nova arena virtual, cuja lógica de funcionamento contribui para que o mal prolifere.
Palavras-chave: crueldade, psicanálise, massa digital

Com Freud, compreendeu-se que a crueldade tem raízes psíquicas na confluência da pulsão de morte. Admitindo-se que seja uma característica intrinsecamente humana, a cultura, por outro lado, ofereceria possibilidades também humanas de contornar as vicissitudes da crueldade. Há um quantum incontornável de desprazer produzido pela impossibilidade de satisfação das pulsões sexuais e agressivas. Todavia, a renúncia à gratificação plena, em nome do laço social, é o trunfo que possibilita a civilização. A malha vincular, entretanto, tem se mostrado fragilizada no contemporâneo, o que leva os autores a questionar: como compreender a crueldade do ponto de vista vincular? Para responder a essa provocação, empregam o arcabouço conceitual de Janine Puget, que compreende a crueldade como produzida no vínculo pela dificuldade em lidar com as diferenças. Fragilização do tecido vincular e incertidumbre favorecem o aparecimento de tiranos, que, pela imposição de suas verdades absolutas, tentam apagar direitos e negar a humanidade de grupos minoritários.
Palavras-chave: vínculo, crueldade, coesão de grupo, psicanálise vincular

A partir de uma composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Eles”, a autora discute a ideia de banalidade do mal da filósofa Hannah Arendt sob a ótica psicanalítica. Retoma brevemente os chamados textos sociológicos de Freud – Por que a guerra?, Totem e tabu, Psicologia das massas e análise do eu e O mal-estar na civilização – para refletir sobre a formação mítica da sociedade ocidental em torno da culpa pelo parricídio e da criação dos laços fraternos como forma de evitar novas manifestações da violência fundamental. Considera as pulsões de vida e de morte, como lidas por Freud em Além do princípio do prazer e por Zaltzman em A pulsão anarquista, para pensar a crueldade exercida por pessoas comuns ou, em outros termos, a banalidade do mal.
Palavras-chave: crueldade, banalidade do mal, psicanálise, pulsão de vida, pulsão de morte

O autor busca retomar a noção de fetichismo desenvolvida por Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, e no texto “Fetichismo”, de 1927, a fim de pensar a sua adequação clínica e cultural na contemporaneidade. A centralidade dos genitais na obtenção de prazer sexual desempenha um papel fundamental na definição de uma sexualidade não perversa no início da teorização de Freud. Esse aspecto da teoria, com forte carga moralista, parece perder importância na evolução de sua obra. Com o texto de 1927, a centralidade do diagnóstico de fetichismo passa a girar em torno da relação do sujeito com a lei e do reconhecimento da alteridade. Tendo a dessubjetivação do outro como um de seus principais sintomas, amor e crueldade tornam-se noções centrais para pensar o fetichismo. O trabalho sobre essa questão dará à noção de fetichismo uma função clinicamente mais relevante e culturalmente menos moralista.
Palavras-chave: fetichismo, Freud, sexualidade, genitalidade

Temas livres

A partir da década de 1970, no atendimento a crianças autistas foram registrados fenômenos englobados sob a designação de estados mentais primitivos. O conceito de objeto continente ótimo, formulado por Esther Bick em 1967, representou o primeiro aporte teórico para a compreensão desses primórdios da constituição do psiquismo. A autora do artigo entende que o pensamento de Bick amplia o modelo de mente kleiniano e é um dos pontos de partida para as construções teóricas sobre os estados mentais inaugurais. Busca mostrar a importância desse pensamento nos alicerces do estudo do arcaico ao apresentar o conceito de objeto continente ótimo e o conjunto de configurações teóricas desenvolvidas com base nele. Por meio de vinhetas clínicas, ilustra sua pertinência na delicada coleta de fiapos de comunicação enviados por partes do self em busca de acolhimento e compreensão.
Palavras-chave: estados mentais primitivos, relações de objeto arcaicas, traumas precoces, ilustrações clínicas

Com base em reverberações dos elementos comumente atribuídos ao feminino – conter, intuir, mediar e proteger –, a autora aborda fatores ligados ao continente feminino (♀) e à sua função. Sugere que o continente vivido pela experiência mãe-bebê inscreve psiquicamente elementos de amparo/desamparo e necessidade/dependência, fortemente sujeitos a aceitação e/ou rejeição. Observa que é recorrente na clínica a valorização da ação, do fazer, do conteúdo (♂), próprio da função masculina, o que prejudica o possível encontro criativo entre os dois. Constata em Bion uma preocupação com esse aspecto, quando ele diz que, nos eventos do consultório, antes que ♀♂ possa funcionar, é necessário encontrar o continente (♀). Por meio de material clínico, mostra que encontrar o continente pode ser o trabalho do feminino a ser realizado, com todas as intempéries que tal movimento exige, sempre dinâmico, interminável e renovável, um eterno vir-a-ser.
Palavras-chave: feminino, desamparo, interminável, continente, identificação primária

Durante a pandemia o método online foi adotado pela necessidade de atender os clientes, trabalhar no campo psicanalítico e receber proventos. O autor desenvolve esse tema em três áreas: 1) a necessidade da presença do cliente, sob o ponto de vista da experiência emocional, da transferência, da contratransferência, da identificação projetiva e de uma contribuição extra-analítica que assinala a acronia e a atopia; 2) o trabalho sem a presença do cliente, no viés do simulacro de experiência emocional, das transformações (privilegiando as transformações em conhecimento e em O) e da facilitação de resistências; 3) a mudança significativa em nosso modo de atender, em que o termo simulacro passa a ser o instrumento de investigação. A ética dependerá de uma experiência que ainda não temos, de vicissitudes pelas quais ainda não passamos e de um método de trabalho que não sabemos se vai ficar ou não.
Palavras-chave: acronia, atopia, simulacro, experiência emocional, transformações

Devido à pandemia de covid-19, grande parte dos atendimentos psicanalíticos e psicoterapêuticos migraram para o ambiente virtual. Essa experiência tanto demanda como propicia reflexões sobre o enquadre no atendimento online. A partir da experiência de supervisão em duas clínicas-escola e da ilustração de um caso, os autores pretendem abordar algumas especificidades desse tipo de atendimento. A virtualidade parece causar uma centralização na imagem, mais especificamente no rosto da dupla analítica, o que pode provocar a captura do sujeito pela própria imagem na tela. Apesar das particularidades do virtual e das possíveis distinções da natureza da transferência, os autores pensam ser possível conduzir tratamentos virtuais, por haver transferência, contratransferência e associação nessa modalidade de atendimento, desde que o terapeuta se utilize do enquadre internalizado para dar conta da ausência do enquadre físico, e de sua voz e imagem como forma de afirmar sua presença, manter-se vivo e atuar como objeto reflexivo.
Palavras-chave: atendimento online, covid-19, atendimento virtual, enquadre, dispositivo

Resenhas