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Volume 55 nº 3 - 2021 | Impasses

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Editorial

Foi com satisfação que recebemos uma considerável quantidade de artigos a respeito do tema Impasses. Nem todos puderam ser selecionados por conta do espaço disponível para publicação e, também, por não estarem em conformidade com as normas da rbp. Muitos tinham extensa e minuciosa des­crição de situações clínicas que, a despeito de serem potencialmente interes­santes, entraram em conflito com o imperativo de preservar os pacientes e sua confidencialidade. É importante deixar muito claro para nossos colaboradores esta questão: o material clínico tem de ser suficientemente distorcido para evitar ao máximo qualquer chance de identificação, seja por terceiros, seja pelo próprio paciente. Outras vezes nos vimos em situações difíceis, ao nos depararmos com trabalhos de colegas que certamente têm larga experiência e capacidade clínica, mas cuja expressão escrita não reflete o que gostariam de comunicar, tanto na forma quanto na articulação das ideias. Quando se trata de números temáticos, não há tempo suficiente para que trabalhos que ne­cessitam de extensas modificações retornem aos seus autores, a fim de serem revistos e reencaminhados para nós. Somente o são aqueles que demandam ajustes menores.

Todos os trabalhos submetidos à rbp são avaliados de forma completa­mente anônima, tanto pelos pareceristas quanto pela Comissão de Avaliação, que recebe os diferentes pareceres para a formação de uma decisão final. A única informação disponível ao editor e à editora associada é a origem do artigo, de modo a evitar que ele seja avaliado por colegas de quem o produziu. Portanto, o intuito é sempre achar pareceristas familiarizados com a linha de pensamento do autor, mas fora do território ou da Sociedade a que ele perten­ce. A revelação da autoria só acontece depois do parecer final, para o editor, a editora associada e a coordenadora da Comissão de Avaliação, na hora de serem encaminhadas as cartas de aceitação, aceitação com modificações ou grandes reformas, ou recusa.

Temos ressentido a falta de submissão de artigos que venham de fora do eixo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Curitiba e Porto Alegre, a despei­to das inúmeras vezes que solicitamos maior participação de colaboradores de todo o país. Esperamos que cheguem para os próximos volumes.

Neste número, praticamente constituído apenas por artigos temáticos e por um não temático, já aprovado na gestão anterior, contamos com um pequeno artigo de Durval Marcondes, publicado quando a rbp completava 10 anos de existência oficial, depois de décadas da publicação de sua an­tecessora nos anos 1920. A republicação dessa página está relacionada ao aniversário de 70 anos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, da qual Durval foi fundador. Não poderíamos deixar passar essa efeméride sem uma publicação que a contemplasse, pois a SBPSP é a matriz de toda a psicanálise e as sociedades de psicanálise que se difundiram pelo país. Dessa maneira, convidamos sua atual presidente, a Dra. Carmen C. Mion, para uma entrevista, na qual nos fala de sua trajetória no caminho da psicanálise, sua relação com a SBPSP, e a história dessa instituição desde os primórdios, com o contato de Durval com Freud e sua obra nas primeiras décadas do século XX, seus pioneiros, a chegada da primeira analista didata vinda da Europa (Adelheid Koch), sua filiação oficial à IPA há sete décadas, sua evolu­ção, o momento atual e o porvir.

Logo depois temos um instigante artigo de Giuseppe Civitarese sobre sua proposta de um reverie somático (com base na ideia de reverie de Bion). Na sequência estão os trabalhos temáticos. O primeiro é de autoria de Roosevelt Cassorla, que coincidentemente tem uma proposta muito próxima, mas não idêntica, à de Civitarese. Desses textos podemos extrair várias ideias enrique­cedoras e produtivas.

Os trabalhos seguintes tratam da questão dos impasses de diversos ângulos: na própria escrita ou no que um artigo científico se propõe a trans­mitir, como poderemos ver no desafiador texto de Estanislau A. da Silva Filho; nas inusitadas e desnorteantes situações de setting que surgiram no traba­lho online com adolescentes durante a pandemia, descritas por Alessandra Stocche; no âmbito das características de personalidade e da intensidade das pulsões em um caso clínico abordado por Maria Cristina Possatto; nas áreas de impenetrabilidade mental discutidas por Maria Inês Baccarin; no parado­xo da transferência durante o atendimento feito pela analista grávida, Olívia Lucchini; e, por fim, nas entrevistas iniciais, assunto do trabalho de Clara Kislanov da Costa.

O artigo não temático de Adriana Barbosa Pereira faz uma articulação entre psicanálise, arte e as profundezas das intensidades pulsionais, tendo como base Além do princípio do prazer, de Freud.

Na seção “História da psicanálise” temos um estimulante artigo de Luiz Eduardo Prado, nosso editor internacional em Paris, sobre as controvérsias/impasses entre Anna Freud e Melanie Klein, e sobre algo significativo que elas teriam em comum em meio às turbulências, que não era evidente.

Esperamos que tenham uma leitura tão enriquecedora quanto a que os artigos aqui publicados nos proporcionaram.

Carta-convite

O mais habitual na produção de trabalhos clínicos em psicanálise é que versem sobre os benefícios produzidos durante o atendimento ou processo analítico. Todavia, é mais raro nos depararmos com o relato de situações de impasse ou dificuldades com pouca ou nenhuma perspectiva de serem suplan­tadas na experiência clínica.

É de notar, porém, que boa parte do desenvolvimento da prática clínica e da teoria psicanalítica decorreu de experiências de impasse ou fracassos te­rapêuticos, a começar pelo famoso caso Dora, de Freud, e de outros pacientes dele, como o Homem dos Lobos, e em Mais além do princípio do prazer e “Análise terminável e interminável”, respectivamente, com a postulação do instinto de morte e com a percepção de limites de atuação da psicanálise. Isso tudo evidenciou entraves nas abordagens que Freud fizera até então, cujo reconhecimento, como acontece nas ciências quando operam de forma real­mente científica, revelou questões problemáticas que precisavam ser pensadas, levando-o a grandes mudanças na concepção do aparelho psíquico, da teoria pulsional e da angústia, bem como à mudança de tópica.

Segundo Karl Popper, em Conjecturas e refutações, o real caráter cien­tífico de um pensamento ou trabalho não está na corroboração de teorias consagradas ou do que já é conhecido e estabelecido, mas na busca das falhas e impasses do arcabouço teórico e prático que permitam ampliar o escopo do que percebemos e alcançamos, em um processo na direção do infinito. A concepção de que formulações científicas são sempre tentativas de aproxima­ção provisórias e transitórias – o que também é da essência do pensamento psicanalítico, como foi expressamente indicado por Freud – está ancorada nas conjecturas de Platão, no mito da caverna, e de Kant, nos conceitos de númeno e fenômeno. Como diz Bion ao propor a ideia de transformações, há uma realidade última, O, inalcançável e incognoscível, e o que importa em psicanálise é o desconhecido.

O encontro com impasses pode levar à necessidade de reformular ou mesmo descartar paradigmas estabelecidos, o que sempre gera turbulência e desconforto. O reconhecimento, pelos seres humanos, da impossibilidade de alcançar uma verdade última, certa e segura, quase sempre causa reações individuais e grupais bastante adversas e hostis. Em contrapartida à angústia provocada pela ausência de certezas está o pensamento religioso, que consi­dera possível conhecer a verdade última e estabelecer dogmas que excluem as dúvidas. Nas comunidades religiosas, no entanto, há constantes controvérsias, disputas e até guerras entre grupos da mesma denominação pela posse da “verdadeira” leitura, percebida como a única e real. Vale lembrar ainda os con­flitos entre diferentes religiões. O mesmo pode acontecer na ciência, quando esta é tomada por um “pensamento religioso” que acredita que aquilo que se pensa é igual ao que existe e à verdade. Bachelard afirmou que toda teoria revolucionária, uma vez estabelecida, tende a se tornar um dogma e uma bar­reira para o surgimento de outra. Portanto, retomando a ideia de Popper, toda teoria precisa ser testada para que se verifiquem seus limites.

Partindo dessas ideias, propomos um número temático da rbp que se ocupe dos impasses com os quais os psicanalistas praticantes se deparam em sua atividade – situações-limite que possam resultar em reveses, interrupções, complicações, falta de evolução no trabalho, mesmo que este prossiga.

Não é necessário que soluções sejam apresentadas para essas situações, mas a reflexão sobre encruzilhadas ou eventos que caracterizam um contex­to de beco sem saída pode auxiliar no desenvolvimento de cogitações sobre eles, que eventualmente permitam fazer surgir outros vértices em que possam ser pensados, ou mesmo evidenciar os limites em que uma psicanálise seja viável ou útil. Esses limites também precisam ser considerados e respeitados, evitando-se as atuações heroicas que resultem em desastre para o analista e/ ou para os analisandos.

Convidamos os colegas de todo o Brasil a submeter suas contribuições sobre este tema.

Referências

Bachelard, G. (1999). La formation de l’esprit scientifique. Vrin. (Trabalho original publicado em 1938)

Bion, W. R. (1977). Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. Jason Aronson.

Freud, S. (1955). Beyond the pleasure principle. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. 18, pp. 1-64). Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1920)

Freud, S. (1964). Analysis terminable and interminable. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. 23, pp. 209- 253). Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1937)

Kant, I. (2015). Crítica da razão pura (F. C. Mattos, Trad.). Vozes. (Trabalho original publicado em 1781)

Platão. (2001). A república (M. H. R. Pereira, Trad.). Fundação Calouste Gulbenkian.

Popper, K. R. (1982). Conjecturas e refutações (S. Bath, Trad.). Universidade de Brasília. (Trabalho original publicado em 1963)

 

Claudio Castelo Filho

Editor

 

Com a colaboração de

Elsa Vera Kunze Post Susemihl

Editora associada

Entrevista

Intercâmbio

Em análise, qualquer reverie (potencialmente) abre espaço para entrar em contato com o primeiro estágio do pensamento inconsciente – em que as sequências de elementos alfa são sintetizadas pela função alfa –, de onde então provêm as derivações narrativas do pensamento onírico acordado. Reverie, em outras palavras, é a capacidade de o analista entrar em contato com os pictogramas que adquirem vida durante o trabalho analítico e definem constantemente a posição do paciente e do analista e a qualidade emocional do vínculo entre eles, à maneira de um dispositivo de gps. Reveries não são apenas imagens e ideias, mas também sensações, sentimentos e ações. Neste artigo, o autor concentra-se nesse último tipo de reverie – que pode ser chamado de somático ou, em ressonância com o gestualismo [action painting] na arte, gestual – e apresenta algumas breves ilustrações clínicas. O importante é olhar para tais produções como enraizadas no campo, ou seja, como se estivessem no terceiro inconsciente, que nasce quando dois sujeitos se aproximam o suficiente um do outro. Visto que paciente e analista estão em comunicação constante, não só no nível consciente mas também no inconsciente, não há evento do campo analítico que não possa ser visto como uma cocriação de ambos.
Palavras-chave: sonhos, teoria de campo, Bion, reverie somático/gestual, intercorporalidade

Temáticos

O autor discute fatos clínicos que se manifestam como estranhos “acidentes” no campo analítico. O analista se assusta com o surgimento abrupto de descargas, atos, sintomas, imagens e situações que o deixam perplexo e estranho. Tem a impressão de que está participando de situações que correspondem ao estranho inquietante descrito por Freud. Através de material clínico, o autor propõe que esses acidentes indicam a substituição do conhecido, do familiar, pelo não familiar. Mas o desconhecido não é inteiramente desconhecido, porque se refere a experiências primitivas que não foram suficientemente simbolizadas. Essa ambiguidade se manifesta na desorientação do analista, que não sabe se sua função analítica está intacta ou perturbada. É demonstrado que ambas as situações estão de fato presentes. Aspectos teóricos são discutidos.
Palavras-chave: inquietante, estranho, simbolização, ambiguidade, enactment

Neste trabalho, o autor reflete acerca do estatuto de um caso clínico em psicanálise, seus elementos característicos e sua escrita, em termos de conteúdo e forma, através de uma revisão de literatura majoritariamente francesa, suscitando questões gerais e sensibilizando quanto aos acasos e aberturas porosas tão fundamentais ao tema, por uma postura distinta.
Palavras-chave: caso clínico, escrita, psicanálise

O artigo centra-se no trabalho analítico com adolescentes, em busca da constituição do setting interno da dupla, em dois momentos: no consultório e no encontro online. Diante dos modelos relativos a espaços, a autora insere a questão do público e do privado, avaliados em graus, e dos impasses para criar, simbolicamente, limites nesse contexto. As reflexões abrem caminho para os próximos passos.
Palavras-chave: espaço físico, setting interno, adolescentes, simbolização

A proposta deste trabalho é relatar e comentar uma experiência clínica na qual o estado mental invejoso, como manifestação externa da pulsão de morte, teve lugar de destaque. O fio condutor escolhido pela autora destaca o predomínio dos impulsos destrutivos, os quais, além de causarem muito sofrimento à analisanda, se manifestaram através de ataques ao vínculo psicanalítico. A autora conjectura que o malogro da continuidade da relação terapêutica decorreu da intolerância à dependência receptiva, uma vez que a ligação era experimentada como humilhação. Discorre sobre a implicância e a obscuridade do conceito de pulsão de morte, subjacente aos conceitos utilizados para a compreensão do caso.
Palavras-chave: pulsão de morte, masoquismo moral, inveja, ataques à ligação, dependência receptiva

Este texto é resultado de investigações e reflexões teórico-clínicas, motivadas por vivências, em sala de análise, de situações de impasse e crise na dupla analítica. Nessas situações se evidenciavam questões relativas a perturbações na comunicação na vigência de áreas de impenetrabilidade mental. Na construção de ateliê psicanalítico, a analista, tomando as situações de impenetrabilidade mental como função e focalizando o olhar nos movimentos da dupla analítica, levanta fatores dessa função relativos a estados mentais e mecanismos psíquicos presentes no funcionamento do analisando, da analista e da inter-relação de ambos. A identificação desses fatores favorece o desenvolvimento de recursos em direção ao encontro de códigos de aproximação com as referidas áreas de impenetrabilidade mental. As atividades em construção de ateliê psicanalítico constituem exercícios dinâmicos, que propiciam a afinação da função analítica, com ênfase no desenvolvimento da intuição.
Palavras-chave: comunicações psicanalíticas, estados mentais, impenetrabilidade, relações, ateliê psicanalítico

A partir de duas vinhetas clínicas que remontam a atendimentos feitos quando estava grávida, a autora trata do paradoxo da transferência: a exigência do uso do inconsciente do analista e a necessidade de manutenção de sua posição abstinente. Seria a positivação de seu corpo um entrave ao setting ou, pelo contrário, abriria espaço para pensar a potência desse encontro como um ato vivo e pulsional? A autora trabalha com a hipótese de que essa experiência, a partir da situação de um analista impedido de “tirar o corpo fora”, revela a possibilidade de este funcionar como resto diurno para o sonhar do paciente em sessão.
Palavras-chave: analista grávida, transferência, corpo do analista, abstinência

A autora busca descrever alguns aspectos associados aos impasses presentes nas primeiras entrevistas clínicas realizadas pelo analista com o paciente. A princípio, faz uma breve exposição sobre as entrevistas iniciais. Em seguida, apresenta questões acerca das defesas que os pacientes podem vir a manifestar nesses primeiros contatos. Para pensar sobre tais mecanismos defensivos, explora os conceitos de implicação e reserva do agente cuidador, propostos por Luís Claudio Figueiredo, além de concepções de Thomas Ogden que possibilitam refletir sobre o contato vivo com os pacientes. Na sequência, aborda esses entraves ou dificuldades com que se defrontam os analistas nos primeiros encontros no contexto da pandemia e dos atendimentos online engendrados por essa nova circunstância, imposta a todos.
Palavras-chave: primeiras entrevistas, impasses na análise, defesas, pandemia, atendimento online

Tema livre

Em uma articulação entre psicanálise e arte, este trabalho toma a obra de Pedro Moraleida (1977-1999) como objeto transubjetivo que evoca a contemporaneidade do texto freudiano Além do princípio do prazer. A presença de imagens menos integradoras e de críticas desconstrutivas na obra mostra as forças de Tânatos, ainda que ligadas pela plasticidade. A participação do desligamento pulsional na sublimação é destacada não apenas na obra como também no reconhecimento da desfusão pulsional e de uma toxidez que pode interromper tanto o processo criativo quanto a vida do artista. Está presente a proposição de que a arte vasculha profundezas e convive com fortes intensidades pulsionais, mas ainda assim é capaz de fazer o sujeito sobreviver em objetos transnarcísicos.
Palavras-chave: psicanálise, arte, além do princípio do prazer, sublimação

História da psicanálise

A partir da tradução de The Freud-Klein Controversies: 1941-1945, o autor estuda realidades históricas divididas entre assembleias administrativas e discussões científicas, durante as quais os kleinianos puderam pôr em debate suas principais teses. O autor mostra como as Controvérsias chegaram a ser um impasse, quando Edward Glover pensou que seria possível aliar-se com Anna Freud para expulsar Melanie Klein da Sociedade Britânica de Psicanálise. O que unia as duas vienenses era entretanto mais forte, e demais psicanalistas não estavam de acordo com exclusões. James Strachey e alguns outros lançaram então as bases do que seria o Middle Group.
Palavras-chave: Melanie Klein, Anna Freud, Edward Glover, James Strachey, Middle Group

Resenha