Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)
Em 1920, Freud traz a público o livro Além do princípio do prazer, com novidades que, embora prenunciadas em textos anteriores, produzem mudanças em sua metapsicologia e também em sua clínica. O princípio do prazer, ponto central do funcionamento mental, cede espaço a outro princípio, a compulsão à repetição.
Se por meio do princípio do prazer Freud armou o arcabouço teórico capaz de explicar a formação dos sonhos, dos chistes, da organização dos sintomas e do estabelecimento da transferência, a descoberta ou a proposta de outro princípio desarranja, até certo ponto, essa estrutura, trazendo para a cena psicanalítica o traumático, a compulsão à repetição, a pulsão de morte como pulsão silenciosa a influenciar a teoria e a clínica.
Essas mudanças tiveram efeito nas propostas teóricas de seus discípulos, bem como no desenvolvimento da psicanálise ao longo do tempo, apesar das hesitações do texto freudiano.
Contribuições como as de Ferenczi – que tratou de forma expressiva do traumático e de mudanças na técnica psicanalítica – podem ser lidas a partir dessas considerações. Melanie Klein e seus seguidores tomaram a pulsão de morte como eixo fundamental para a teorização e a clínica.
Como pensar esse texto vigoroso de Freud, em nossos dias, após 100 anos de sua publicação? Qual é a sua importância? Como considerar a clínica do traumático, a transferência, os acontecimentos da realidade social após os 100 anos de Além do princípio do prazer? O que ele pode nos oferecer de subsídio para pensar a metapsicologia e a clínica diante dos desafios da atualidade? Como abordar os traumas de nossos dias?
Este número da RBP é dedicado à reflexão sobre esses temas. Os artigos aqui presentes contemplam da teoria à clínica.
Neste editorial, escolhemos por registrar a importância do texto freudiano na compreensão do que estamos vivendo, como brasileiros e psicanalistas, e enquanto uma revista científica comprometida com valores éticos e humanistas.
Cabe lembrar que a ideia de rever esse texto surgiu em nossas discussões editoriais antes mesmo da inusitada situação de uma pandemia se impor – portanto, antes do descaso ou da banalização do fato assumida pelo dirigente de nosso país, que insiste em negar ou diminuir o efeito dessa situação em nossa vida.
Exatamente a esse respeito nos parece muito oportuno pensar os desdobramentos do conceito de compulsão à repetição, tema central do texto freudiano, para lançar algumas considerações ao observado em nossos dias. Ali, Freud lembra que a compulsão à repetição tem um aspecto mortífero, além de servir a uma possível simbolização do trauma.
Diante do trauma experimentado por todos nós pela pandemia de covid-19 – que já provocou a morte de mais de 44 mil brasileiros até o momento da escrita deste editorial – e do absoluto descaso ou recusa do atual governo em propor à população brasileira uma condução responsável do problema, com perplexidade e profunda tristeza somos levados a nos indagar o motivo de tal violência. Que força é essa que repetidamente cega e desmente um acontecimento de tais proporções? O texto Além do princípio do prazer nos possibilita pensar no trauma psíquico, mas dá abertura para a concepção de trauma social.
Acreditamos que tamanha atrocidade, em vez de ser considerada um ato isolado, deveria ser analisada num contexto mais amplo, nas fronteiras do pensamento psicanalítico com outros saberes.
A análise feita por Fernando de Barros e Silva na revista Piauí nos parece um bom ponto de apoio para refletir sobre esse fenômeno. Segundo o autor, o país que lida com seus traumas por meio de negações e acomodações, sem nunca enfrentá-los de maneira direta, está fadado a conviver indefinidamente com seus sintomas. Aponta como trauma fundador do Brasil a escravidão, que, embora abolida em 1888, ainda não foi reparada, como podemos constatar nos “sintomas dessa omissão crônica, dessa nossa maneira de driblar as exigências da civilização e perpetuar no presente a herança colonial, [que] estão aí, à vista de todos, nos morros, nas periferias, nas prisões, dentro de nossas casas” (2020, p. 29).
Nesse contexto, o autor também lembra a forma como tratamos os abusos da ditadura militar implantada em nosso país em 1964. Os crimes de morte e tortura perpetrados pelos algozes não foram devidamente reconhecidos e muito menos punidos. O autor segue esse raciocínio para explicar a ascensão do atual presidente. Para ele, Bolsonaro não chegou onde chegou apesar de seu discurso e de seus atos truculentos, mas exatamente por causa deles. De alguma forma, ele repete e perpetua o traumático de nosso passado não elaborado.
Dessa maneira, Bolsonaro faz uma conexão histórica entre os dois traumas vividos por nós, o militar de 1964 e o jurídico-parlamentar de 2016, quando homenageia Brilhante Ustra – conhecido torturador durante o regime militar – no voto a favor do impeachment da presidente Dilma, proferindo a nefasta frase: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff ”. Nessa declaração, perversamente, ele nega a evidência da tortura, ao mesmo tempo que reafirma a violência.
Para finalizar, gostaríamos de lembrar que o projeto editorial desta gestão está em seu último ano. Contudo, já podemos observar que a revista tem contemplado temas de suma importância dentro da psicanálise e para nós, psicanalistas. Em 2019, abordamos os temas Ódio, Feminino, outras reflexões, Palavra e verdade, e Suicídio. Iniciamos 2020 com atraso, devido à pandemia, e será sobre esse tema que a RBP irá se debruçar no próximo número.
Desejamos que os leitores possam interagir com este número e desenvolver sua reflexão pessoal com base no estímulo que estamos lançando.
Boa leitura a todos!
Referências
Silva, F. B. (2020). Dentro do pesadelo: o governo Bolsonaro entra em sua fase mais calamitosa. Piauí, 164, 26-31.
Marina Massi
Editora
Leda Maria Codeço Barone
Editora Associada
O autor discute as diferenças entre o que chama de psicanálise epistemológica – relacionada ao conhecimento e à compreensão, tendo como principais autores Freud e Klein – e o que chama de psicanálise ontológica – relacionada ao ser e ao tornar-se, tomando nesse caso como principais referências Winnicott e Bion. Argumenta que, com Winnicott, a psicanálise deixa de estar centrada no sentido simbólico do brincar, que passa a ser visto como experiência. Já com Bion a psicanálise deixa de estar centrada no sentido simbólico dos sonhos, e a experiência de sonhar passa a ser considerada em todas as suas formas. A ideia é que a psicanálise epistemológica envolve sobretudo a busca por compreender sentidos inconscientes. Por sua vez, o objetivo da psicanálise ontológica é permitir que o paciente descubra sentidos de maneira criativa e que, nesse processo, se torne mais plenamente vivo.
Palavras-chave: ontológico, epistemológico, compreensão, experiência, ser, devir
O autor sustenta que o princípio do prazer não existe desde o início, mas é consequência do trabalho do objeto, cuja finalidade consiste em deslocar o sujeito do estado do desamparo para o da configuração da ausência do objeto. Ademais, o autor atribui a destrutividade ou a construção na vida psíquica e na cultura não a algo imanente às pulsões, mas ao trabalho sobre e junto a elas, do qual o objeto e a cultura são os administradores e guardiões.
Palavras-chave: pulsão de morte, trabalho do objeto, princípio do prazer, notícias de si
Até 1919, Freud dizia que o princípio do prazer guiava o funcionamento do ser humano. Com o texto “O estranho”, essa verdade começa a mudar, e é completamente reinventada em 1920, com o texto Além do princípio do prazer. É bem certo que ele sempre disse que sua teoria pulsional não estava completa, mas o que fez Freud mudar radicalmente? O que era tão forte que iria além do princípio do prazer? Essas foram as perguntas que nortearam a escrita deste texto, que representa apenas uma tentativa de apreender alguns conceitos freudianos.
Palavras-chave: compulsão à repetição, pulsão de morte, princípio do prazer, pulsão de vida
O fenômeno da explosão brutal da violência escancara a profundidade da crise dos pressupostos éticos em nossa cultura. Este é o tema do presente artigo e que move o pêndulo entre as reflexões acerca da pulsão de morte e o traumatismo na vida cotidiana (movido pelo estupor constante frente à indiferença e ao sadismo presente nas relações perversas que convertem o outro em objeto de uso, submissão e humilhação/vergonha). A fim de acompanharmos os processos de erosão que corroem a subjetividade nos dias atuais, é preciso seguir as trilhas teóricas entrelaçadas nos textos Além do princípio do prazer e O mal-estar na civilização, em que a pulsão de morte se apresenta como pura potência de destruição. O convite é para que os psicanalistas, enquanto agentes de cuidado e possuidores de um instrumental teórico/técnico possante, encontrem uma resposta coletiva diante das condições de produção do traumático em nossa época.
Palavras-chave: pulsão de morte, traumatismo, traumatogênese, violência cotidiana, perversão
Discute-se o conceito de pulsão de morte e seu emprego no caso clínico de um usuário de drogas. Faz-se um apanhado da sua anunciação e das dificuldades em aceitá-lo e utilizá-lo, indicando seu papel central nas patologias não neuróticas. Conjectura-se sobre a elaboração da constituição do aparelho psíquico, e especula-se sobre a mudança de paradigma na psicanálise a partir da introdução da nova dualidade pulsional.
Palavras-chave: pulsão de morte, drogadição, não neurose, constituição psíquica, uso clínico
O artigo resgata as perspectivas do brincar na teoria freudiana identificando dois modelos principais. O primeiro em que o brincar é compreendido a partir da teoria dos sonhos como realização de desejo, e o segundo, que surge em 1920, com o ensaio Além do princípio do prazer, quando ele é reposicionado ao lado dos sonhos traumáticos, das neuroses de guerra e da compulsão à repetição, às voltas com as questões do limite da representatividade e do colapso da temporalização da experiência. O fort-da inaugura, nesse contexto, uma perspectiva do brincar onde ele passa a ter uma função em si mesmo, quando apoia o sentido da experiência na materialidade, como ação disparadora do processo de simbolização.
Palavras-chave: brincar, simbolização, temporalização, materialidade
Este trabalho propõe que a denúncia midiática construída em rede por coletivos de mulheres vítimas de violência sexual contribui para a integração e a elaboração psíquica de traumas relativos a crimes de violência sexual. Apresenta a hipótese de que a denúncia no espaço público, através de redes de apoio virtuais, autoriza o diálogo entre a teoria psicanalítica e os estudos feministas. Esse diálogo será aqui realizado por meio de categorias analíticas relativas à transição entre o pai assassinado e o pai morto: os silêncios consentido e da fantasia, o testemunho, e a denúncia enquanto lugar de fala.
Palavras-chave: pai assassinado, pai morto, estudos feministas, violência sexual, testemunho
Neste artigo, parte-se da coleção da revista Die Antike encontrada na biblioteca de Freud em Londres. Examinando-se o teor de alguns artigos de Werner Jaeger, o famoso classicista autor da obra Paideia, e ao mesmo tempo contrastando-se suas ideias com aquelas do Moisés de Freud, é possível perceber a posição que os dois autores tomaram durante os rebuliços políticos na República de Weimar e na ascensão nazista. São abordadas questões sobre construção histórica, temporalidade, linguagem e ideologias políticas. Com isso, Moisés e o monoteísmo emerge como um texto profundamente político, ligado a uma estrutura social psicanalítica diferente daquela proposta em Totem e tabu.
Palavras-chave: Freud, Moisés, Werner Jaeger, classicismo
A partir da correspondência entre Einstein e Freud, publicada com o título “Por que a guerra?”, e em especial da leitura de textos que estão na gênese da carta-resposta freudiana, neste trabalho sugerimos a hipótese de que o primeiro desafio de nosso psiquismo seja o de ir além de um princípio no ódio, que seria fundado na experiência de desamparo trazida pelo nascimento, e reproduzido em experiências futuras de castração. A capacidade de lidar com a falta, com a insatisfação dos próprios impulsos, será determinante na estruturação do psiquismo, na elaboração da castração e inscrição da interdição edípica, assim como no reconhecimento da alteridade e da lei. A recusa da realidade da castração poderá levar ao cenário de atuação do ódio, da intolerância às diferenças, do predomínio da pulsão de morte, tão presente nos dias atuais. Sob o eco da angústia de Freud, concluímos com o convite de ouvir o adoecimento de nossa sociedade e, quem sabe, através do fortalecimento da pulsão de vida e de seu potencial integrador, criar alternativas ao labirinto de ódio e morte a que nossa destrutividade nos levou.
Palavras-chave: pulsão, castração, impulsos destrutivos, triangulação edípica, perversidade
A leitura do recente livro de Decio Gurfinkel Relações de objeto é a ocasião para uma nova apreciação das obras de Melanie Klein e, principalmente, de Wilfred R. Bion no que diz respeito às figuras da intersubjetividade na psicanálise contemporânea. Assim, a questão que se descortina com a apreciação dessa obra é muito mais ampla e profunda do que apenas um diálogo crítico com o autor. Aspectos relevantes e atuais do pensamento psicanalítico estarão no centro do nosso interesse. Nesse contexto histórico e teórico assinala-se uma forte presença desses dois autores – em especial de Bion –, estranhamente ausentes no livro de Gurfinkel.
Palavras-chave: relações de objeto, intersubjetividade, Melanie Klein, Bion
Este trabalho objetiva apresentar a figurabilidade como recurso à técnica psicanalítica. A análise da construção imagética do conto “A quinta história”, de Clarice Lispector, possibilita uma analogia às imagens e sinestesias que ocorrem no consultório de psicanálise com uma paciente de quase 100 anos, aqui chamada de Dona Menina. Os recortes das sessões de análise, permeadas de figurabilidade, mostram como a analisanda diz de seu de-dentro, numa luta para vivificar-se, mesmo em idade avançada. Neste artigo, literatura e psicanálise se encontram na tentativa de palavrear sobre o inominável das angústias e das gentes. O escopo teórico utilizado foi Grotstein, Ogden e Gutfreind, entre outros autores.
Palavras-chave: figurabilidade, clínica, literatura
A partir da possibilidade de o psicanalista se deixar implicar por diferentes estímulos e em diferentes territórios (psicanálise a céu aberto), o autor se propõe a descrever as impressões e reflexões produzidas pela visita a algumas instalações de Cildo Meireles localizadas no Instituto Inhotim.
Palavras-chave: inquietante, estranho, arte, repetição, museu, Inhotim, não integração
Tentamos aqui situar o conceito de pulsão de morte. Entre as várias fontes existentes, dispomos das cartas de Freud e de atas esparsas das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, anotadas por jovens psicanalistas que participavam dessas primeiras reuniões. Uma entre elas é preciosa, na medida em que transcreve falas de Freud sobre a pulsão de morte quando a Sociedade discute O mal-estar na cultura. Nessa ocasião, Freud introduz um paradoxo facilmente compreensível a partir de suas referências à literatura de língua alemã.
Palavras-chave: pulsão de morte, brincar, conto fantástico, Freud, Lou Andreas-Salomé
Este artigo discute um texto de Ferenczi sobre a função dos sonhos e sua relação com o trauma. Ferenczi pretendia apresentar o material como uma fala no xii Congresso Internacional de Psicanálise, que aconteceria em Interlaken, na Suíça, em 1931. O congresso, porém, foi adiado, e partes do conteúdo da fala apareceram em outros textos, nos quais o autor repensa o conceito de trauma e sua importância clínica. Neste artigo, faço uso da correspondência entre Freud e Ferenczi para contextualizar a originalidade da teorização de Ferenczi sobre diferentes aspectos da função dos sonhos. Na fala de 1931, assim como neste artigo, usa-se o trabalho onírico de uma paciente como exemplo do processo por meio do qual experiências traumáticas e impressões sensórias não ligadas podem se repetir na direção de uma maior elaboração por parte do sonhador. O processo descrito por Ferenczi, aqui explorado, assemelha-se a um esforço de autotratamento, de auto-Kur.
Palavras-chave: sonhos, trauma, Ferenczi, história da psicanálise, repetição
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