Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)
No início do ano, quando escolhemos a cor preta para a lombada da revista, não imaginávamos que a cor adotada pudesse vir a significar e simbolizar um laço amarrado em nossos braços pelo luto de tantos mortos em nosso país e no mundo. Estamos em luto pelas vítimas e pelo sofrimento de tantas famílias atingidas pelo coronavírus.
No calendário editorial de 2020, o primeiro número homenageou os 100 anos do texto Além do princípio do prazer, no qual Freud formulou o conceito de pulsão de morte, um momento de profunda mudança no arcabouço da teoria psicanalítica. O próximo tema programado era sobre o Édipo. No entanto, decidimos retirá-lo do calendário e abrir espaço para a pandemia do coronavírus. A rápida mudança de tema surgiu do entendimento de que a rbp, como um fórum privilegiado para psicanalistas, deveria ocupar um espaço de “praça pública” científica, a fim de acolher as palavras, os testemunhos, as experiências clínicas e as elaborações teóricas frente à vivência traumática da pandemia que assola o nosso planeta.
O tema escolhido motivou o recebimento de 50 trabalhos, enviados a partir da carta-convite da rbp, o que revelou a sensível demanda de trocarmos ideias e experiências num momento em que a área da saúde mental foi reconhecida por sua importância e chamada a colaborar com seus conhecimentos, como há muito tempo não se via. Num artigo publicado na Folha de S. Paulo, Drauzio Varella reconhece que o “impacto na saúde mental será a sequela mais devastadora da pandemia” (2020). Nós, psicanalistas, integrantes da área da saúde mental, nos sentimos convocados a participar do combate aos sofrimentos causados pela covid-19, utilizando o método psicanalítico do lugar da escuta. Peço ao leitor atenção especial para o relato das Redes de Solidariedade estimuladas pela Febrapsi, criadas e desenvolvidas pelas federadas. Nossas instituições responderam à solicitação e trabalharam ativamente no pico da pandemia.
Em busca de compreender o contexto dos acontecimentos atuais, optamos por abrir este número com o instigante artigo de Michael Rustin, reconhecido sociólogo e psicanalista inglês, que entusiasticamente atendeu ao nosso pedido1 de escrever sobre o tema. O autor examina os significados da pandemia de coronavírus no mundo, numa perspectiva sociopolítica e psicanalítica, descortinando a crise psicossocial deflagrada pelo vírus da covid-19, que numa velocidade extraordinária de transmissão disseminou a doença com a mesma rapidez do fluxo de capitais, de informações e até de imigrações, fluxo observável a partir dos estudos sobre a globalização. Seu texto nos introduz ao âmago dos acontecimentos atuais e, numa perspectiva psicanalítica, enfoca as ansiedades conscientes e inconscientes advindas da situação que vivemos.
Muitos depoimentos, lives e ensaios foram produzidos durante o período da quarentena, quando estávamos montando o projeto, avaliando os artigos e compondo os números Pandemia. Gostaria, porém, de trazer um recorte do interessante e original ensaio “O trauma branco e seus destinos”, de Marion Minerbo, publicado em abril de 2020 no Observatório Psicanalítico.2 Nesse texto, a autora caracteriza a pandemia como
um tipo de violência que não conhecíamos, e por isso mesmo é difícil de reconhecê- -la como tal. Poderíamos denominá-la violência branca, por analogia a angústia branca, termo com que [André] Green descreve o sofrimento psíquico mudo, invisível e silencioso das patologias do vazio. A violência branca – e o correlato trauma branco – é uma violência sem sangue, silenciosa, invisível, mas letal.
Esse ensaio revela uma face intelectualmente sensível e criativa, que transbordou na vivência da pandemia. Ora, por que abordar, no editorial, um ensaio não publicado pela rbp, em vez de comentar os artigos escolhidos para este número? Porque desejo que vocês, leitores, tenham o prazer de identificar nos artigos da rbp o mesmo sentimento que me arrebatou no ensaio publicado pelo op.
Outro ponto a ser ressaltado é que a seção “História da psicanálise” presta homenagem aos 50 anos do início dos trabalhos da pioneira Virgínia Bicudo para a fundação de uma sociedade de psicanálise em Brasília (spbsb). Neste ano, Virgínia Bicudo vem sendo relembrada e homenageada por ter sido a primeira mulher não médica e negra a tornar-se psicanalista no Brasil. O ano de 2020 marca, para além da pandemia, o despertar fundamental da luta contra o racismo, com a presença de movimentos antirracistas como Black Lives Matter e o apoio de milhares de pessoas ao redor do mundo. A rbp, como revista científica da área das ciências humanas, não poderia deixar de se manifestar a favor de movimentos civilizatórios.
Para finalizar, já que a importância dos acontecimentos de 2020 é impossível de ser contemplada num editorial, desejo destacar que os números Pandemia na rbp têm o propósito de registrar na memória de nossas instituições psicanalíticas o impacto violento da pandemia, do traumático coletivo, grupal, familiar e individual, que também atingiu a psicanálise, com uma ingerência radical na dupla analista-analisando – a passagem repentina do atendimento presencial para o atendimento psicanalítico à distância, remoto, virtual ou online.
O próximo número se dedicará a trabalhar mais especificamente uma das principais indagações ao campo psicanalítico: quais as possibilidades e consequências deste novo enquadre?
Aos leitores, peço uma leitura generosa aos artigos dos colegas que se arriscaram a escrever sobre um acontecimento que ainda nos acomete e fragiliza.
Referências
Minerbo, M. (2020, 23 de abril). O trauma branco e seus destinos. Observatório Psicanalítico. https://bit.ly/2V9l4qX
Varella, D. (2020, 12 de setembro). Impacto na saúde mental será sequela mais devastadora da pandemia. Folha de S. Paulo. https://bit.ly/3fJunXR
Marina Massi
(1) Agradeço à colega Elizabeth L. da Rocha Barros pela mediação com o autor em favor da RBP.
(2) O Observatório Psicanalítico, iniciativa da Diretoria de Comunidade e Cultura da Febrapsi, apresenta ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Este artigo examina os significados da pandemia de coronavírus de uma perspectiva sociopolítica e psicanalítica. Ele propõe que o conceito de desenvolvimento combinado e desigual é relevante para a compreensão dos acontecimentos atuais. Isso porque, na gênese de uma nova doença, a pandemia reuniu circunstâncias em que a interface entre a sociedade e o mundo natural está desregulada, e também em que as formas modernas de comunicação permitiram a disseminação da doença em todo o mundo com uma rapidez sem precedentes. Várias linhas de divisão social são expostas pela crise, pois as classes sociais, as populações étnicas, os grupos etários, as mulheres e os homens, as nações e as regiões estão sendo prejudicados de maneiras diferentes. Prioridades contrastantes, de origem ideológica, são reveladas na resposta que os governos estão dando ao vírus, no compromisso que estão tendo com a preservação de vidas em comparação com outros interesses materiais. Na segunda parte do artigo são exploradas as dimensões psicossociais da crise. Uma perspectiva psicanalítica enfoca as ansiedades como geradas pelo transtorno e pelos riscos extremos impostos pela crise. Sugere-se que estas sejam não apenas conscientes, mas também inconscientes, dando origem a tipos destrutivos de clivagem e negação psicológicas e perturbando a tomada de decisão reflexiva. Argumenta-se que a perda de estruturas mentais e sociais continentes está tendo efeitos prejudiciais agora, e que a sua restauração pode ser o pré-requisito de resoluções construtivas para uma crise social generalizada.
Palavras-chave: psicanálise, pandemia, crise psicossocial, clivagem, negação
Os autores discutem o potencial traumático desta pandemia, indicando que nem todos os afetados por ela se traumatizarão. A seguir comentam como a experiência da pandemia poderá assumir várias formas simbólicas de acordo com o nível de ansiedade e medo que provocar em cada indivíduo, que será capaz ou não de mobilizar sua capacidade de representação simbólica para integrar em seu psiquismo a experiência dos diversos medos estimulados. São dados exemplos clínicos de algumas dessas expressões simbólicas.
Palavras-chave: pandemia, trauma, processo traumático, forma, simbolismo, transmutação de forma simbólica
A humanidade caminha eternamente buscando progresso e felicidade, num constante equilibrar-se entre certezas e incertezas. Retrocessos e avanços se alternam como num mecanismo de autorregulação. E os desafios se impõem, maiores ou menores, e de todos os tipos. A pandemia que assola muitos países no primeiro semestre de 2020 está fazendo o ser humano buscar, além do tratamento e da vacina, novas formas de ser e estar no mundo. Esse processo tem sido dolorido, pois inclui muitas perdas. Os prejuízos são visíveis, tanto na economia mundial quanto na economia psíquica. A pandemia e seus desdobramentos – o medo, a morte, o luto, o isolamento social e o confinamento – têm criado uma demanda por recursos que possam restituir-nos saúde mental e bem-estar. Como a psicanálise pode contribuir e o que pode fazer o psicanalista é o que queremos pensar, junto com os leitores, neste artigo.
Palavras-chave: pandemia, psicanálise, psicanalista, covid-19
Com a pandemia de covid-19, o mundo inteiro foi atingido de forma dramática e ameaçadora. Houve a perda da ilusão de que teríamos um lugar seguro neste planeta, de que poderíamos nos amparar, de que o mal poderia ser controlado por nós. Diante desse cenário, o trabalho de acolhimento e a possibilidade de dar voz às angústias vividas consistem no primeiro passo para promover o enfrentamento de uma experiência de vida tão difícil, o que minimiza os riscos de adoecimento mental. Assim, o presente estudo tem como objetivo refletir sobre o papel da psicanálise, do voluntariado e da escuta do psicanalista no Atendimento Humanitário em Saúde Mental da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave: identificação, narcisismo, pulsão, trauma, voluntariado
Tomando como ponto de partida os trabalhos de Jacques Derrida “As pupilas da universidade” e Mal de arquivo, este artigo busca refletir sobre o sonho como marco representativo de uma mudança de paradigma ao arquivo psicanálise, consolidando esta como ciência e clínica comprometida com uma modalidade inédita de escuta ofertada ao inconsciente e à produção de memória. Estabelecido esse ponto, pretende também pensar o fenômeno da proliferação de sonhos ocorrido na pandemia de covid-19, compreendendo o sonho como mal de arquivo. Essa formação, de fato, extraordinária irradia múltiplos efeitos tanto ao sonhador quanto à cultura que ele assim retrata, significando por si só importante elaboração a ser escutada.
Palavras-chave: sonho, psicanálise, mal de arquivo, Derrida, pandemia
O artigo apresenta a coleção Oniricopandemia: Sonhos da Crise de Saúde e da Democracia, iniciada em 2 de abril de 2020, e descreve o trabalho psíquico de apropriação dos acontecimentos vividos durante a pandemia da covid-19, mediado pela figurabilidade dos sonhos. Processo sensível às impressões não conscientes dos acontecimentos singulares e sociais, articulado ao contexto histórico e político, os sonhos são tentativas de reparação, transformação e criação psíquica diante da catástrofe. A figuração é pensada tanto como um caminho para acordar e ligar as representações recalcadas quanto como inauguração da condição de representação inibida pelo terror e pelo risco do traumático. A ruptura psíquica mais radical e dessubjetivante é sem imagens, e os sonhos, mesmo os de repetição e de ansiedade, são formas de resistência contra a dessubjetivação. Destacam-se a relevância dos sonhos para a subjetivação da dor e sua partilha como uma ação que favorece a construção da memória individual e coletiva.
Palavras-chave: sonho, pandemia, figurabilidade, catástrofe, subjetivação
Num ensaio composto por relatos subjetivos e vinhetas clínicas do contexto da pandemia de 2020, articulados a exemplos da cultura e da história da psicanálise, proponho discutir o potencial poético do trauma em sua relação com a constituição triangular do psiquismo, representada aqui pela noção freudiana de umbigo do sonho.
Palavras-chave: trauma, poesia, história, umbigo do sonho, morte
A pandemia da covid interpelou diretamente as nossas sociedades de múltiplas formas, desde aspetos atinentes à confiança social na ciência até à possível hiperpolitização dela, passando pelas prioridades assignadas ao funcionamento dos sistemas económicos e às formas da sua regulação. Sendo o nosso ambiente cultural marcado por evidentes traços de sinofobia, a experiência civilizacional de longo prazo da China é confrontada com a das sociedades ocidentais. As frequentes reclamações de maior intervenção económica estatal e de cooperação social entrecruzam-se com diversos outros problemas, designadamente as desigualdades sociais. O caso sueco foi também objeto de consideração, ficando expressa uma visão cética quanto ao seu valor enquanto modelo médico. São, enfim, destacadas várias complexidades e incertezas da situação presente.
Palavras-chave: confiança social na ciência, sinofobia, cooperação social e história de longo prazo, intervenção económica estatal, caso sueco, incertezas e complexidades
Este artigo discute o papel e a natureza da atividade interpretativa em momentos de intensa transferência negativa a partir da análise de dois pré-adolescentes com comportamento antissocial, atendidos em diferentes épocas da experiência clínica da autora. A capacidade de continência do analista e a compreensão da dimensão simbólica em que o paciente se encontra são elementos essenciais para considerar o tipo de intervenção a ser tomada. A busca da interpretação mágica, que desmancharia as reações de hostilidade em direção ao analista, dá lugar à percepção da necessidade de conter a turbulência comunicada pelo paciente até que se encontre uma forma de retomar a comunicação verbal mais explícita. A insistência em interpretar pode chegar a incrementar a transferência negativa. Nesses casos, o manejo da situação analítica se coloca em primeiro lugar, até que se criem condições para que a dupla volte a funcionar em harmonia.
Palavras-chave: interpretação, transferência, comportamento antissocial, técnica psicanalítica
Neste artigo pretendemos demonstrar, a partir da análise da obra de Sándor Ferenczi e de sua correspondência com Freud, como certas ideias propostas em Além do princípio do prazer prolongaram, por um lado, hipóteses antecipadas pelo psicanalista húngaro e, por outro, lhe forneceram importantes subsídios para seus derradeiros avanços clínicos.
Palavras-chave: Ferenczi, Freud, pulsão de morte, clínica psicanalítica, Além do princípio do prazer
O artigo procura exemplificar o grau de traumatismo sofrido por um jovem nos bombardeios cometidos por Israel em 2006, no sul do Líbano, contra a comunidade xiita. O registro faz parte de 20 histórias de vida colhidas em pesquisas de campo realizadas em cidades afetadas, e pretende-se que exemplifique os efeitos desses eventos na comunidade. Depois de décadas, os integrantes do grupo etno-confessional participam de uma conjuntura nacional de enfrentamentos mortíferos entre suas comunidades. Do outro lado da fronteira, Israel volta a atacá-los. Esse contexto, que os situa em duas frentes de perigo, torna constantes os eventos catastróficos em sua história recente. São analisadas as disposições psíquicas do jovem e o papel da identificação grupal no enfrentamento das situações catastróficas. Será sublinhada a produção do ódio a partir do traumatismo sofrido, para analisar, na conclusão, seu papel na resiliência psíquica e na dinâmica identitária.
Palavras-chave: xiitas, bombardeios israelenses, Líbano, trauma, ressentimento
O autor trabalha na introdução clínica e teórica da psicanálise a médicos-residentes em psiquiatria, durante o estágio destes em psicoterapia. Através de uma vinheta clínica, o tema da obrigatoriedade de tal contato é ampliado e, então, discutido à luz do documento oficial do Ministério da Educação que regulamenta os requisitos mínimos para a formação de psiquiatras no Brasil.
Palavras-chave: psicanálise, psiquiatria, psicoterapia, formação, obrigatoriedade
O autor pretende compartilhar sua experiência como psicanalista morador de Paraty (RJ), seu contato com as comunidades tradicionais existentes na cidade e como o conhecimento dessas comunidades transformou seu olhar sobre o adoecimento humano e ampliou seu conhecimento psicanalítico.
Palavras-chave: comunidades tradicionais, transmissão psíquica, sustentabilidade, psicanálise social
História, memória, esquecimento e tempo. Temos em Virgínia Leone Bicudo um paradigma importante. É preciso conversar sobre trauma, sobre racismo e sobre a experiência e a vivência do pai da psicanálise. Virgínia rompe com o pacto patológico e social demonstrando pioneiramente a percepção inconteste da existência de uma discriminação específica, fundada no preconceito de cor.
Palavras-chave: racismo, preconceito de cor, memória, tempo, trauma
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