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Volume 53 nº 1 - 2019 | Ódio

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

O outro se domina, mas sofre humilhação

e é assim que o ódio nasce.

Albert Camus

A Revista Brasileira de Psicanálise é a mais antiga publicação psicanalítica do país e, sem dúvida, faz parte do grupo das melhores publicações que temos na área da psicanálise. São duas realidades a exigir uma grande responsabilidade do editor e de toda a equipe, na sustentação de um projeto editorial de alta qualidade científica, que ao mesmo tempo torne claros os compromis­sos éticos da psicanálise com questões relevantes sobre a subjetividade dos indivíduos, os laços e as instituições sociais.

Fizemos os números Política I e II com o intuito de contribuir para o pensamento e o diálogo sobre manifestações psíquicas advindas de processos políticos e sociais que nos afetam em todas as esferas cotidianas, das relações íntimas à vida pública. Acreditamos que, para a história da revista, esses números marcam uma valiosa contribuição ao campo psicanalítico brasileiro, bem como fincam a posição da RBP de não se alienar dos acontecimentos e fe­nômenos sociais, nos quais estamos inseridos enquanto analistas, convocados a refletir, a analisar e a romper os enredamentos do conflito social, na busca de elaboração e transformação.

A discussão da equipe editorial se encaminhou no sentido de nos mantermos sintonizados com os conflitos psíquicos, sociais e políticos que enfrentamos no Brasil e também em outros países. Havia um anseio na equipe de colaborar com o debate dessas questões através da nossa matéria-prima – o inconsciente. Foi assim que o tema Ódio nasceu e amadureceu entre nós, dando título a este número da RBP.

Ao leitor que queira se aprofundar no assunto, vale lembrar três textos que não se encontram neste número, mas que merecem constar de uma bibliografia pertinente ao tema: “O ódio pede passagem” (2014), de Joel Birman, que contextualiza a diferença entre raiva e ódio e traça uma linha que vai dos gregos à modernidade; “O ódio e a destrutividade na metapsicologia freudiana” (2001), de Luís Carlos Menezes, que refaz o percurso de Freud de modo perspicaz e sofisticado, indagando qual seria a natureza pulsional do ódio; e “The psychical and social roots of hate” (1999/2007), de Cornelius Castoriadis. Esses textos têm a profundidade metapsicológica e a abran­gência necessária para compor uma base ao que este número sobre o ódio tentará trazer, com as marcas das questões do atual momento histórico, social e cultural.

Neste número, atendendo à nossa carta-convite, o ódio é considerado em múltiplas perspectivas por nossos colaboradores, mas sempre tendo em vista a dimensão psicanalítica. Tratado como conceito que extrapola o âmbito individual, o ódio requer um objeto – subjetivo ou objetivo – sobre o qual possa despejar sua força destrutiva. Assim, a figura do outro assume um papel importante: o outro como suporte do ódio; o outro cujo olhar nos constrange ou mesmo nos constitui; o outro que põe em cena, além do sujeito, o ancestral, a descendência, o grupo e inclusive a figura do analista diante do paciente.

Na condição de fenômeno do humano, o ódio atrai o interesse de áreas como a psicanálise, a sociologia, a psicologia, a literatura, a filosofia e a política. Os trabalhos recebidos de alguma forma mesclam esses saberes, enriquecendo a reflexão sobre o tema. Esperamos que esse conjunto de textos que a equipe editorial organizou contribua para os diálogos tão atuais a respeito do ódio.

Para finalizar este breve editorial, gostaria de fazer dois apontamentos. O primeiro se refere às seções “Outras palavras” (tema livre), “História da psi­canálise” e “Projetos e pesquisas”, permanentemente abertas ao recebimento de artigos não relacionados à temática do número. Os colegas estão convidados a colaborar com essas seções sempre que desejarem. Mandem seus artigos en­dereçados a uma dessas três seções, e eles serão avaliados, pelo método duplo–cego, para a seção pertinente. Contamos com sua colaboração.

O segundo ponto é a criação da coeditoria internacional na RBP. Gostaria de apresentar os dois novos colaboradores da RBP, com a função de ampliar o diálogo entre a psicanálise produzida em outros continentes (EUA e Europa) e a psicanálise brasileira, que a RBP procura identificar e publicar. Fernanda Sofio (1), em Nova York, e Luiz Eduardo Prado (2), em Paris, passam a fazer parte de nossa equipe ampliada. Desejo que essa parceria seja frutífera de lá para cá e de cá para lá, uma vez que o mundo parece ter ficado menor, com as distâncias mais curtas, devido às novas tecnologias. Bem-vindos, ambos, à RBP.

Desejamos a todos uma boa leitura.

1 Psicanalista. Doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora dos livros Literacura e Psicanálise na uti.

2 Psicanalista. Professor emérito de psicopatologia. Escritor e tradutor. Universidade de Paris 7 –Denis Diderot.

Referências

Birman, J. (2014). O ódio pede passagem. Percurso, 52, 169-170.

Castoriadis, C. (2007). The psychical and social roots of hate. In C. Castoriadis, Figures of the thinkable (H. Arnold, Trad., pp. 153-164). California: Stanford University Press. (Trabalho original publicado em 1999)

Menezes, L. C. (2001). O ódio e a destrutividade na metapsicologia freudiana. In L. C. Menezes, Fundamentos de uma clínica freudiana (pp. 145-155). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Marina Massi

Editora

Diálogo

Este trabalho aborda a questão do estigma, que evoca inúmeros problemas ligados ao social e ao psíquico. Um estigma é uma anomalia, mas torna-se estigmatizante quando se desenvolve ódio contra si mesmo, quando nos depreciamos. O autor considera que o ambiente familiar representa um papel nessa evolução que não pode ser negligenciado. Estuda diferentes derivações e, em especial, as consequências do olhar do outro. Se o grupo social e o grupo familiar desempenham um papel nessa evolução, é com o grupo e escorando-se nele que a situação da estigmatização se inverterá e o estigma poderá tornar-se uma força. Um caso clínico permite ilustrar os efeitos do ódio contra si mesmo. As contribuições da filosofia e da sociologia ampliam esse debate.
Palavras-chave: estigma, estigmatização, preconceito, ódio contra si mesmo, olhar do outro, si mesmo, ego

No âmbito do trabalho psicanalítico familiar, os terapeutas encontram regularmente o surgimento do ódio, seja instalado na diacronia, seja aparecendo como uma erupção que os surpreende, até mesmo os domina. Interessando-se por esse afeto paixão, a autora tenta defini-lo, determinar seus contornos no pensamento filosófico e na teoria psicanalítica, a fim de identificar suas funções em psicanálise familiar e perceber seus impactos no tecido intersubjetivo tão complexo do grupo familiar, cuja vida psíquica inclui, ao mesmo tempo, os ancestrais e os descendentes.
Palavras-chave: ódio, vínculo intersubjetivo inconsciente, filosofia, psicanálise familiar, Spinoza

Ódio

Neste artigo, apresentamos uma situação clínica na qual o analista viveu o seu ódio como uma experiência estranha (unheimlich). Discutimos como o ódio do
analista se relacionou com a necessidade de proteção narcísica contra o perigo
da indiferenciação entre o eu e o outro. Conjeturamos que o abalo das fronteiras do eu e a sensação de automatismo foram os dois fatores que levaram o analista a viver o seu ódio como um fenômeno estranho.
Palavras-chave: estranho (Unheimliche), ódio, narcisismo, transferência, contra-
-transferência

Este artigo é um convite ao questionamento das relações entre a transferência negativa, as situações-limite e a implicação do analista na dinâmica trans‑
ferencial. Parte-se de uma apresentação ampla das transferências negativas no campo psicanalítico para, em seguida, construir um percurso em Ferenczi com ênfase nos problemas clínicos que o levaram à sua teoria do trauma e da identificação ao agressor e à proposição da elasticidade da técnica psicanalítica. Para ilustrar a íntima relação entre construção teórica e investigação clínica e a implicação do analista na difícil tarefa de suportar o terror e o ódio na transferência, aborda-se o caso RN (Elisabeth Severn) do Diário clínico de Ferenczi.
Palavras-chave: transferência negativa, ódio, limite, Sándor Ferenczi, psicanálise

O artigo desenvolve a ideia da existência de um ódio primário e estruturante, a partir dos conceitos freudianos concernentes à segunda tópica, principalmente os conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte. Acrescentam-se contribuições de André Green e de outros autores sobre os processos de ligação e desligamento, relacionando as frustrações decorrentes do desencontro entre a demanda do bebê e o desejo materno, com o incremento de angústias do início da vida que repercutirão no destino das pulsões e na vida do sujeito. Por um lado, a pulsão de vida gera ligações e desperta o desejo, estando na base dos processos identificatórios. Por outro, a pulsão de morte, atenuada pelas ligações a representações, será expressa por desejos destrutivos em relação ao objeto. Chamamos esse processo de ódio primário, e entendemos que ele contribuiria, de maneira não menos importante, para o processo inicial de individualização. Se as ligações do ser com o objeto estabelecem a identidade (ser idêntico), os processos relacionados à destrutividade fornecem as marcas psíquicas para a construção da individualidade (aquilo que não se divide).
Palavras-chave: pulsão de vida, pulsão de morte, identidade, individualidade, ódio primário

Os fantasmas da intolerância e do radicalismo uma vez mais voltam a assombrar. Numa tentativa de compreender o fanatismo por meio de uma abordagem psicanalítica, o autor examina o papel do ódio nas relações de objeto entre indivíduos, e portanto também na cultura, como elemento modulador dessa guinada em direção à intolerância nos anos 2000. Para isso, apoia-se em algumas ideias do escritor israelense Amos Oz, extraídas do ensaio “Sobre a natureza do fanatismo”. À luz da metapsicologia, estuda os seguintes fatores: narcisismo, masoquismo primário e sadismo, e relações entre o ego e um superego cruel, com ênfase na possível influência desses três fatores na gênese do pensamento fanático. Examina também o potencial sublimatório da empatia pelo suposto inimigo como elemento capaz de relativizar o fanatismo – por exemplo, quando se faz uso do humor.
Palavras-chave: fanatismo, ódio, narcisismo, narcisismo de morte

Este artigo procura compreender a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil utilizando a teoria psicanalítica, especialmente os estudos de Sigmund Freud sobre a psicologia das massas, em conjunto com elementos da teoria jurídica (especialmente a partir de Hans Kelsen) e da teoria da comunicação. Nossa hipótese é que a escolha de Bolsonaro, um político que durante sua vida pública mostrou-se em constante confronto com o pensamento democrático, está relacionada a uma concepção onipotente de grupalidade que aparece como resposta à fragilização da vinculação social e afetiva entre componentes da sociedade brasileira. Por sua vez, essa fragilização surgiria a partir do conhecimento público do que foi apurado pela Operação Lava Jato e, especialmente, a partir de como essa investigação foi tratada pelos formadores de opinião, desde as tradicionais empresas de comunicação até as redes sociais.
Palavras-chave: psicanálise, democracia, Bolsonaro, Freud, Kelsen

Interface

O autor se propõe a discutir a abordagem psicanalítica do ódio, desde suas origens instintivas até suas manifestações intersubjetivas. Para tanto, analisa como o ódio é explicado por Freud e qual o papel que lhe é atribuído na vida mental. Contribuições de autores pós-freudianos são também exploradas, sobretudo no que diz respeito à compreensão das manifestações do ódio no contexto das relações objetais e da intersubjetividade. Essas contribuições, por sua vez, fornecem elementos suplementares para distinguir as manifestações patológicas e destrutivas do ódio de suas funções adaptativas e construtivas na vida mental. Por fim, a título de conclusão, o autor discute as implicações dessa abordagem para a visão psicanalítica da natureza humana.
Palavras-chave: Freud, ódio, agressão, narcisismo, desamparo

Outras palavras

A partir da questão da criatividade, tal como pode ser identificada no pensamento de Winnicott e de Bion, apresentaremos algumas ideias sobre a criação – a decolagem criativa –, tomando por interlocutores os psicanalistas franceses Michel de M’Uzan e Didier Anzieu. Trabalharemos com a criação nas artes, na literatura, nas ciências e nas próprias teorias psicanalíticas. Veremos como a inveja inconsciente extravia ou obstrui o processo criativo.
Palavras-chave: psicanálise da arte, arte da psicanálise, criatividade, criação, inveja, gratidão

Das fobias e do pânico, o autor passa a considerar, sob o ponto de vista da existência do ser interior e da angústia de passagem à inexistência, o centro principal da problemática psíquica. Este consiste no distanciamento de contato com o próprio ser, motivado especialmente pela pulsão de morte, de que resulta inicialmente a fragilidade do self e a angústia de dissipação do self. Esses fatores, porém, podem ser evitados pelo emprego da sensorialidade, que se refere à factualização e à objetificação da mente. A interação dos fatores vem determinar a natureza das perturbações psíquicas. Com base no conjunto dos fatores, o autor apresenta um modelo metodológico com vistas à prática do atendimento psicanalítico, denominado psicanálise compreensiva. Nele, cada elemento inscreve-se num contexto geral. Considera-se que o self e o ser interior são diferentes instâncias psíquicas. As perturbações psíquicas podem ser organizadas em função do foco ou sistema mental determinante.
Palavras-chave: teoria psicanalítica, metodologia psicanalítica, modelo mental, psicanálise de fatores, metapsicologia

Neste trabalho, a autora examina a noção de emoção sob o vértice teórico de Bion. Estuda situações clínicas que envolvem forte emoção e situações de ausência de emoção, específicas de estados primordiais da mente – estados autísticos e estados não integrados. Desenvolve ideias sobre o tipo de linguagem que o analista deve empregar diante desses estados de mente. Para isso, recorre à teoria de Transformações, de Bion, particularmente às transformações em O. Propõe que a linguagem do analista com tais pacientes poderia ser o que denomina de linguagem de emoção, o analista “tornando-se” a emoção do momento. Apresenta material clínico de dois pacientes com o intuito de ilustrar as questões levantadas no trabalho e estimular a discussão.
Palavras-chave: emoção, não emoção, linguagem do analista, estados primordiais da mente, transformações em O

Este artigo apresenta um estudo sobre o texto “O estranho”, de Freud, a partir dos deslocamentos do sentimento de si, o que pode ser o terceiro elemento necessário, previsto por Freud, para a constituição do estranho. Trata-se de uma primeira aproximação mais sistemática da ideia de que o estranho (seja na experiência narrativa literária, seja na realidade comum) é produzido pelas operações ambivalentes da linguagem e do corpo, resultando em uma tensão e perturbação dos limites e fronteiras do eu. Por fim, consideraremos as temáticas da cisão, da afirmação e recusa, fundamentais para entender a estrutura do eu e seu atravessamento simultâneo por distintas matrizes da intersubjetividade, ou seja, pela presença do outro em sua função constitutiva das subjetividades.
Palavras-chave: o estranho, eu, sentimento de si, intersubjetividade, percepção

História da psicanálise

Estudando as preocupações culturais dos primeiros discípulos de Freud, este artigo busca explicar como elas inspiraram tanto a convicção intelectual no freudismo quanto o compromisso íntimo com o movimento psicanalítico. Esclarece, dessa forma, uma identificação importante, e implícita, entre médicos e leigos do círculo de Freud. Ao mesmo tempo, traz à luz a tensão entre valores e ciência na psicanálise vienense.
Palavras-chave: Viena, cultura, moral, ciência, psicanálise

Projetos e pesquisas

Ao contrário de uma imagem de integração harmoniosa, o destino dos jovens brasileiros pobres, nascidos de populações descendentes de escravos deportados da África, envolve uma violência social muitas vezes extremada. Assassinato e suicídio são a trágica sina de dezenas de milhares de adolescentes todos os anos. Este artigo tem como objetivo caracterizar essa violência social e analisar suas fontes. Observa-se uma conexão muito estreita entre estratificação e discriminação social, o que produz uma desqualificação da lei simbólica e das leis sociais. Esse entrelaçamento repete-se de maneira feroz em instituições destinadas a acolher, proteger e acompanhar os adolescentes. Elas reproduzem uma negação da lei simbólica e violam as leis sociais, agindo como grandes transgressoras das proibições fundamentais. A prevalência da lei do mais forte, reivindicada tanto por profissionais quanto por adolescentes, configura um conjunto institucional sob o primado do fálico, a partir de uma posição de rigidez e legitimação da violência, associada a uma tomada do poder por figuras e autoridades tirânicas.
Palavras-chave: adolescente em conflito com a lei, instituição, lei simbólica, assassinato, racismo, violência

Resenhas