Volumes

Volume 51 nº 4 - 2017 | Criança

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Finalizamos o ano de 2017 com o tema Criança. Temos a expectativa de colaborar para que os colegas compreendam este número como um conjunto de artigos que vão além da psicanálise infantil; o que almejamos é a criança da psicanálise.

O último número temático sobre criança na RBP foi Psicanálise de crianças e adolescentes, em 1996 (vol. 30, n. 1). Vale a pena uma leitura comparada 21 anos depois.

É sempre interessante retomar e contextualizar brevemente a noção de criança na história da humanidade. Na Idade Média a criança não existia enquanto individualidade. A ideia e o sentimento de infância que temos hoje não existiam em tal período, como nos mostram os clássicos estudos de Ariès (1981).

A criança individualizada surge entre o final do século xvi e o início do XVII, quando alcança um lugar diferenciado na sociedade, que passa a vê-la como uma força de trabalho, e portanto uma categoria geradora de riqueza, para a família, o Estado e a sociedade.

A qual criança estamos, especificamente, nos referindo neste número? À criança da psicanálise, aquela que está sempre presente no anacronismo temporal proposto por Freud, seja na análise de crianças propriamente dita, seja no trabalho com adultos. Freud transformou o entendimento da noção de criança ao reconhecer a sexualidade infantil.

A concepção de criança (mesmo que atemporal, sempre é uma construção/criação) e o sentimento de infância (temporal/cronológico) são da ordem da cultura, são instituídos ao mesmo tempo que transitórios, porque podem mudar conforme as transformações da humanidade.

Em resposta a nosso convite, a RBP recebeu vários artigos centrados na análise de crianças e em suas vicissitudes.

Na parte temática procuramos contemplar alguns aspectos da clínica atual. A contribuição da psicanalista francesa Anne Brun, ainda não tão conhecida no Brasil e que trabalha com o dispositivo de atendimento das mediações terapêuticas, merece atenção.

Já os artigos de colegas brasileiros sobre semiótica, metapsicologia, teoria da técnica, lugar do analista de criança, psicose infantil e autismo nos trazem o vigor da nossa produção.

Na seção “Interfaces”, a presença esperançosa do pediatra Leonardo Posternak, por meio de uma série de experiências, um vasto conhecimento científico e humanista, novas ideias e questionamentos, nos convoca a um encontro verdadeiro, não preconceituoso, entre psicanálise e medicina (no caso, pediatria), indagando-nos:

como pode a psicanálise auxiliar a pediatria para esta ter uma visão do universo da criança menos inocente e mais global e integradora? De quais ferramentas da  psicanálise a pediatria deveria apoderar-se para que sua tarefa não seja estereotipada e incompleta? Como podem se enriquecer mutuamente as práticas da pediatria e da psicanálise infantil? (p. 134)

Um desafio e tanto para nós, psicanalistas do novo milênio.

Na seção “Diálogo”, temos uma entrevista com o psicanalista sueco Björn Salomonsson, que no último Congresso Internacional da IPA, em Buenos Aires, em julho de 2017, teve um trabalho apresentado como keynote paper do evento. Sua entrevista conversa com a seção “Projetos e pesquisas”, pois ele nos conta sobre o seu método de pesquisa, de estudo controlado, com resultados clínicos obtidos em escala grupal e avaliações feitas por examinadores independentes com instrumentos padronizados. Outro ponto importante é sua preocupação com a participação da psicanálise no âmbito das políticas públicas para a primeira infância.

Em “Outras palavras”, temos artigos que consideram a criança a partir de outros ângulos, mas que visam a enriquecer a seção temática. Há um entrelaçamento entre as seções.

“História da psicanálise” abre seu espaço para apresentar um trabalho sobre a história da psicanálise em Minas Gerais, respeitando a nossa linha editorial de sair do eixo SP-RJ-RS e contemplar outros recôncavos da psicanálise em nosso país. Cabe lembrar que o próximo Congresso Brasileiro, daqui a dois anos, acontecerá em Belo Horizonte, Minas Gerais. O trabalho de Rodrigo Afonso Nogueira Santos nos mostra as particularidades da implantação da psicanálise em Minas Gerais, o que nos ajuda a compreender o caldo de cultura que influencia a psicanálise local.

A seção “Projetos e pesquisas” apresenta o think tank sobre o futuro da psicanálise e da Associação Psicanalítica Internacional, uma ideia de Leopold Nosek apoiada pela nova diretoria da ipa, em Buenos Aires, em julho de 2017. O artigo de Nosek pode ser lido como um texto fundante desse projeto, cuja ideia central é que a geração atualmente no poder deve se permitir ser fertilizada pelos mais novos e possibilitar a abertura dentro da ipa para o novo. Vale conferir.

Na mesma seção, temos a investigação “Sinais de mudança em autismo: Prisma, um instrumento de pesquisa”, organizada por colegas e subsidiada pela IPA, a fim de demostrar a efetividade do tratamento psicanalítico de crianças com transtornos autísticos.

Na seção “Resenhas”, fizemos um esforço para publicar o máximo possível de textos sobre livros de colegas da Febrapsi e entrar em 2018 sem atrasos. Acredito que conseguimos limpar nossos arquivos.

Para concluir, destaco o fato de que a chamada para este número trazia uma indagação atual: “O que nos diz a criança em nossos consultórios?”. Certamente vocês não encontrarão uma resposta. Podemos dizer que arriscamos uma aproximação. Entretanto, caberá aos leitores, no espectro dos trabalhos publicados, captar de onde vem a melodia.

 

Boa leitura a todos! Até 2018.

Referências

Ariès, P. (1981). Historia social da crianca e da familia (D. Flaksman, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.

 

Marina Massi

Editora

marinamassieditora@rbp.org.br

Criança

O sofrimento das crianças psicóticas e autistas não se exprime apenas por palavras, mas também por manifestações físicas, que devem ser decifradas pelos terapeutas. Este artigo questiona as diferentes formas e funções de seus ataques físicos, tanto contra o próprio corpo quanto contra o corpo do outro. Com base na clínica das mediações terapêuticas, que parece especialmente eficaz para atenuar ou acabar com os ataques físicos das crianças, a ideia principal desenvolvida neste artigo é que os ataques físicos correspondem a  tentativas de contato das crianças violentas, e que o comportamento violento pode se atenuar graças a certos jogos propostos pelos terapeutas. Portanto, os ataques físicos remeteriam a um jogo ou a jogos que não puderam ser praticados na primeira infância, e cuja natureza a clínica permitirá compreender.
Palavras-chave: arcaico, jogo, mediações terapêuticas, violência

Inicialmente, refere-se a como relações entre a filosofia de Peirce e a psicanálise têm sido estudadas por filósofos e psicanalistas. As concepções de Donald Winnicott a respeito dos objetos transicionais, dos fenômenos transicionais e do brincar são destacadas como de interesse particular para o estudo dessas relações, devido a sua ligação com a filosofia de Peirce. Em razão disso, examina-se como a semiótica de Peirce tem elementos que auxiliam no entendimento de questões levantadas por Winnicott acerca do que ele chama de simbolização, principalmente através da discriminação de aspectos semióticos presentes nos objetos transicionais, nos fenômenos transicionais e no brincar, ampliando desse modo algumas dimensões do significado dessas concepções winnicottianas. Essas questões são examinadas nos casos clínicos de Edmund e Diana, de Winnicott, e também em
duas outras situações clínicas.

Palavras-chave: Peirce, semiótica, Winnicott, objetos transicionais, fenômenos transicionais, brincar, simbolização

Delineado dentro de uma perspectiva histórica que ressalta como a criança foi ganhando centralidade na cena social e, consequentemente, no cenário psicanalítico, o artigo discute os desafios do analista de crianças na contemporaneidade. O analista é convocado a manter seu lugar na relação privada com a criança e também a responder às demandas do público, que representa o entorno do pequeno analisando: pais, familiares, escola, especialistas etc. Como instrumento para compreender e enfrentar tais desafios, analisa-se a possibilidade de trânsito entre o privado e o público abordando os fenômenos paratransferenciais e paracontratransferenciais nas intervenções com o entorno, tendo como invariante a função analítica.
Palavras-chave: psicanálise, crianças, função analítica, paratransferências, paracontratransferências, intervenções

Neste trabalho, a autora faz algumas reflexões sobre a teoria da técnica psicanalítica, a partir de ideias de autores contemporâneos e de sua experiência em psicanálise com crianças, especialmente na clínica com pacientes vítimas de traumas precoces, fronteiriços, psicóticos, com autismo ou núcleos autísticos. Apresenta mudanças técnicas como uma contribuição para a clínica atual e para o desenvolvimento emocional.
Palavras-chave: psicanálise com crianças, técnica, autismo, interpretação, função narrativa

Na história da psiquiatria e da psicanálise, o autismo foi incluído nas psicoses da infância. Os avanços na clínica psicanalítica e as consequências teóricas permitiram uma diferenciação progressiva entre as duas patologias. A autora as discrimina metapsicológica e epistemologicamente a partir destes conceitos: a etiologia, a constituição da vida mental, a qualidade dos objetos, as angústias, as defesas, a dimensionalidade psíquica e as transformações, no referencial de Bion. O objeto psicanalítico é inefável na sua essência. Mas essa qualidade não nos exime de uma precisão conceitual para elaborar hipóteses diagnósticas e construir conjecturas intuitivas, imaginativas e racionais sobre o prognóstico do paciente, sempre incerto e misterioso. A confusão e a imprecisão conceitual, assim como os percalços na observação psicanalítica, podem dificultar alcançar o paciente no
nível em que ele se encontra.
Palavras-chave: autismo, psicose, avaliação psicanalítica, transtornos, sintomas

Diálogo

Interfaces

O olhar pediátrico dirigido à criança contemporânea precisa ser menos incompleto e inocente. Nossa formação nos leva a ter um excesso de objetividade, situação paradoxal e perigosa, porque nossa tarefa se funda nas relações intersubjetivas. A criança tem que deixar o status de objeto de tutela para se constituir como um sujeito de desejo, de direito e de linguagem. Uma atenta escuta clínica torna-se uma ferramenta imprescindível na nossa clínica, acrescentada de um olhar atento e qualificado. A colaboração entre a pediatria e a psicanálise infantil é uma ponte a ser construída. A criança ganharia muito com isso porque acabariam as divergências promovidas pelos olhares diferentes dos observadores, apoiados por suas disciplinas específicas. Ela pode ser mais legível pelo que nos induz, exige e ensina.
Palavras-chave: anacronismo, atemporalidade, ética, liberdade, subjetivação, brincar, educação, patologização, medicalização

Outras palavras

Os autores fazem uma revisão sobre o lugar do pai na constituição da subjetividade, compreendendo que as contribuições psicanalíticas sobre o tema são marcadas pelo contexto histórico e sociocultural vigente. Após um breve apanhado das ideias de Freud, em que a importância do pai se ancorava no complexo de Édipo, este estudo dedica-se especialmente aos aportes de Winnicott sobre a paternidade, menos conhecidos do que suas concepções acerca da relação mãe-bebê. Para ele, além do pai edípico, com sua função de corte na díade mãe-bebê, ganha relevo a presença do pai pré-edípico, que exerce papel de suporte para a dupla. A função paterna também foi estudada no contexto do conceito winnicottiano de uso do objeto, sendo o tema ilustrado com exemplos de sua clínica psicanalítica. Por fim, discutem-se a validade dessas teses psicanalíticas e a importância de sua renovação, levando em conta as profundas modificações na configuração familiar contemporânea.
Palavras-chave: constituição da subjetividade, função paterna, função terceira, uso do objeto, transicionalidade

Neste artigo, reflete-se sobre a família contemporânea e suas caraterísticas. Os modelos culturais e sociais funcionam como marco para a mudança nos relacionamentos familiares no século xxi – nos vínculos e nas funções familiares. Coloca-se o foco na filiação como um processo de apropriação do lugar filial. Estabelece-se uma diferenciação, em quatro categorias, dentro da função filial, e usa-se o caso Mariana Zaffaroni para ilustrar essas categorias.
Palavras-chave: família contemporânea, funções familiares, filiação

O autor deste artigo atuou por alguns anos como psiquiatra de adolescentes internados em diversas unidades da Fundação Casa. Invadido e pressionado por memórias daquele período, o trabalho da escrita se mostrou útil para elaborar suas experiências. A narrativa acompanha parte de sua rotina, sempre nas quartas-feiras de manhã, e expõe o ambiente físico e transferencial da instituição e do atendimento a um de seus pacientes. O texto que se segue é, ao mesmo tempo, um relato clínico, um tratamento pela escrita e uma confissão.
Palavras-chave: psicanálise, clínica extensa, psiquiatria, Fundação Casa

Este texto visa compreender, a partir da análise literária do livro infantil O pato, a morte e a tulipa, de Wolf Erlbruch, como é possível experimentar a morte, essa que aparece em nossos consultórios, no vívido de nosso dia a dia ou no cotidiano dos pacientes. Após a análise do livro – com base em autores como Antonio Candido e E. M. Forster –, o artigo se volta para o relato clínico de sessões realizadas com uma paciente chamada aqui de Dona Menina. Com quase 100 anos de idade, ela se assemelha, em sua busca por palavrar sobre o inominável da morte, às personagens do livro de Erlbruch. Assim, as reflexões advindas da leitura nos ajudam a compreender a realidade do setting, particularmente os elementos de figurabilidade surgidos nas sessões com Dona Menina. No campo psicanalítico, o artigo se orienta por autores como Freud, Bion e Grotstein, escopo teórico que nos
serve tanto para entender a miríade de sentidos do livro quanto para refletir sobre a clínica.
Palavras-chave: morte, vida, figurabilidade, psicanálise, literatura

História da psicanálise

O objetivo deste artigo é apresentar e discutir uma série de elementos relacionados à história da psicanálise em Minas Gerais. Partimos da primeira publicação sobre psicanálise, em 1925, e findamos nosso percurso em 1963, com a inauguração de uma instituição de formação clínica. Ao longo dessa trajetória, destacamos o momento da chegada da psicanálise a Minas Gerais, quando referências ao campo psicanalítico circularam abertamente entre psiquiatras, artistas, educadores e religiosos. Esse período é situado aqui entre 1925 e 1932, ano em que é inaugurada a Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, marcando uma torção nos modos de conceber a psicanálise, vista a partir de então como um saber especializado. Por fim, discutimos as bases da primeira instituição psicanalítica do estado, inaugurada em 1963, por um padre e psicanalista. Assinalamos a importância de
considerar o catolicismo como a principal fonte de resistência à psicanálise em Minas Gerais, uma das marcas centrais dessa história.
Palavras-chave: história da psicanálise, Minas Gerais, catolicismo, psiquiatria, educação

Projetos e pesquisas

Em julho de 2017, a Associação Psicanalítica Internacional criou um grupo de trabalho para incentivar as novas gerações de psicanalistas a participar da entidade. Como chair desse grupo, o autor expõe suas considerações preliminares sobre o projeto, enfatizando a seguinte ideia: a geração atualmente no poder deve aceitar abrir mão de parte dos hábitos, das tradições, das cristalizações culturais que carrega consigo; deve se permitir ser fertilizada pelos mais novos – pelos nativos dos tempos, como ele os chama. As possibilidades de êxito do encontro de gerações estão necessariamente vinculadas a essa abertura para o novo.
Palavras-chave: ipa, encontro de gerações, abertura para o novo

Neste trabalho, apresentamos o Protocolo de Investigação Psicanalítica de Sinais de Mudança em Autismo, elaborado a partir de um projeto de pesquisa, subsidiado inicialmente pela Associação Psicanalítica Internacional, que busca mapear o desenvolvimento emocional de crianças com transtornos autísticos e sua evolução no tratamento psicanalítico, a fim de demonstrar à comunidade a efetividade do tratamento psicanalítico para promover mudanças psíquicas e favorecer o diálogo com outros profissionais de saúde.
Palavras-chave: autismo, psicanálise de crianças, investigação científica, avaliação, mudança psíquica

Resenhas