Carta-convite. Psicanálise e ciência

da Revista Brasileira de Psicanálise

Orientação aos colaboradores |

Carta-convite

Psicanálise e ciência

 

Tudo o que dizemos ser real é feito de coisas que não podem ser consideradas reais. Se a mecânica quântica não lhe tiver chocado profundamente, você ainda não a compreendeu.

NIELS BOHR

 

No nível quântico, átomos, elétrons, múons, glúons, quarks, neutrinos, bósons não se assemelham a qualquer coisa que possa ser percebida como “real” no campo dos sentidos.

Em recente evento acontecido no auditório da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em homenagem ao colega Antônio Muniz de Rezende, falecido há poucos meses, ouvimos um impactante testemunho da psicanalista Alicia Lisondo, analista didata da SBPSP e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCAMP). Há alguns anos, ela sofreu um acidente que a deixou cadeirante. Internada no Hospital Albert Einstein de São Paulo, e enquanto tentava se recompor física e psiquicamente do impacto, solicitou à diretoria do Einstein permissão para ser atendida por outra colega psicanalista. Sua surpresa e revolta ocorreram por ter o pedido negado, porque essa instituição não reconhecia a psicanálise como ciência e, portanto, não autorizava que ela fosse atendida por uma colega. Chocada e indignada, insistiu que lhe fosse permitido o atendimento requisitado. Queriam anestesiá-la com medicamentos e procuravam formas para que parasse de chorar e se deprimir. Ela retrucava que era necessário respeitar sua tristeza e choro. Empurraram-lhe um atendimento com uma psicóloga cognitivo-comportamental. Por falta de opção, chegou a aceitar esse atendimento, mas logo deixou claro que não lhe servia e que não queria aquilo de forma alguma. A renitência do hospital continuou, e ela precisava permanecer lá até ter condições físicas para sair. Foi somente com o auxílio de uma carta do professor Rezende – junto com suas mais relevantes credenciais acadêmicas –, encaminhada à diretoria do hospital, na qual apresentou uma longa e fundamentada argumentação sobre o tipo de ciência que seria a psicanálise, que a situação se resolveu. Assim, aliviada, Alicia finalmente viu entrar em seu quarto a colega Izelinda Barros.

Bion observa o seguinte:

 

Em suma, a matemática deve ser considerada pelo psicanalista como uma das classes limitantes que pertencem à psicanálise, na medida em que tenta ser um sistema coerente de conceitos, e em particular como um dos métodos pelos quais os sistemas esquizoparanoide e depressivo são postos em relacionamento dinâmico entre si e, por conseguinte, como um aspecto dos fenômenos mentais envolvidos na realização do desenvolvimento mental, facilitando esse relacionamento dinâmico. Portanto, será percebido, de um ponto de vista psicanalítico, que a matemática não pertence ao domínio da ontologia nem tampouco ao da epistemologia, mas sim àquela classe de funcionamento mental que, desde a transição da posição esquizoparanoide para a posição depressiva, e vice-versa, é essencial para o desenvolvimento mental, é essencial para a própria sanidade. Isso não é para menosprezar a matemática, mas para mostrar quão falaciosa é a visão de que a importância preeminente em qualquer esfera, por mais importante que seja, confere algum significado universalmente igual em todas – uma falácia que tende a fazer alguns observadores suporem que a falha em produzir cálculos que representem o sistema dedutivo da biologia, e em particular da psicanálise, é uma necessária condenação do campo para o qual não existem cálculos. (1992, pp. 86-87)

 

É absurdo criticar um trabalho psicanalítico por considerá-lo “não científico”, tanto quanto criticá-lo por não ser “religioso” nem “artístico”. Não é nenhuma dessas coisas. Sua falha em não o ser é um criticismo, mas seu “sucesso” em ser qualquer um deles também não evitaria uma reprovação. A formulação crítica para a qual não há substituto é a de que “não é psicanálise”. (1970/1977, p. 62)

 

É possível cheirar, ver, medir, pesar, ouvir a ansiedade? Fotografar a inveja? Radiografar o amor, o ciúme, a inveja, o ódio, a rivalidade? Na prática, o que podemos observar são condutas, atitudes, falas, reações químicas e fisiológicas das quais um bom observador pode inferir esses sentimentos, essas emoções, que propriamente não estão no campo observável dos sentidos. Não há como registrá-los por meio de equipamentos. Mesmo as pesquisas neurofisiológicas mais avançadas, com tomografias e ressonâncias magnéticas, não conseguem, apesar das tentativas, transpor aquilo que o equipamento registra para a emoção efetivamente vivida. Afirmações nesse sentido são, querendo ou não, inferências. Pode-se tentar negar a existência desse mundo subjetivo e “invisível”, ou desqualificar sua importância. Alguém, contudo, pode sinceramente negar a existência dessas coisas não palpáveis?

É possível igualmente negar as consequências dessas subjetividades na história de vida das pessoas, ou ainda de grupos sociais ou nações inteiras? O que faz com que pessoas sigam cegamente a suposta autoridade autoatribuída por um indivíduo, desconsiderando tudo aquilo que a experiência põe diante de seus olhos ou do conjunto de seus sentidos? Na maioria das vezes, as pessoas que agem assim nem percebem que se comportam dessa maneira, e muito menos aquilo que na sua subjetividade as leva a operar dessa forma.

Mesmo nas ciências ditas exatas, a crença em uma observação objetiva já vem sendo questionada, pois os físicos se deram conta de que a presença do observador e do equipamento produzido para a investigação já altera o que é observado. Qualquer um de nós tem a experiência de tirar fotografias de viagens e perceber, ao olhá-las, que não refletem a experiência efetivamente vivida quando foram feitas. A suposta objetividade da fotografia ou mesmo dos mais sofisticados exames laboratoriais se evidencia como uma falácia ao constatarmos que o que foi registrado depende do equipamento utilizado, do ângulo escolhido pelo fotógrafo ou pelo examinador, dos filtros usados, daquilo que o equipamento é capaz de registrar ou não. Quando o equipamento digital surgiu, muitos músicos se recusaram a usá-lo para gravar sinfonias ou congêneres, porque não reconheciam nos sons reproduzidos aquilo que tocavam ao vivo ou nos equipamentos analógicos com que estavam habituados. O tempo e o uso os levaram a deixar de notar a diferença ou a se incomodar (muito) com ela. Sofisticados exames laboratoriais não impedem que diferentes especialistas os interpretem de modos discrepantes e proponham abordagens diversas.

A crença na verdade objetiva daquilo que é mensurado esquece que os equipamentos são produzidos conforme as capacidades de observação humana, o que é muito diverso de a realidade se enquadrar dentro do espectro da percepção humana, por mais magnificada que seja. A observação com os sentidos é fundamental e imprescindível, mas a realidade está longe de poder ser reduzida a ela, e sua interpretação está sempre sujeita à subjetividade.

Qual o diálogo possível entre Psicanálise e Ciência? De que natureza são as evidências que extraímos de nosso cotidiano clínico – e empírico – e que sustentam nosso saber teórico e nossa prática clínica?

Convidamos os colegas a submeterem seus artigos à RBP, que terá em seu próximo número essa temática. Os trabalhos deverão ser entregues respeitando às normas para publicação do periódico, disponíveis no site www.rbp.org.br. Lembramos a todos que um novo artigo de um mesmo autor só poderá ser considerado para edição após um ano da publicação do trabalho anterior. O prazo para o recebimento de artigos vai até 20 de junho de 2024.

 

Referências

Bion, W. R. (1977). Attention and interpretation. In W. R. Bion, Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. Jason Aronson. (Trabalho original publicado em 1970)

Bion, W. R. (1992). Cogitations. Karnac.

 

Claudio Castelo Filho

Editor

 

(Com a colaboração de Mariana Ali Mies)