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Volume 47 nº 1 - 2013 | Medo

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Do que se tem medo’ Da morte foi sempre a resposta. E de todos os males que possam antecipá-la, recordá-la aos mortais… De todos os entes reais e imaginários que sabemos ou cremos dotados de poder de vida e de extermínio: da natureza desacorrentada, da cólera de Deus, da manha do Diabo, da crueldade do tirano, da multidão enfurecida… Da loucura que rouba a placidez… Do feminino, do mistério da fecundidade e da maternidade… Temos medo do esquecimento e de jamais poder deslembrar… Temos medo do ódio que devora e da cólera que corrói, mas também da resignação sem esperança, da dor sem m e da desonra…
(M. Chauí, 1985).

Permeando todas as esferas da nossa existência, o medo se nutre da nossa condição de desamparo, Hilosichkeit, que comporta, como tematizado por Freud em Mal-estar na civilização, não apenas a condição de imaturidade da cria humana ao nascer, matriz fundante do desejo alienante face ao amor do outro, mas também a debilidade do eu face à intensidade das pulsões.

A escolha do MEDO como núcleo temático visa estimular a reflexão em torno de alguns dos assuntos que serão abordados no  Congresso Brasileiro de Psicanálise, que terá lugar em Campo Grande, cujo tema é: Ser contemporâneo: medo e paixão.

Iniciamos este número com a entrevista concedida à ­‑por Jaime Ginzburg. Professor de literatura e pesquisador que nos coloca, a partir da literatura de testemunho, perante a questão da possibilidade da representação vinculada a situações de destruição coletiva e individual. Até que ponto experiências de natureza devastadora podem se converter em linguagem, em narrativa compartilhada nos contextos dominados pelo impacto do trauma e da violência’ Para Ginzburg, o medo, ao se fazer presente como elemento constitutivo destas narrativas, destaca-se pela introdução da tensão levando à quebra da sintaxe e do encadeamento do pensamento; uma invasão da dimensão corporal e do processo primário. Na sequência, sua proposta de uma “antropologia do medo” é um convite para que nós, psicanalistas, possamos nos aprofundar a respeito da natureza do pacto social na contemporaneidade. O diálogo com as teses de Totem e tabu (1912-13/1996), comemorando os cem anos de sua publicação, se faz imperativo. Abrem-se as perspectivas de uma interlocução privilegiada para a clínica atual com os elementos masoquistas do que chama de “cultura sacrifical”.

Agradecemos muito especialmente ao escritor Mia Couto, pelo belo texto gentilmente cedido para nossa publicação. Couto denuncia o sentimento criado de que: “a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos– como cidadãos e como espécie– em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa”. A lucidez de sua análise e de suas metáforas revela a fragilidade ilusionista das fáceis representações midiáticas, e nos convida a não termos medo de avançar em nossa reflexão.

Ignacio Gerber coloca o medo da perda do amor como articulação central na configuração dos desdobramentos subjetivos do medo e suas representações. Nos fala do medo no período medieval, lembrando o clássico trabalho de Jean Delumeau, História do medo no ocidente. Dedica especial atenção ao intenso medo da exclusão, e sustenta a tese de que o ódio e a violência têm raízes na ameaça à integridade e ao medo.

O trabalho de Camila Salles Gonçalves mergulha no amago da experiência transferencial-contratransferencial na qual o medo será vivenciado. Winnicott, Freud, Pontalis, Dayan e Herrmann são convocados pelo potencial de instrumentalizar a reexão em torno da própria experiência clínica da autora. Nada melhor que deixar Camila falar: “A análise, na transferência, traria a nós, analistas, a experiência, totalmente ou até certo ponto, intransmissível, com outro, que nos faria migrar”.

A infância é cenário e origem de muitos de nossos medos. Das cantigas de acalanto, passando pelas ameaças das “babás” vitorianas, aos contos infantis, revelam-se angústias e ameaças inerentes à dinâmica da constelação edípica que dá forma a nossa subjetividade. Dois trabalhos abordam de modo complementar e com extrema riqueza este panorama. O primeiro, de Maria Thereza da Barros França, apresenta, a partir de sua vasta experiência clinica em psicanálise e psiquiatria, um painel dos afetos de pânico, terror e medo na infância e sua presença na clínica. O segundo, de René Diatkine, trata do lugar e função do conto infantil, assunto hoje bastante estudado, no qual são tematizados diferentes aspectos da angústia e medos infantis em sua articulação narrativa. Publicado originalmente em 1983, estamos republicando por sua relevância temática e em homenagem a sua importante contribuição na extensão institucional da clínica com crianças, como descrito na esclarecedora introdução de Claude Avram.

Objeto de acalorados debates e controvérsias, o estatuto da teoria em psicanálise permanece sempre aberto a redefinições. Para o conhecimento produzido pela psicanálise já foram propostas versões de sistematização empirista e outras de cunho mais idealista, mas a dimensão pulsional da experiência psicanalítica e seu aspecto transformador da subjetividade do analisando e analista recusa uma fácil domesticação na classificação geral das ciências. Examinando com rigor o problema, sem recorrer a reducionismos mas partindo da complexidade da questão, Thamy Ayouch coloca para si o desafio de investigar a natureza da teorização em psicanálise. Concede à metáfora um lugar central e daí deriva um serie de considerações importantes, que visam manter sempre em funcionamento a natureza crítica
do conhecimento psicanalítico.

Publicamos, na seção de intercâmbio, um instigante trabalho do analista argentino Luis Kancyper, no qual procura discriminar aspectos distintos e complementares das transferências e contratransferências narcisista, edípica, fraterna e a amizade de transferência–contratransferência que, desde sua perspectiva, permitem obter um entendimento mais abrangente da multifacetária situação analítica com crianças e adolescentes.

Na seção artigos, apresentamos os trabalhos de Thaís Helena Thomé Marques, Celia Fix Korbivcher, Hevellyn Ciely da Silva Corrêa e Mauricio Rodrigues de Souza, Marion Minerbo e Abigail Betbedé, e Alessandra Affortunati Martins Parente. Embora de uma diversidade temática muito grande, percebe-se nestes trabalhos um esforço dos autores na apresentação do exercício de um pensamento clínico vivo e criativo, que busca ir além do já conhecido, ampliando as fronteiras da reflexão psicanalítica.

Antes de nos despedir, gostaríamos de anunciar com muita satisfação a criação da primeira edição do Prêmio Revista Brasileira de Psicanálise. A premiação ocorrerá a partir XXIV do Congresso Brasileiro de Psicanálise e terá continuidade a cada futuro congresso dessa instituição. O tema para os trabalhos concorrentes nesta edição é: “Os afetos e seus destinos na clínica atual”. Convidamos e incentivamos a todos a consultar o site do Congresso, no qual se encontram divulgadas as normas para participação.
Como sempre, não deixem de ler nossas resenhas e consultar os lançamentos.

A todos, uma boa leitura.

Bernardo Tanis
Editor

Referências
Chauí, M. (1985). Sobre o medo. In A. Novaes (org.), Os sentidos da paixão. São Paulo: Schwartz.
Freud, S. (1996). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas. (Vol. 13). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912-13).

Diálogo

Artigos temáticos: Medo

Este artigo propõe que o amor constitui o afeto primordial do ser humano, o qual já nasce com uma preconcepção logenética de acolhimento por parte de sua espécie, a humanidade. As falhas de acolhimento provocam o medo da perda do amor, e o medo conduz ao ódio e à violência.

Palavras-chave: amor; medo; ódio; violência; inconsciente; lógica emocional contraditória.

O artigo coloca a possibilidade de o medo ocorrer na transferência. As questões que surgem, então, são: o que dizem os pensadores da psicanálise a respeito de transferência e contratransferência’ E o que faz o psicanalista na sessão de análise segundo sua compreensão destes conceitos’

Palavras-chave: medo; transferência; contratransferência; estranheza; desmedida.

A autora examina os afetos de pânico, terror, fobia e medo valendo-se de referências teóricas e ilustrações clínicas de análise de crianças. Estabelece correlações entre psiquiatria, neurociência e psicanálise. Sugere a possibilidade de representação como ponte transformadora do terror primário em medo protetor. Utiliza o conto Chapeuzinho Amarelo como o condutor.

Palavras-chave: terror; pânico; fobia; medo; representação;

Este artigo investiga, por meio da psicanálise, como um conto de fadas (“Branca de Neve”)possibilita, à maneira de um sonho, evocar fantasias inconscientes geradoras de angústias próprias ao complexo de Édipo, permitindo, assim, sua elaboração psíquica. Parte-se das seguintes perguntas: por que as crianças se interessam pelo conto’ E por que os adultos se emocionam frente a ele’ Valendo-se da simbologia que permeia o conto, além de sua forma e conteúdo específicos, evidencia-se o combate de vida e morte presente naquele que se vê sujeito de seus próprios desejos e de suas respectivas realizações alucinatórias, particularmente quando dirigidos à imagem materna, como no caso de Branca de Neve.

Palavras-chave: conto de fadas; elaboração psíquica; função narrativa; símbolos; conflito das pulsões de vida e morte; complexo de Édipo

Interface

Este artigo se propõe a examinar o encontro, na escrita teórica, das lógicas do conhecimento e do desejo. Se a psicanálise pretende revelar o substrato pulsional de qualquer conhecimento e as implicações metafísicas, inclusive patológicas, de qualquer teorização, como isentaria desta crítica a sua própria construção teórica’ Trata-se de considerar a postura discursiva na teoria analítica, abordando a sua crítica do conhecimento e inscrevendo a sua especificidade na enunciação. O pleno valor da enunciação surgirá através da metáfora. Numa isotopia entre cura e escrita analítica, a metáfora permitirá vincular a teorização, a ficção e a prática analítica.

Palavras-chave: teorização; afetividade; loucura; método; discurso psicanalítico; metáfora.

Artigos

A partir da ideia de que, durante a experiência emocional, há um trânsito constante entre os sensos de existência, potência e inexistência, a autora desenvolve elaborações sobre o senso de inexistência. Assinala que, se a observação da experiência emocional leva em conta os referenciais desses sensos, isso propicia a colheita de e o trabalho com elementos provindos da sensorialidade, uma vez que a teoria organizada e denida a partir de relações de objeto que privilegiam emoções e suas significações não permite tais desenvolvimentos. Recorre à ideia de Reserve, um conceito retirado das artes visuais, para aproximar-se de áreas que não foram tocadas pela emoção, mas que se constituem como interface com diferentes dimensões mentais que são acessíveis na experiência clínica. Essas elaborações provêm da conjetura de que as áreas inacessíveis e sem representação no psiquismo se propõem como interface com áreas mais desenvolvidas. Nesse sentido, a autora aponta que o senso de inexistência pode ser apreendido a partir de um fundo de existência, bem como a própria existência humana tem como fonte a inexistência.

Palavras-chave: área em Reserve; senso de inexistência; sensorialidade.

A autora examina a relação entre o referencial de Bion e manifestações da mente primordial, dedicando especial atenção para as manifestações de estados de não integração. Utiliza esse conceito segundo as ideias de Winnicott, Bick, Tustin, Meltzer. Dene os estados de não integração como manifestações de terror ocasionadas pela ameaça de queda num espaço sem m, num buraco negro, de ameaça de diluição − em última análise: ameaça de perda da própria existência. Discrimina os fenômenos não integrados dos fenômenos autísticos, já estudados por ela. Enfoca a relação desses fenômenos com as manifestações da mente primordial, descritas por Bion em seus últimos escritos (Bion os denominou de “estados inacessíveis da mente”), e menciona, em particular, as manifestações de terror subtalâmico. Utiliza a teoria de Transformações (Bion, 1965/1983) como uma teoria de observação dos fenômenos mentais na sessão analítica, com o intuito de obter instrumentos para situar os fenômenos não integrados numa teoria consagrada sobre o funcionamento da mente. Indaga quanto à possibilidade de os fenômenos não integrados fazerem parte dessa teoria e sugere, como hipótese, que além das transformações propostas por Bion e das transformações autísticas, os fenômenos não integrados venham a constituir outro grupo de transformações: transformações não integradas. Apresenta material clínico com o intuito de ilustrar as ideias expostas. Discute as implicações e paradoxos que a proposta acarreta.

Palavras-chave: desmentalização; desmantelamento; desamparo; terror; terror sem nome.

Na tentativa de investigar as possíveis relações entre psicanálise e tragédia grega, o presente estudo visa buscar aproximações entre as perspectivas estéticas que permeiam estes dois campos, baseando-se para tal na particular estética que compõe a arte trágica e no texto freudiano “Das Unheimliche”. O percurso investigativo traçado demonstra que tragédia e psicanálise, ao se assentarem no ambíguo, delatam as faces nada harmônicas do homem, apontando, assim, para uma estética que dá lugar não apenas à harmonia bela, mas também ao horror que a ela se amálgama. Logo, os caminhos que cruzam estes dois discursos indicam a riqueza proporcionada pela interlocução entre si, renovando, desse modo, o seu interesse e sinalizando possíveis desdobramentos teórico-práticos.

Palavras-chave: psicanálise; tragédia grega; estética.

Este trabalho ilustra, por meio de um caso apresentado em seminário clínico, como o analista disponibiliza sua matéria psíquica viva para dar forma e vida ao objeto primário que um paciente melancólico convocou na/pela transferência. Dessa perspectiva, contratransferência não é apenas a reação emocional do analista, mas principalmente a posição identificatória a partir da qual “alguém” nele se dirige a um aspecto da criança-no-paciente. Sendo inconsciente, esta posição será captada pela escuta analítica nas brechas do relato do caso. Uma exclamação espontânea da analista, altamente carregada do ponto-de-vista emocional, foi o ponto de partida para entrarmos em contato com seu sofrimento narcísico e ambivalência com relação ao paciente. Com a ajuda de uma articulação teórico- -clínica em torno da noção da “mãe morta”, pudemos reconstruir as vicissitudes não simbolizadas da relação da criança-no-paciente com seu objeto primário. Esse percurso nos levou, por m, a propor um caminho possível para esta análise.

Palavras-chave: transferência e contratransferência; seminário clínico; articulação teórico-clínica; melancolia; mãe morta.

O artigo tece aproximações entre o trabalho de Mira Schendel e a psicanálise lacaniana, principalmente em torno da noção de vazio. Esta se desdobra tanto nas obras de Schendel como na clínica psicanalítica lacaniana, e seus contornos ganham diferentes formas e corpos. Tal preocupação os conduz ao zen-budismo, interesse pouco explorado, mas presente em passagens da obra de Jacques Lacan. Um recorte de um caso clínico e a análise de algumas monotipias de Mira Schendel mostram os encontros entre clínica psicanalítica e artes visuais.

Palavras-chave: Mira Schendel; Lacan; psicanálise; vazio.

Intercâmbio

As transferências e contratransferências narcisista, edípica, fraterna e a amizade de transferência- contratransferência não são opostas nem excludentes. Possuem diferentes lógicas e, esclarecidas suas respectivas fronteiras e detectadas suas articulações, permitem obter um entendimento mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais aguçado da multifacetária situação analítica com crianças e adolescentes.

Palavras-chave: narcisismo; complexo de Édipo; complexo fraterno; amizade; transferência.

Resenhas