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Volume 53 nº 2 - 2019 | Feminino, outras reflexões

Sumário (Clique nos títulos para acessar editorial ou resumos disponíveis)

Marina Massi

O número com o tema Feminino, outras reflexões se impôs ao planeja­mento editorial que havíamos feito, contemplando o tema Palavra e verdade, que daria continuidade ao abordado nos três últimos números lançados.

Por tradição, a Revista Brasileira de Psicanálise publica todos os keynote papers dos congressos internacionais da Associação Psicanalítica Internacional (ipa). Nesse caso, notamos que os artigos do congresso tinham relação com os textos de duas psicanalistas convidadas pela rbp, Jacqueline Rose e Adrienne Harris, que tratam da questão de gênero e do movimento #MeToo margeando a questão do feminino.

Descobrimos que o número sobre o feminino estava praticamente pronto e poderia, pela primeira vez, ser disponibilizado de modo digital para todos os colegas de língua portuguesa que fossem ao congresso em Londres, no mês de julho. Assim, mudamos o cronograma, e este número sobre o fe­minino vai a Londres. Todos os inscritos no congresso da ipa receberão este número em versão digital antes de chegarem ao evento. Essa é uma forma de a revista se fazer presente e colaborar com os colegas brasileiros e de outros países de língua portuguesa.

Dos bastidores do número ao tema

Feminino, outras reflexões

A problemática do feminino é um tema polêmico na teoria freudiana. A realidade histórica vem exigindo da psicanálise que repense o seu aporte teórico para se aproximar dos acontecimentos que a clínica, a cultura e o social vêm sinalizando, a partir de mudanças que desafiam o cotidiano dos analistas ocidentais.

O movimento feminista, o movimento de gênero lgbttq+ (Martins, 2019), o movimento #MeToo e os avanços da reprodução assistida interpelam as ciências humanas, a medicina e a psicanálise sobre as vertiginosas mudan­ças em curso, sejam elas psíquicas, corporais, culturais ou sociais, com o res­pectivo impacto psíquico que, passo a passo, observamos adentrar os nossos consultórios, as instituições públicas de saúde mental ou o que passamos a denominar psicanálise a céu aberto (Khouri & Leite Netto, 2016).

As diversas abordagens psicanalíticas de atendimento clínico – em instituições, a céu aberto, em grupos, em família e casal, com adolescentes, com crianças, família-bebê, e individual – vêm investigando, psicanaliticamente, as novas configurações parentais (Ribeiro, 2016), as questões de gênero, a identi­dade, a identidade sexual, as diferenças sexuais e a relação masculino-feminino. Podemos dizer que há muita pesquisa no campo da psicanálise, motivo pelo qual abrimos um espaço na rbp para projetos com novas abordagens psicana­líticas e pesquisas, de modo que possam ser conhecidos e divulgados em nossa comunidade científica.

Em momentos de torção de eixos paradigmáticos ou de corte episte­mológico de saberes, devemos reconhecer que o esforço da psicanálise em romper preconceitos quanto ao seu modus operandi, procurando aprofundar o estudo do seu método e da sua formação de analistas, bem como incluir novos enquadres e técnicas clínicas, de fato nos prepara e nos instrumentaliza de maneira mais sólida para a investigação e a compreensão das diferentes dinâmicas de sofrimento, que o mal-estar na cultura insiste em denunciar. Como ressalta o psicanalista Fernando Urribarri,

o enquadre, com o aprofundamento da compreensão de sua função metodológica (à la Laplanche), torna-se um operador clínico central e abre-se a variações fun­cionais antes interditadas pela dogmática. O que importa, no novo modelo, é o en­quadre interno do analista, conforme proposto por Green, e não mais sua redução a um conceito material (conjunto de regras). (2012, p. 57)

É importante salientar que a psicanálise, enquanto campo de conheci­mento da psique humana, tem como função ética e social fazer face às mudan­ças e aos sofrimentos que uma nova era apresenta. Dizendo de outro modo, precisa-se de escuta, observação, investigação, reflexão e teorização para con­tribuir com as indagações, as angústias e os sofrimentos que a humanidade nos traz, de forma universal ou singular.

A psicanálise esteve na vanguarda, pela primeira vez, quando Freud ousou falar da importância da sexualidade humana antes que a própria cultura e a ciência pudessem formalizar algum tipo de reflexão mais organi­zada e com sentido sobre o tema. Outras vezes, porém, somos interpelados pelas vanguardas culturais e sociais a dar a nossa contribuição e repensar os nossos conceitos em função do que já está acontecendo em muitas sociedades no mundo. São desafios que exigem coragem intelectual, liberdade de pensa­mento e ética dos psicanalistas para ir além do que nos apresentam a cultura e o social.

Aos habituais leitores da RBP e aos nossos colegas de outros países de língua portuguesa, desejamos a todos uma boa leitura!

 

Referências

Khouri, M. G. & Leite Netto, O. F. (2016). Psicanálise a céu aberto. Jornal de Psicanálise, 49(91), 91-96.

Martins, E. S. T. (2019, 28 de junho). lgbtq+ Etcetera: da Consolação à República. Observatório Psicanalítico, 110. Recuperado em 2 jul. 2019, de www.febrapsi.org/publicacoes/ observatorio/observatorio-psicanalitico-1102019/.

Ribeiro, M. F. R. (2016). Reflexões sobre conjugabilidade e parentalidade: um caleidoscópio de constituições familiares. Jornal de Psicanálise, 49(91), 97-109.

Urribarri, F. (2012). O pensamento clínico contemporâneo: uma visão histórica das mudanças no trabalho do analista. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(3), 47-64.

Entrevista

Diálogo

A partir de sua experiência anterior com os temas trans e assédio sexual, a autora argumenta que o diálogo com a psicanálise sobre essas questões controversas e complexas de nosso tempo é tão desafiador quanto urgente. O que acontece quando tentamos introduzir o conceito de inconsciente na realidade de nossa vida política? Ou então quando reconhecemos o lugar do inconsciente nas identidades públicas que encorajamos, habitamos e defendemos? Ambas as questões, trans e assédio, nos confrontam com a questão da justiça social. O papel da psicanálise é sempre o de alertar sobre nossos sonhos de um mundo melhor ou talvez ela esteja bem no centro de nossa luta para alcançá-los?
Palavras-chave: assédio sexual, abuso, trans, diferença sexual, histeria

Este estudo examina as implicações da fluidez de gênero e da permanência de gênero para fins de experiência clínica e social. Consideram-se as crises de desenvolvimento em torno da separação tanto para desenvolvimento masculino quanto para o feminino. Teorias de desenvolvimento, teoria de sistemas dinâmicos não lineares e interseccionalidade são propostas como modelos úteis, uma vez que contemplam a identificação no desenvolvimento.
Palavras-chave: fluidez, interseccionalidade, dinâmicas não lineares, melancolia, masculinidade, disfarce

Feminino, outras reflexões

O feminino chama representações plurais entre o ideal maternal e a sexualidade que enfrentam destinos pulsionais singulares. Estes últimos põem em evidência as ligações entre identificações e perda, através dos fantasmas de sedução e das características das escolhas de objeto. Dois estudos clínicos demonstram, na dinâmica da transferência, as relações existentes entre histeria, masoquismo e melancolia.
Palavras-chave: psicanálise, feminino plural, histeria, masoquismo, melancolia

Diante dos impasses teórico-clínicos sobre o feminino e sobre as mulheres no campo psicanalítico, são abordadas lógicas não dualistas para enfocar a polaridade masculino/feminino, em mulheres e homens. Propõe-se ir além do conceito de uma essência feminina, própria do binarismo masculino/feminino, e pensar essa categoria em tramas multideterminadas (lógicas pós-binárias).
Palavras-chave: psicanálise, feminino, polaridade masculino-feminino, desconstrução do “feminino”

Freud, inventor de um método revolucionário de investigação que derrubou muitas visões tradicionais, formulou uma teoria conservadora sobre a feminilidade. Deixando de lado a equação pessoal de Freud, o autor explora os fatores intra-teóricos que podem tê-lo desencaminhado e adverte contra sua persistência no pensamento psicanalítico de hoje.
Palavras-chave: psicanálise, feminino, teoria freudiana da feminilidade, teoria infantil da sexualidade

O artigo defende dois pontos de vista principais: analisa a contribuição de um bebê para o feminino, de acordo com noções psicanalíticas ocidentais, para tentar alinhar a psicanálise com a clínica da saúde mental de bebês, ligar esses pontos de vista ao dos estudos sobre o bebê (e da neurociência), vincular a psicanálise às ciências afins e ilustrar a abordagem intersubjetiva em psicoterapia breve perinatal pais-bebê.
Palavras-chave: psicanálise, bebê, feminino, psicoterapia breve perinatal, saúde mental de bebês

Interface

São complexas e mesmo contraditórias as relações entre a psicanálise e as neurociências. O desenvolvimento dessas duas áreas do saber eventualmente as tem aproximado e muitas vezes as tem distanciado. Neste trabalho, pretendemos apresentar e discutir um modelo trazido da neuropsiquiatria, “importado” para a aplicação no campo psicanalítico, mais especificamente para a investigação da gênese dos sintomas psicossomáticos. Após essa apresentação, discutiremos algumas das implicações metapsicológicas envolvidas nessa aproximação. Para tanto, confrontaremos o modelo de Marková e Berrios com o célebre modelo do aparelho mental descrito por Freud em O ego e o id, visando reapresentar o modelo e torná-lo mais útil para a reflexão dos psicanalistas quanto às inúmeras problemáticas que cercam o dilema da relação mente-corpo, ou mente-cérebro, questão de fundo na interlocução da psicanálise com as neurociências.
Palavras-chave: psicanálise, neurociências, pulsão, psicossomática, psicossoma

Outras palavras

“O ódio na contratransferência” é um dos textos fundamentais de Winnicott e um dos mais lidos na história do movimento psicanalítico. Pouco se conhece, entretanto, de seus antecedentes e de seu ressurgimento na clínica desse analista, de seu contexto e de suas implicações. Este artigo visa a esclarecê-los, mostrando como o ódio se atualiza no ato interpretativo, quando analista e paciente se indiferenciam.
Palavras-chave: ódio, interpretação, identidade, gênero

Uma observação das narrativas sobre a história da histeria revela que nem sempre aqueles que as elaboraram levaram em consideração o aspecto fundamentalmente historiográfico da proposta, tomando inferências como se fossem fatos históricos. Esse deslize originou narrativas que não deveriam ser classificadas como história, mas, mais apropriadamente, como mitologias. Com frequência, a trajetória da histeria começa na medicina egípcia, segue em um continuum por Hipócrates, pelas bruxas da Idade Média, pelos vapores do Iluminismo, até chegar à Salpêtrière, a Charcot e, em seguida, a Freud. Porém, do ponto de vista historiográfico (e evitando o anacronismo), esse curso pode não ser tão seguro. O artigo revê essa trajetória e propõe que a história da histeria implicaria dois estágios, separando-se a histeria doença do útero da histeria neurose. Uma ponte entre as duas concepções teria sido estabelecida por Thomas Sydenham, em 1682, no Epistolary discourse to the learned Dr. William Cole.
Palavras-chave: história da histeria, Thomas Sydenham, teorias uterinas, caráter histérico

Uma carta escrita por Winnicott a Bion em 1955 nos serviu de estímulo para colocar os autores em diálogo sobre dois temas levantados por Winnicott. O primeiro tema critica os efeitos do kleinismo nos analistas; o segundo discute o papel do ambiente e da interpretação no trabalho com psicóticos. Embora distintos, esses temas compartilham uma mesma questão, tratada por ambos os autores: o problema da comunicação na análise, e entre os analistas na transmissão da psicanálise. Considerando a questão da comunicação no contexto em que essa carta foi escrita, realizamos o entrecruzamento de textos de Bion e Winnicott para expor uma possibilidade de diálogo sobre o papel do grupo na transmissão psicanalítica e seus efeitos na formação. Igualmente, evidenciamos como poderiam ter debatido a clínica da psicose na década de 1950. Não há registro de resposta de Bion a Winnicott e eles pouco se mencionam. Porém, essa leitura nos permite mostrar como eles teriam se contraposto e respondido um ao outro.
Palavras-chave: formação psicanalítica, kleinismo, grupo, identificação projetiva, psicose, interpretação

O autor detém-se numa particularidade da escrita de Jean Genet, conforme a perspectiva crítica orientada por Sartre em sua abordagem psicanalítico-existencial da biografia do autor em cotejo com a obra literária que ele produziu, para distinguir em seu texto o que é de natureza agressiva, destrutiva ou odiosa, indicando os tempos, usos e destinos de cada impulso/afeto, na medida em que são instrumentalizados literariamente a fim de que o romancista aceda ao seu propósito maior: o de enredar o leitor na teia de seus enunciados pervertizantes e desdiferenciadores, que vão compor o artificio a que o autor do presente estudo propõe denominar dispositivo estilístico de captura.
Palavras-chave: ficção, confissão, agressividade, destrutividade, estilística perversa, dispositivo de captura, erotização do ódio, psicanálise existencial

História da psicanálise

O descobrimento de manuscritos inéditos de Jean-Martin Charcot no Hospital da Pitié-Salpêtrière, em Paris, é apresentado a partir da pulsão epistemofílica da pesquisadora e dos bibliotecários da Biblioteca Charcot, caraterística da sexualidade infantil, fundamental para a pesquisa. A transcrição, tradução e escrita do caso é analisada com base nos conceitos freudianos de transferência e sexualidade e na relação transferencial da pesquisadora com Freud e Charcot. O caminho investigativo feito por Charcot envolve a histeria e acontecimentos traumáticos como hipótese etiológica da esclerose múltipla. O caminho feito pela paciente acompanhada por Charcot, marcado pela escrita, também é atravessado pela transferência e pela sexualidade. Os sintomas no corpo de Joséphine Leruth, diagnosticada com esclerose múltipla, apresentam melhora em razão da relação transferencial que foi estabelecendo com Charcot.
Palavras-chave: pesquisa, escrita, transferência, sexualidade

Projetos e pesquisas

A parceria SMED-SPPA, que há mais de 12 anos trabalha na disponibilização e aplicação do conhecimento psicanalítico para a formação continuada de educadores da educação infantil, constituiu um grupo de pesquisa interinstitucional e interdisciplinar. O objetivo desta investigação, fruto desse grupo de pesquisa, é estudar o trabalho realizado com grupos de educadores, assessores pedagógicos e psicanalistas, que em ciclos de oito encontros conversam processualmente sobre graves problemas vividos no dia a dia desses educadores, como violência extrema nas comunidades em que se situam as escolas e situações de abuso de crianças. Pretende-se, através desta pesquisa, estudar o impacto de tal intervenção (rodas de conversa SMED-SPPA) para os sujeitos participantes, sejam eles educadores, assessores pedagógicos ou psicanalistas, nesse contexto específico, que é o de conversar e pensar, de forma articulada, estruturada e processual, sobre situações traumáticas vividas em sala de aula pelos educadores presentes nas reuniões.
Palavras-chave: rodas de conversa, educação, psicanálise, desamparo, campo intersubjetivo

Resenhas