Editorias e Resenhas

Volume 57 nº 4 – 2023 | Phármakon

A coibição da descarga motora (da ação), que então se tornou necessária,
foi proporcionada através do processo do pensar, que se desenvolveu a partir da apresentação de ideias. O pensar foi dotado de características que tornavam possível ao aparelho mental tolerar uma tensão aumentada de estímulo,
enquanto o processo de descarga era adiado.
SIGMUND FREUD, “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”

A emoção à qual se deve chamar a atenção deveria ser óbvia para o analista, mas não percebida pelo paciente; uma emoção que está óbvia para o paciente é, usual¬mente, dolorosamente óbvia, e a evitação de dor desnecessária deve ser a meta do exercício da intuição psicanalítica. A capacidade de intuição do analista deveria habilitá-lo a demonstrar uma emoção antes que se torne dolorosamente óbvia. … Entre os elementos que buscamos deve haver um precursor de emoção, não a emo¬ção em si, salvo se ela for precursora de alguma outra emoção que não ela mesma.
WILFRED R. BION, Elements of psychoanalysis

O crescimento mental saudável parece depender da verdade do mesmo modo que o organismo vivo depende da comida. Se há falta de verdade ou ela é deficiente, a personalidade se deteriora.
WILFRED R. BION, Transformations

O vínculo entre uma mente e outra que leva à destruição de ambas é a mentira.
WILFRED R. BION, Attention and interpretation

 

Melanie Klein (1946/1975) propôs a teoria da identificação projeti­va como um modo de funcionamento da mente do bebê em que este, não podendo suportar vivências de privação e angústia persecutória para as quais não dispõe de equipamento físico e muito menos mental, como uma fantasia onipotente, fragmenta e expulsa as angústias e partes de si mesmo para fora, buscando algo em que possam ser depositadas. Se o alvo dessa expulsão for uma mãe (seio) capaz de acolher as vivências sentidas como venenosas dentro de si, ela poderá transformar isso que é vivido como tóxico e destrutivo em algo benéfico e assimilável. Bion, posteriormente, deu a essa capacidade do seio/mãe o nome de reverie, exercida por aquilo que denominou função alfa.

A tarefa do analista, na medida do possível e com um acompanhamento constante e minucioso, seria auxiliar seus pacientes a desenvolver o equipamen­to mental que teria ficado insuficientemente evoluído, de modo que possam lidar com experiências atuais e pretéritas vividas como venenosas e ameaças à sobrevivência por meio da conversa, da nomeação do que nunca teve represen­tação, como propôs Platão, considerando-se a obra de Freud um phármakon, como poderemos ver, neste número, no texto de Orlando Hardt Junior.

Essa capacidade do analista não se desenvolveria, contudo, sem uma grande expansão mental do próprio pretendente a analista, o que se dá em sua análise pessoal, que deveria ser muito longa, extensa e profunda, para que, ao se defrontar com seu próprio mundo primitivo e assustador, ficasse familia­rizado com ele e não fugisse do contato real com seu paciente, que procurará inoculá-lo com aquilo que não pode desintoxicar sozinho toda vez que vem a uma sessão, por mais civilizada que esta possa se apresentar na superfície. O analista, como o timoneiro Palinuro da Eneida (Virgílio, 19 a.C./2014), não deveria se deixar ludibriar pela aparência plácida da superfície do mar e tam­pouco por um céu estrelado e sem nuvens.

Já mencionei em outros lugares a experiência de duas pessoas conhe­cidas em passeios náuticos. Num deles, um grupo ficou revoltado com o bar­queiro por ele abortar o roteiro turístico em meio a um belíssimo dia de sol e com o mar tranquilo. Correu com o barco para uma ilha, a despeito dos violentos protestos que ouvia, e lá atracou. Mal isso aconteceu, o céu de bri­gadeiro escureceu, e uma violenta borrasca desabou sobre todos. O barqueiro viu o dilúvio no céu azul, como propõe Bion em seu conceito de premonição. Noutro passeio, uma tempestade se abateu sobre o saveiro de um grupo turís­tico, e todos os passageiros se desesperaram diante da fúria da natureza, salvo um, que permaneceu tranquilo, sentado num banco, até chegarem ao porto. Indagado pelos demais como manteve a fleugma quando todos se agoniavam, ele disse: “Estava observando o capitão no timão. Ele estava tranquilo. Quando ele se desesperasse, eu também ia perder o prumo”.

Os estimulantes artigos temáticos deste número abordam de maneira consistente a questão atual envolvendo psicanálise e ciência e a correlação entre psicanálise e psiquiatria. São de autoria de Orlando Hardt Junior, Rogerio Lerner, Estevam Vaz de Lima, Eunice Nishikawa, Cláudia Cristina Antonelli, João Paulo Consentino Solano e Decio Gurfinkel.

Neste número temos um brilhante artigo de Elias Mallet da Rocha Barros sobre a obra de Melanie Klein.

Para completar, temos o trabalho premiado pela Revista Brasileira de Psicanálise, de autoria de Roosevelt Cassorla, seguido pelos trabalhos de Maria Bernadete Amêndola Contart de Assis, Elenice Maria Zecchin Pereira Giannoni, Carolina Scoz e Gabriela Lara da Cruz Lucas Macedo, que receberam prêmios no 29º Congresso Brasileiro de Psicanálise da Febrapsi, ocorrido em novembro de 2023 em Campinas, São Paulo. Estão na ordem da qualificação de seus autores: analista didata, membro efetivo, membro associado e candidato (em algumas sociedades, chamado de membro filiado).

Estamos certos de que todos que passarem pelas páginas deste número sairão muito bem alimentados pelo phármakon de alta qualidade que são seus artigos.

 

Referências

Klein, M. (1975). Notes on some schizoid mechanisms. In M. Klein, The writings of Melanie Klein (Vol. 3, pp. 1-24). Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1946)

Virgílio. (2014). Eneida (C. A. Nunes, Trad.). Editora 34. (Trabalho original publicado em 19 a.C.)

4 de novembro de 2023