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Volume 46 nº 3 - 2012 | Passagens II – entre o moderno e o contemporâneo

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Passagens II: Entre o moderno e o contemporâneo

 

[…] contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la”, segundo uma necessidade que não provém de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder.

(Agambem, 2009, p.72).

A perspectiva de diálogo que inauguramos em nosso número anterior, Passagens I – entre o moderno e o contemporâneo com o tema do XXIX Congresso da Fepal: Tradição – Invenção, é aprofundada neste que aqui apresentamos, cujo foco principal trata da clínica atual e da possibilidade da instauração de um pensamento clínico contemporâneo.

No primeiro número direcionamos nossa atenção ao estreito vínculo que liga a psicanálise ao questionamento dos ideais da Modernidade, sua ligação com o Modernismo e as vanguardas europeias do início do século XX, que deixaram sua marca indelével na implantação de nossa disciplina no Brasil.

Agora colocamos em perspectiva a ideia do contemporâneo na clínica atual, dialogando com a proposta curatorial da 30a Bienal de Artes de São Paulo: Iminência das poéticas, cuja inauguração em setembro de 2012 antecede o Congresso da Fepal. Seu curador, Luis Pérez-Oramas, escreve sintetizando sua proposta para a exposição: “A ideia é ver como o presente projeta sua sombra sobre o passado e transforma um legado histórico em elemento da contemporaneidade”. A rica entrevista que publicamos abre um amplo leque de questões. Desde os limites da representação, passando pela função política da arte que visa a partir de sua perspectiva colocar em xeque certas ilusões contemporâneas, privilegia a distância, o fragmentário e o silêncio, reivindicando a demora em contraposição ao excesso de informação em uma urgência que encurta o tempo. Destacam-se em sua proposta recursos solidários, montagem e anacronismo, inspiradas nas propostas de Walter Benjamin, que vê a montagem (1) como estratégia metodológica, que ao retirar os objetos/textos/imagens de seus contextos, possibilita o surgimento de uma nova constelação na qual as noções de temporalidade são transformadas, assim como se possibilita a emergência de novos sentidos históricos. Dialoga, deste modo, com o trabalho de Didi-Huberman, filósofo e historiador da arte, A prova pela imagem, no qual procura nos mostrar como este método privilegiado por Bertold Brecht em seu diário – escrito em parte durante a Segunda Grande Guerra, valendo-se da montagem de imagens, desorganizando a ordem cronológica, ignorando ordem de grandezas e hierarquias, dispondo as diferenças, em um “choque das heterogeneidades” – produz efeitos de sentido, assim como a atenção flutuante por parte do analista. A montagem, diz Huberman, consegue expor a verdade das coisas.

Os psicanalistas José Canelas Neto e Henrique Honigsztejn encontram em seus apurados comentários importantes pontos de intersecção com questões com as quais nos defrontamos como psicanalistas. Propiciam, assim, um diálogo com essas teses representativas do conjunto dos trabalhos publicados neste número.

Dois textos se fazem presentes como homenagem póstuma a André Green, analista que representa a busca incansável da construção de uma matriz dialógica para o pensamento clínico contemporâneo. Fernando Urribarri, analista argentino que o acompanhou intelectualmente e como amigo nos últimos anos da sua vida, ofereceu-nos gentilmente uma entrevista com André Green, fruto de um trabalho de parceria com esse psicanalista e pensador, que muitos no Brasil tiveram oportunidade de conhecer. Também publicamos um trabalho do próprio Urribarri, no qual procura mapear questões que apontam as transformações que balizam “o pensamento clínico” (assim nomeado por Green), destacando o trabalho interno do analista, o funcionamento mental como campo heterogêneo, em que se conectam o intrapsíquico e o intersubjetivo, a complexidade e a importância do enquadre interno do analista, o que nos possibilita concluir, pela atenção à diversidade de lógicas em jogo, que a posição atual do analista não pode ser fixa, mas múltipla e variável.

Os primorosos trabalhos de Ruggero Levy e Lourdes Tisuca Yamane são um exemplo da sutileza e cuidado no trabalho clínico com analisandos, cuja precariedade simbólica demanda esse trabalho fino e singular do analista contemporâneo. A ideia fecunda de pensamento-prótese, aporte de Levy como degrau rumo à simbolização, assim como os movimentos na direção de humanização no encontro com o outro, que puderam auxiliar o jovem analisando de Yamane a se deslocar de um lugar fusional, permitindo “celebrar um rito de passagem à cultura humana”, testemunham tanto o rico trabalho como o pensamento clínico vivo e complexo desses analistas, que encontram na pluralidade de suas referências recurso para avançar em regiões turbulentas e opacas da subjetividade.

Um retorno à teoria gera uma tensão criativa com o “pensamento clínico”. Publicamos postumamente um trabalho inédito de Fábio Herrmann, com introdução de Leda Herrmann, no qual analisa o grau de desenvolvimento da psicanálise como ciência geral da psique, destacando a tensão dialética entre I (invenção) e D (descoberta), condição necessária para a criação científica, abertura para o sentido da verdade (V).

“Tempo, tempo, tempo, tempo/ Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos”, assim canta Caetano Veloso em sua Oração ao tempo (1979). Compartilhamos com Caetano a reverência que percorre ora silenciosa ora mais ruidosamente toda a obra freudiana, e que movimenta os bastidores do pensamento clínico nos diferentes textos que compõem este número. Serão os trabalhos de Gabriel Sapisochin, Yudith Rosenbaum e Janine Altounian que avançarão da direção da atualização das temporalidades arcaicas e traumáticas da experiência histórica e subjetiva. Sapisochin retoma explicitamente, em um exame rigoroso, a ideia central de regressão e a investiga à luz das transformações, que permitem criar condições de apropriação do arcaico não integrado na experiência analítica. Já Rosenbaum, a partir de uma análise da obra de Oswald de Andrade, ilustra com um breve, mas paradigmático, exemplo o efeito que produz o deslocamento em um texto de Pero Vaz de Caminha, potencializando novas relações de sentido outrora preso em uma temporalidade arcaica. Por outro lado, Altounian – em um comovente depoimento – resgata, por meio da exumação do traço, o tempo psíquico, assim como o tempo histórico de acontecimentos sócio-políticos vinculados ao genocídio armênio.

Completam este número os trabalhos de Salvitti, Barison, Lottenberg Semer e Bellochio Thones & Follo da Rosa Jr., com significativas contribuições em torno da clínica e da teoria psicanalítica.

Esperamos que a complexa trama simbólica que a riqueza deste número contempla contribua para a busca de interlocução e abertura em torno dos problemas e perspectivas que desde a clínica nos interrogam, e possam ter valor de estímulo para os debates que terão lugar – seja no contexto do Congresso da Fepal, como no próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise, no qual o Ser contemporâneo estará em discussão em seus vários vértices.

Grato, mais uma vez, ao empenho de toda equipe editorial, que com muito afinco dedicou-se à tarefa de elaboração destas Passagens I e II, uma tentativa de apreender permanências e iminência de novos movimentos que operam na clínica atual.

Boa e prazerosa leitura!

 

Bernardo Tanis

Editor

 

Referências

Agambem, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. (V.C. Honesko, Trad.). Chapecó, SC: Argos.

Veloso, C. (1970). Oração ao tempo. In C. Veloso, Cinema transcendental. [CD]. [s.l.]: Philips.

 

(1) O recurso da montagem como metodologia epistemológica de investigação implica, para W. Benjamin, uma nova abordagem da história que se contrapõe ao historicismo linear.

Diálogo

Comentários sobre a entrevista

O autor comenta e relaciona à psicanálise alguns conceitos importantes trazidos por Oramas na entrevista a este número da RBP. O “anacronismo” é aproximado da visão da temporalidade em psicanálise, isto é, da noção de um tempo heterogêneo governado pela concepção do “après-coup” (heterocronia). A noção de “sobrevivência de formas” (Warburg) abordada no artigo se mostra fecunda para os psicanalistas. Também foram destacado  e comentados: a ideia de iminência poética, a importância do mito e da arte como crítica à ilusão ideológica vigente e a relação entre linguagem poética e psicanálise.
Palavras-chave: anacronismo; temporalidade; linguagem poética; formas simbólicas.

O metabolizado foi um ponto em destaque da entrevista. Daí foram surgindo ideias em mim quanto a troca emocional, afetiva no encontro com corpos – experiências que trazem um acréscimo ao ser, abrindo passagens para a circulação de mais vida, em um movimento como o de escrever: ponto de partida de novas metabolizações, novas passagens.
Palavras-chave: metabolismo; passagem; arte; corpo; troca; afeto; escrever.

Artigos temáticos: Passagens II – entre o moderno e o contemporâneo

O principal objetivo deste trabalho é contribuir para a compreensão das mudanças ocorridas na clínica psicanalítica contemporânea, a partir do ponto de vista histórico e conceitual. O artigo aborda as três etapas históricas sucessivas da atividade do analista (seguindo o fio condutor da teorização e da contratransferência): freudiana, pós-freudiana e contemporânea. Concentra-se, em particular, nas mudanças introduzidas na passagem do segundo para o terceiro modelo: de um “conceito totalizante” da contratransferência – que inclui a totalidade do funcionamento mental do analista e que é o núcleo do modelo clínico pós-freudiano – até a “concepção enquadrada” da contratransferência dentro de uma mais ampla e complexa visão contemporânea do trabalho psíquico do analista (na qual as noções de enquadre e de “enquadre interno” são centrais, e na qual a contratransferência enquadra-se e está subordinada ao pensamento clínico do analista).

Palavras-chave: Psicanálise contemporânea; modelo freudiano; modelo pós-freudiano; modelo contemporâneo; pensamento clínico; contratransferência; trabalho psíquico do analista; enquadre; enquadre interno; processos terciários.

Este texto é inédito e faz parte do conjunto de aulas do curso Da clínica extensa à alta teoria: meditações clínicas. Diz respeito às considerações sobre o regime de verdade próprio de uma ciência em formação que ainda precisa estabelecer níveis de abrangência de suas produções em teorias. No estágio inicial ela lida muito de perto com seu nascedouro em criação, isto é, com as formas possíveis que vai encontrando para explorar o objeto, que desafiadoramente surgiu como questão ou problema. A Psicanálise foi criada por Freud par e passo com a invenção que ia fazendo de um método de investigação interpretativa do sentido humano, descobrindo a psique. Entre a invenção do método interpretativo e a descoberta da psique, fundada na construção da noção de inconsciente, um espaço de tensão se forma, ocupado pela questão da verdade psíquica – um novo campo de saber, um ponto de vista em que as fronteiras da consciência expandem-se para lá da razão.
Palavras-chave: psicanálise; método psicanalítico; ruptura de campo; Teoria dos Campos; Fabio Herrmann.

O autor visa estudar neste artigo a técnica de trabalho com adolescentes com transtornos severos de personalidade, em que se observa uma insuficiência dos processos de simbolização para lidar com emoções não simbolizadas. Propõe que a análise se desenvolve em pelo menos dois tempos, em que se observa uma evolução nos processos simbólicos. Em uma etapa intermediária é proposta a utilização, por parte do paciente, de pensamentos-próteses, que seriam formas intermediárias de figuração da emoção impensável.
Palavras-chave: psicanálise da adolescência; transtornos do pensamento; não-simbolização e adolescência;
insuficiências simbólicas.

Partindo da suposição de que a noção de regressão libidinal pertence a um modelo de psiquismo estático, encerrado no vínculo com o outro e organizado de forma invariante, o autor considera que a apresentação do arcaico na sessão analítica pressupõe um modelo de psiquismo como uma Organização Funcional, com diferentes níveis de funcionamento e de representação simbólica. Propõe-se a ideia de um psiquismo arcaico, conceitualizado como inconsciente não reprimido e resultante das atribuições projetivo-traumáticas do inconsciente parental, que busca expressão e representação através da colocação em ato nos diferentes contextos em que se processa a realidade psíquica. O autor considera que a ideia de um psiquismo, que se manifesta por meio do que é repetido a partir da colocação em ato dramático, é a consequência de um psiquismo aberto à geração de significado emocional no encontro com o outro do espaço intersubjetivo, o qual deixou de ser um objeto contingente. Considera-se que a noção freudiana de Agieren pressupõe uma mudança implícita na teoria da escuta psicanalítica, dado que a transferência deixa de ser apenas o deslocamento da representação intrapsíquica para constituir-se em fenômeno intersubjetivo indissoluvelmente ligado à contratransferência. Postula-se finalmente que a utilização instrumental da apresentação do arcaico no processo analítico implica que o enquadre, ao conter a representação cênica de certa configuração intrapsíquica arcaica do analisando registrada como gestos-psíquicos-não-pensados-verbalmente, cria as condições para uma nova forma de representação compatível com a lógica verbal do Eu, distanciada da repetição em ato e suscetível de ser ressignificada infinitamente.
Palavras-chave: Agieren; arcaico; gestos-psíquicos-não-pensados-verbalmente; inconsciente não reprimido; organização funcional; regressão.

O artigo ilustra, por meio de um exemplo pessoal, que exumar um traço e fazer ouvir uma voz é uma gestação submetida ao tempo – tempo psíquico, tempo genealógico, tempo histórico dos acontecimentos sociopolíticos; ou seja, tempo que extrapola os limites da vida individual. Expõe as diferentes etapas por que teve de passar o testemunho de deportação de Vahram Altounian, sobrevivente do genocídio armênio, até sua publicação, em fac-símile, em uma edição universitária, no seio de um conjunto de elaborações, das quais foi o referente para sete beneficiados: seu tradutor, sua filha e cinco psicanalistas à escuta dos traumas da História.
Palavras-chave: transmissão; herança traumática; traços; tempo de latência; genocídio armênio; testemunho; condições políticas do país de acolhida.

Reflexões sobre as dificuldades de um garoto que, por via regressiva, buscava um estado fusional com o corpo da mãe, o que impossibilitava seu acesso a um processo identificatório.
Palavras-chave: re-inscrições do humano; alteridade; processo identificatório; processo originário.

Interface

A pergunta sobre a eficácia argumentativa das imagens (seja no campo do conhecimento ou no campo da ação) é respondida aqui com a noção de “prova” pela imagem, ou seja, a forma concreta como a imagem faz pensar e agir. Isso tudo é sublinhado por meio da obra de Bertolt Brecht, Walter Benjamin ou Ernst Bloch, analisando as montagens de imagens a partir das quais é possível um novo modo de pensar a história.
Palavras-chave: Bertolt Brecht; Walter Benjamin; Ernst Bloch; imagem; montagem; dialética; desordem; história.

Este ensaio pretende discutir algumas relações entre a antropofagia do escritor modernista Oswald de Andrade e a psicanálise, inserindo o debate no contexto das vanguardas europeias. O texto de Freud, Totem e tabu, também é convocado para dialogar com a proposta oswaldiana, tentando iluminar algumas afinidades entre o trabalho analítico e a metáfora da antropofagia frente ao processo de subjetivação.
Palavras-chave: Oswald de Andrade; antropofagia; psicanálise; vanguarda.

Artigos

Acompanhamos o desenvolvimento do interesse de Bion pela observação psicanalítica em seus artigos sobre psicose. O objetivo é evidenciarmos algumas concepções teóricas, abordagens clínicas e características de seu estilo literário que participam das formulações metodológicas posteriores. Chamamos a atenção para o estilo de Bion em seu esforço de descrever certas experiências clínicas e transmitir o conhecimento psicanalítico por meio de trabalhos científicos. Procuramos ressaltar a presença de ambiguidades e imprecisões em sua escrita, sem o objetivo de resolvê-las.
Palavras-chave: estilo literário; observação; atitude analítica; identificação projetiva.

Por meio do relato de experiências íntimas e de sonhos, o autor se inspira na cidade de Pompeia, em um romance de W. Jensen, bem como nas ideias de Freud para abordar processos de luto em situações clínicas. Faz considerações sobre a relação afetiva que norteia o trabalho da dupla analítica, inclui para utilização, mediante análise, as experiências do analista e aponta a situação complexa que envolve o par. Ao mesmo tempo em que relata as sessões, deixa subentendido – sem se prender a eles – os referenciais teóricos que norteiam o trabalho, discutindo um posicionamento atual na produção de textos psicanalíticos.
Palavras-chave: Gradiva; luto e elaboração; experiências do analista; situação complexa.

Este artigo apresenta um breve relato do atendimento psicanalítico de pessoas com fibromialgia, realizado desde 2004, em um centro clínico de pesquisa em psicoterapia vinculado a uma instituição de ensino. A crescente presença de pacientes com pouco acesso ao simbólico em nossa clínica cotidiana tem estimulado a constante busca por ampliar o trabalho em terreno árido, bem como desenvolver recursos para o manejo dessas situações. Procuramos discutir as relações e repercussões entre dor física e dor psíquica nas diversas contribuições psicanalíticas, com a complexidade envolvida relacionada à continuidade versus descontinuidade psiquismo-soma.
Palavras-chave: dor física; dor psíquica; corpo-mente; somatizações; pesquisa em psicanálise.

O presente artigo pretende traçar uma relação entre a criação artística do ator e a criação realizada pelo paciente em análise, entrelaçando conhecimentos da psicanálise e do teatro. Ao se empreender, para tanto, uma revisão da criação artística dentro da teoria psicanalítica, descobre-se que a sublimação – à qual é atribuída a criação artística – pode ocorrer em diferentes momentos. A partir do momento da criação, é trazida a teoria de Stanislavski, segundo a qual o personagem conta com experiências e desejos do próprio ator para ganhar vida. Com isso, pensa-se sobre a criação do paciente em análise: também ele pode criar um “personagem” para representá-lo.
Palavras-chave: criação artística; sublimação; personagem; clínica psicanalítica.

Intercâmbio

Resenhas