Editorias e Resenhas

O racismo e o negro no Brasil

O racismo e o negro no Brasil
Questões para a psicanálise

Organizadoras: Noemi Moritz Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Curi Abud
Editora: Perspectiva, São Paulo, 2017, 302 p.
Resenhado por: Magda Guimarães Khouri (1)

O livro O racismo e o negro no Brasil é uma abertura fundamental para um dos temas controversos de nossa história, apresentando reflexões in¬dispensáveis em um país que ainda pouco toca nas experiências vividas na colonização e na escravatura. Impressiona como passamos distante do quão devastadora essa época foi para nossa sociedade, com um conhecimento superficial nas escolas e uma produção cultural inibida, indicando haver um longo trabalho de pesquisa e elaboração a ser feito, individual e coletivamente.
Dados atuais revelam a magnitude do fenômeno: 45% dos escravos conduzidos à América vieram ao Brasil; 5,5 milhões de negros foram trazidos à força para o país, dos quais 12% nem conseguiram desembarcar – mais de 660 mil morreram antes do fim da viagem. Outro fato assustador é que, segundo registros, até 1841 a proporção de crianças nos navios era de 7,6%; em contrapartida, nos 15 anos finais do período de tráfico, esse índice saltou para 59,5% (Manenti, 2015).
Quanto às histórias singulares da época da escravidão, vemos que relatos permanecem quase invisíveis. A biografia daqueles que viveram a violência do aprisionamento, arrancados de sua terra, são narrativas que vêm sendo reconstituídas lentamente por artistas, cineastas, jornalistas, escritores e pesquisadores de várias áreas das ciências humanas. Há muito a explorar.
Colaborando de forma pungente com a quebra do silêncio em relação ao racismo, este livro se encaminha para a aliança indissolúvel entre política e ética, como escreve a jornalista Rosane Borges no prefácio. O texto de Borges é um excelente guia, que engaja o leitor na intensidade do tema, presente até hoje em nosso tecido social. Tânia Corghi Veríssimo, fazendo referência a Renato Janine Ribeiro, diz: “O Brasil é um país traumatizado, que jamais ajustou as contas com suas dores terríveis, obscenas, da colonização e da escravatura” (p. 239).
A partir de experiências vividas no grupo e reflexões do segundo ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, nasceu o evento O Racismo e o Negro no Brasil: Questões para a Psicanálise, promovido em 2012 pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, evento que deu origem a este livro.
Noemi Kon, uma das organizadoras do volume, apresenta a força do percurso que levou a criar esse projeto sobre o racismo à brasileira. Recorre às contribuições de Freud quanto à intolerância antissemita na Europa, lembrando que o autor não assumiu o lugar de vítima, mas conseguiu transformar violência e morte em vida. Daí surge uma pergunta norteadora de todo o debate: “Teríamos também a capacidade de fazer o mesmo ao refletirmos sobre as consequências geradas pelo racismo antinegro no Brasil?” (p. 22).
Para um projeto de tal envergadura, os organizadores do encontro abriram um diálogo com colegas de outros campos do saber, que há muito mais tempo se dedicavam ao tema, e se utilizaram da técnica do sociodrama, com o objetivo de sensibilizar para uma questão tão enraizada na conformação subjetiva de todos nós. Como descreve Kon, essa experiência foi de grande impacto e alta temperatura, “evidenciando a humilhação, a solidão, o absurdo e a impotência que a discriminação e a exclusão nos impingem, tornando também manifestas a violência e a ignorância que sustentam o preconceito” (pp. 26-27).
Segundo a autora, os efeitos do racismo antinegro no Brasil não costumam ser pauta dos estudos psicanalíticos. No entanto, se existe a ideia de desenvolver uma psicanálise nativa, é preciso desenterrar, tirar do lugar da recusa e do recalque as marcas que constituíram nossa nação.
Nessa direção, de ponta a ponta, os textos põem em debate a especificidade do racismo à brasileira, que se dá pela negação do próprio preconceito. O mito da democracia racial brasileira dificulta o reconhecimento de como opera o racismo entre nós. É do cerne dessa questão que o antropólogo Kabengele Munanga trata em “As ambiguidades do racismo à brasileira”, abrindo a primeira parte do livro, “Negritude em cena”.
Munanga aborda a complexidade das mutações pelas quais o racismo passa em suas formas sociais, culturais e discursivas. Apesar da conscientização ocorrida em vários momentos, as crenças não recuam, pois são movidas por outra racionalidade. O autor caracteriza o racismo brasileiro como difuso, evasivo, camuflado, silenciado, contudo eficiente em seus objetivos:

No Brasil, ao contrário, o racismo é implícito, de fato, e nunca institucionalizado ou oficializado com base em princípios racialistas de pureza de sangue, de superioridade ou de inferioridade raciais. Por causa da ausência de leis segregacionistas, os brasileiros não se consideram racistas quando se comparam aos norte- americanos, aos sul-africanos e aos alemães nazistas. (p. 38)

Não é apenas por meio da estatística que se evidencia o abismo cultural e social dos negros brasileiros. Como escreve o autor, basta observar o cotidiano para perceber a invisibilidade dos afrodescendentes em cargos que exigem formação superior, assim como os comportamentos diários que revelam as vantagens reservadas à branquitude.
Em “Dessemelhanças e preconceitos”, a psicanalista Heidi Tabacof, a partir de uma experiência pessoal e do sociodrama, transita por uma complexa trama de diferenças e semelhanças entre o preconceito contra os judeus e o preconceito contra os negros, mostrando o quanto essas situações continuam sendo disruptivas, mobilizando conflitos latentes e uma dimensão que está além dos acordos racionais. Sustentar essas forças inconscientes é justamente em que consiste o trabalho da psicanálise.
Como forma de processar as vivências traumáticas, Tabacof enfatiza a necessidade de narrar e transmitir a dor e a glória. Nesse sentido, enquanto os judeus puderam produzir literatura, cinema, artes em geral, por fatores culturais e sociais de seu povo, os negros ainda não tiveram sua história suficiente¬mente representada no mundo contemporâneo. Seu texto é um convite a um trabalho coletivo que inclua a subjetividade, o corpo e os afetos transbordantes para a construção de novos discursos e novas práticas.
A segunda parte do livro, “Cor e inconsciente”, começa com a psicanalista Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi percorrendo os textos sociais de Freud. Grosso modo, ela mostra que cada formação coletiva gera seu alvo de violência e que é impossível eliminar os excessos eróticos e a agressividade que desestabilizam os vínculos. Essa impossibilidade direciona a moções agressivas para o “estrangeiro”, como forma de defesa do próprio grupo. A autora cita Jean-Bertrand Pontalis, o qual considera o racismo não uma rejeição radical ao outro, exclusivamente de intolerância à diferença, mas uma angústia mais primitiva diante do estranho, daquele que é parecido e diferente. De acordo com o autor, é muito mais perturbadora a imagem do semelhante, do duplo, em que há o encontro com traços excedentes ao eu que são radicalmente recusados na inscrição da própria identidade.
Nessa linha conceitual, Vannuchi observa que, mesmo passados mais de 100 anos do fim da escravidão, ainda há algo de estranho projetado nos brasileiros negros, sendo a ideologia do branqueamento uma das mais potentes formas de preconceito: “O crime perfeito se consuma justamente quando o negro tenta se branquear, o que no limite é a negação de si mesmo. Um desejo que deságua no desejo da própria extinção” (p. 67). As várias camadas que o livro apresenta sobre o tema vão desconstruindo qualquer tentativa de naturalização ou banalização do racismo brasileiro, além de convocar insistentemente a clínica psicanalítica a dirigir seu olhar ao sofrimento psíquico gerado por esse fenômeno.
Em “Racismo no Brasil: questões para psicanalistas brasileiros”, Maria Lúcia da Silva, psicanalista e ativista do Movimento Negro e do Movimento das Mulheres Negras, expõe relatos de infância de pessoas que viveram cenas re¬correntes de humilhação, exclusão e discriminação, cujos efeitos podem surgir tempos depois sob a forma de sintomas, raramente associados a essas experiências anteriores. Como diz a autora, a “clínica vai nos informando” sobre diversas dificuldades produzidas, as quais muitas vezes impedem a convivência.
Colocar à prova suas competências; envergonhar-se ao entrar/de estar em determinados lugares por achar que “não é seu lugar”; conviver com um sentimento de não ter direito a ser, com a dificuldade de ocupar espaços de destaques etc., sempre se referindo a tais situações como ligadas à condição racial. (p. 87)
Considerando essas marcas inscritas na psique do negro, traduzidas for¬temente pelo desejo de “brancura”, a psicanalista Isildinha Baptista Nogueira desenvolve sua reflexão e se refere ao que chama de apartheid psíquico. Em seu texto, afirma que não é por meio de nosso sistema político que acontece a discriminação, já que o racismo é crime no Brasil. “Nós, os negros, vivemos uma segregação silenciosa, o que durante muito tempo funcionou como se tivéssemos um sentimento persecutório, uma vez que o preconceito era negado. Sentíamos uma perseguição sem razão” (p. 122).
Seria uma violência interpretar esse sintoma sem levar em conta a realidade sociocultural, tornando o exercício da psicanálise algo arbitrário, desvinculado de seu tempo. Por meio de uma escuta finíssima, a autora vai tecendo suas ideias sobre os sentidos que a cor negra/o corpo negro implicam no inconsciente. A meu ver, em alguns momentos se aproxima do que Janine Puget (2015) escreveu sobre o analista-testemunha, cujas funções no trabalho clínico incluem ajudar os analisandos vitimizados e passivos a transformar-se em sujeitos capazes de dar testemunho.
Sob o ponto de vista antropológico, a professora Lilia Moritz Schwarcz fundamenta com consistência uma ideia que percorre os artigos: o racismo é uma construção histórica e social, que no Brasil se dá principalmente na intimidade ou na delação alheia. Não se nega mais a existência do racismo, mas ele é sempre atribuído ao “outro”. Por meio da linguagem, a autora aprofunda as formas de racismo à brasileira, mostrando um detalhado estudo sobre como a demarcação de cor varia segundo o local, a hora e a circunstância.
Ampliando o tema, a psicóloga e pesquisadora das relações raciais no Brasil Fúlvia Rosemberg, falecida em 2015, compartilha a visão de que o racismo brasileiro opera simultaneamente no plano simbólico e no plano material: por um lado, pela ideologia que sustenta a superioridade natural dos brancos; por outro, pelo fato de a população negra não ter acesso aos mesmos recursos públicos que os brancos. Em sua marcante trajetória profissional, a autora ocupou-se muito de como os atores sociais vêm tratando os bebês e a infância, momento mais vulnerável à discriminação de cor.
Instigado pela análise de Rosemberg, José Moura Gonçalves Filho retoma a ideia de que o racismo brasileiro não se apresenta apenas em práticas interpessoais, mas está também cristalizado em instituições, ficando dessa forma mais automático e invisível, podendo funcionar por si só. Concentrando- se no tema da humilhação social, o autor pensa o racismo como um golpe prolongado. O cidadão negro sofre o golpe direto e o golpe antigo, contra seus ancestrais. O resultado disso pode se manifestar como uma angústia, por meio do sono, do pesadelo. A pessoa tende a viver o ataque como uma violência sem explicação. E esse ataque não se dirige somente a ela: a humilhação a um negro é sempre um ataque aos negros. Daí Gonçalves Filho ressaltar a importância de uma psicanálise que compreenda a história na subjetividade, pois, caso contrário, poderá transformar um devastador problema político em um problema individual.
A seguir, Moisés Rodrigues da Silva Júnior investiga a consolidação da crença da inferioridade negra. Ele faz uma análise histórica da escravidão e um estudo sobre os processos de identificação na psicanálise, chegando ao que muitos dos autores elaboram de diferentes formas: a experiência de intenso sofrimento psíquico produzida pelo racismo contribui radicalmente para o encolhimento do espaço interior.
No campo cinematográfico, em “Buscando baobás na aridez do asfalto: instaurando origens”, Miriam Chnaiderman, a partir do documentá¬rio Sobreviventes, que produziu com Reinaldo Pinheiro, tece um elaborado caminho metapsicológico para entender os processos do racismo e desemboca no encontro entre o cinema e a psicanálise: dar voz ao que está recalcado e encontrar formas de lidar com a língua do esquecimento, resgatando a língua materna.
No âmbito da literatura, o escritor Cuti questiona por que a palavra negro vem sendo deixada de lado e vários setores da sociedade têm aderido ao prefixo afro, que não incorpora o fenótipo cor escura, cabelo crespo, nariz largo e lábios carnudos. Além do fato de um branco poder ser afrodescendente, esse prefixo ainda pode se referir à cultura ingênua. O texto é quase um manifesto, que recoloca o uso positivado da palavra negro como forma de promover a superação do racismo e reforçar a identidade negra violenta¬da secularmente.
O trabalho da psicanalista Cristiane Curi Abud e da fotógrafa Luiza Sigulem abre a terceira parte do livro, “Desdobramentos”. De forma original, por meio de um grupo de psicoterapia de base psicanalítica que faz uso da fotografia como objeto mediador, as autoras analisam de que maneira a questão do racismo surge no enquadre grupal, dispositivo que cria condições para a pulsão ser posta em imagens e palavras. Já a psicóloga Tânia Corghi Veríssimo retoma a questão da negação do preconceito, concentrando-se na ideia de que o brasileiro recusa a própria realidade racista na tentativa de evitar um grande abalo narcísico.
Na última parte, “Vivências do racismo à brasileira: cenas do cotidiano”, o primeiro texto trata da intensa experiência do sociodrama, coordenado por Pedro Mascarenhas. Nessa vivência, evidenciaram-se as forças do pensamento escravo, o ódio paralisante e, ao longo do processo, cenas de criação coletiva. Por fim, a psicodramatista Maria Célia Malaquias recupera a história do projeto desta publicação pelo que emergiu no palco sociodramático sobre a complexa relação entre negros e brancos.
Por todos os capítulos são investigados os componentes básicos da ideologia racista brasileira: a negação do preconceito, o branqueamento e seus efeitos nos processos de identificação. O ideal de brancura se infiltra no desejo materno, criando uma das maiores dores na formação da identidade do negro: a negação do próprio corpo e o sentimento de invisibilidade do ser. Daí, como vários autores ressaltam, a importância do que há muitos anos os movimentos negros vêm imprimindo: a reafirmação da negritude em todas as suas dimensões.
Quem se aproxima ao tema do racismo não escapa do efeito perturbador que ele provoca. Em novembro de 2018, estive no 4.º Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa, em Cabo Verde, cujo tema foi Rotas da escravidão. Tal evento me confirmou ser essa uma questão que diz respeito a todos nós. Como diz Cuti, o racismo não é tema só de negro: “Os brancos estão envolvidos até o mais recôndito da alma” (p. 209).
A leitura deste livro, que apresenta uma psicanálise profundamente implicada com nosso passado e nosso presente, é fundamental para sensibilizar as futuras gerações.

Referências
Manenti, C. (2015, 13 de abril). Perto do fim da escravidão, 60% dos negros trazidos ao país eram crianças. uol. Recuperado em 16 mar. 2019, de noticias.uol.com.br/cotidiano/ ultimas-noticias/2015/04/13/perto-do-fim-da-escravidao-60-dos-negros-trazidos-ao-pais-eram-criancas.htm.
Puget, J. (2015). Subjetivación discontínua y psicoanálisis: incertidumbre y certezas. Buenos Aires: Lugar Editorial.

(1) Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Diretora de Atendimento à Comunidade da SBPSP (2017-2020)

Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 53, n. 1, 267-272 · 2019

9 de outubro de 2020