Autor: Thomas H. Ogden
Tradutora: Giovanna Del Grande da Silva
Editora: Karnac, Londres, 2015, 204 p.
Resenhado por: Maria Beatriz Simões Rouco (1)
É muito oportuna a tradução de mais um livro de Thomas H. Ogden, psicanalista norte-americano profundo conhecedor das teorias das relações objetais, com vasta experiência clínica com pacientes fronteiriços e psicóticos, e excelente escritor. Em A matriz da mente, ele se propõe a articular conceitos cunhados por Klein, Fairbairn, Bion e Winnicott, com o objetivo de valorizar suas contribuições, identificar seus impasses e superá-los a partir de uma perspectiva intersubjetivista. Ele adota essa perspectiva porque considera que esses autores não conseguiram solucionar a questão da alteridade, nem ultrapassar o campo do intrapsíquico como pretendiam, por terem restringido sua abordagem ao psiquismo individual. Com esse escopo articulador e superador, Ogden contribui de maneira criativa e instigante para o diálogo pós- -escolástico, que caracteriza o pensamento psicanalítico contemporâneo, e para a atividade clínica, já que ele descreve e exemplifica claramente os conceitos teóricos e os fenômenos psicopatológicos referidos por eles.
No primeiro capítulo, o autor apresenta sua proposta de diálogo psicanalítico, fundamentando-o na dialética de Hegel. Nesse modelo, a história humana evolui no sentido de realizar um ideal absoluto, movida pela tensão dialética que se estabelece entre indivíduos que competem entre si, buscando se impor como sujeitos e ser reconhecidos como tais. Nesse embate, eles necessariamente geram, preservam e negam mutuamente suas identidades. Da mesma forma,
no diálogo analítico (entre analista e analisando) e no discurso psicanalítico (entre os pensadores analíticos) cada ato de interpretação preserva a experiência ou ideia original, ao mesmo tempo que simultaneamente gera novos significados e compreensões acerca de si mesmo e dos outros. (p. 2)
É por isso que
uma das principais metas da psicanálise clínica é a de recuperar a experiência pessoal alienada, isolada do discurso intra e interpessoal, um processo que permite ao analisando reconhecer mais profundamente quem ele é e quem ele está se tornando. Nessa recuperação, o analisando torna-se mais vivo enquanto ser humano subjetivo e histórico. (p. 3)
No segundo capítulo, Ogden aborda e correlaciona os conceitos de instinto, fantasia e estrutura psicológica profunda. Entende que a tradição das relações objetais superou o pensamento freudiano ao compreender que o fim último da libido é o objeto (Fairbairn). Esse passo permitiu a Klein “explorar a teoria psicanalítica do instinto como uma teoria do significado” expresso como fantasia (p. 3). Porém, para atualizar esse conceito, Ogden tem que enfrentar os problemas heurísticos colocados pelo pensamento kleiniano: a herança filogenética de ideias; a explicação redundante de uma fantasia por outra; o bebê com capacidades cognitivas evoluídas.
Para tanto, Ogden, baseando-se no conceito de estrutura linguística profunda, de Chomsky, propõe o conceito de modo inato de organização da experiência, da conduta e da relação interpessoal. Dessa forma, assim como o aprendizado de uma língua é codeterminado pela estrutura linguística profunda e pela experiência linguística proporcionada por certo meio cultural, “a experiência real pode auxiliar no modo instintivo de organizar a experiência, porém não cria o modo pelo qual a experiência é interpretada” (p. 12).
Essa ferramenta conceitual é usada também para compreender os conceitos freudianos de conhecimento herdado, desenvolvimento psicossexual, fantasias primais e complexo de Édipo, e para interpretar o conceito de fantasia como “uma teoria de códigos organizadores inatos (associados com os instintos de vida e de morte) pelos quais a percepção é organizada e os significados são atrelados à experiência de um modo altamente determinado” (pp. 3-4).
O autor segue abordando a questão da
forma simbólica da atividade primitiva do fantasiar [considerando que] para o bebê não há dicotomia corpo e mente, mas uma experiência única de sugar e fantasiar … Experiência total que se torna gradualmente diferenciada em seus vários aspectos: movimentos corporais, sensações, imaginação, conhecimento e assim por diante [todos caracterizando formas de fantasiar e pensar sem palavras]. (p. 17)
O fato de Klein usar a voz passiva para descrevê-las sugere que ela as concebia como não subjetivas. Ogden entende que Bick, Bion, Meltzer, Segal e Tustin adotaram essa interpretação, já que
esses seguidores de Klein concebem os pensamentos, sentimentos e percepções do bebê como coisas-em-si, eventos que simplesmente ocorrem. O bebê não se vivencia como tendo um ponto de vista ou perspectiva. Não há bebê pensante ou intérprete de sua experiência. (p. 19)
Ogden admite o fato de que os kleinianos supõem um bebê com capacidades cognitivas desenvolvidas (distinguir interno e externo, representar a mãe em sua ausência, diferenciar-se de outras pessoas separando o self do não self) sem explicar como é que ele sai de seu solipsismo fantasioso nem como ele pode aprender com a experiência. Considera, porém, que o conceito de identificação projetiva possibilita a superação desse impasse, mas não como ele foi formulado por Klein e aprimorado por Bion, já que não basta a mãe mitigar ou metabolizar o conteúdo tóxico nela projetado e devolvê-lo beneficiado para o bebê, se nesse processo a receptividade dele permanecer inalterada. É então que Ogden recorre a Winnicott, acreditando que os conceitos de preocupação materna primária, estágio da ilusão e espaço potencial
podem ser entendidos como um desenvolvimento da noção de identificação projetiva como unidade e dualidade simultâneas (unidade e separação da mãe e do bebê), o que por sua vez cria um potencial para uma forma de experiência que é mais geradora do que a soma dos estados psicológicos individuais que contribuem nela. (p. 26)
Ogden dedica o terceiro capítulo a “A posição esquizoparanoide: o self como objeto”, primeira fase do desenvolvimento na qual predomina o que ele chama de isso-dade (p. 31), não só devido à prevalência dos impulsos instintivos, mas principalmente porque o bebê é vivido por sua experiência. “Pensamentos e sentimentos acontecem com o bebê, ao invés de serem pensados e sentidos por ele” (p. 32). É essa inconsciência de si que caracteriza o self-objeto como a-histórico, preso ao presente sem fim. Ameaçado pela ação do instinto de morte, o bebê se defende cindindo os aspectos ameaçadores e ameaçados de si e de seus objetos. Essa cisão produz indistinção entre símbolo e simbolizado e entre percepção e interpretação – formas de indistinção que caracterizam a experiência sensorial não mediada simbolicamente.
No quarto capítulo, Ogden descreve “A posição depressiva e o nascimento do sujeito histórico”. Esse novo estado emerge em tensão dialética com o anterior, gerando dois domínios da experiência que se criam, se preservam e se negam mutuamente. Sua característica é o sentimento de eu-dade: a experiência de estar pensando e sentindo seus próprios sentimentos. A identi‑ficação projetiva é o principal veículo dessa mudança de posição, pois é “a interação com a mãe que permite ao bebê modificar suas preconcepções instin tuais, aprender com a experiência” (p. 53), integrar o self e o objeto, e reduzir a ansiedade persecutória. A entrada na posição depressiva também se caracteriza pela capacidade de se preocupar com o outro e temer a perda do objeto amado (sobre o qual não se tem controle), sentir-se culpado com relação a ele, elaborar o luto pelas perdas sofridas e experimentar o sentimento de solidão. Infelizmente, é impossível detalhar a rica descrição teórico-clínica que Ogden nos apresenta nesse capítulo. Seus subtítulos, porém, sugerem o caminho percorrido por ele: “O manejo do perigo na posição depressiva”; “Inveja e ciúmes”; “A criação da história”; “A responsabilidade pela ação na posição depressiva”; “A defesa maníaca”; “A conquista da ambivalência”; e “A posição depressiva e o complexo de Édipo”.
No quinto capítulo, Ogden exemplifica com vinhetas clínicas, longas e bem detalhadas, a experiência de mover-se “entre a posição esquizoparanoide e a posição depressiva”, com o objetivo de “aprimorar o trabalho clínico de terapeutas não kleinianos” (p. 75). Ele também propõe uma classificação psicopatológica adotando como critério a preservação ou a perda do significado da experiência nos estados de ser: depressivos (significados pessoais e simbólicos), esquizoparanoides (significados impessoais tempestuosos) e de não experiência (doenças psicossomáticas, alexitimia e a não experiência esquizofrênica). Usando esse critério, descreve e exemplifica a fenomenologia clínica e a técnica analítica a partir dos subtítulos: “Regressão aguda à posição esquizoparanoide”; “Uma incursão à posição depressiva”; “A criação da realidade psíquica”; “Transferência e contratransferência em nível edípico”; e “Criação da distância reflexiva”.
No sexto capítulo, sobre as “Relações objetais internas”, Ogden apresenta a origem e evolução desse conceito, salienta as contribuições de seus mentores e sumaria suas principais teses, mostrando como elas transformam as concepções de identificação projetiva, resistência, transferência e contratransferência. Estes são os conceitos kleinianos fundamentais: as relações objetais internas são basicamente inconscientes e estabelecem um “interjogo dinâmico com a experiência interpessoal atual”; “a internalização de um relacionamento objetal necessariamente envolve a clivagem do ego em partes, que, quando reprimidas, constituem objetos internos”; “os objetos internos são suborganizações dinamicamente inconscientes do ego, capazes de gerar significado e experiência, isto é, capazes de pensamento, sentimento e percepção”;
elas incluem (1) suborganizações do self, isto é, aspectos do ego nos quais a pessoa vivencia mais plenamente suas ideias e sentimentos como próprios, e (2) suborganizações de objeto, nas quais os sentimentos são gerados pela identificação de um aspecto do ego com o objeto. Essa identificação com o objeto é tão completa que o sentido original de self do indivíduo é quase que inteiramente perdido. (pp. 97-98)
No sétimo capítulo, Ogden divide a teoria da integração de Winnicott em três fases que implicam três formas de dependência materna. Na matriz mãe-bebê, este depende do holding e da preocupação materna primária para viver a ilusão do objeto subjetivo. Na fase transicional, o bebê depende da capacidade dela de favorecer o desmame não traumático para se conectar à realidade. Isso é conquistado pela experiência de brincar na presença da mãe -ambiente, mas na ausência da mãe-objeto. Esta emerge na experiência do bebê na fase de relacionamento com objetos inteiros, na qual ele depende da capacidade dela de sobreviver a seus ataques, pois nessa fase “o bebê dá andamento a um processo de renúncia (em fantasia inconsciente, ‘destruição’) do objeto-mãe-interno onipotente, abrindo espaço para a descoberta do objeto- -mãe-externo real” (p. 148).
Ogden, porém, questiona o conceito de objeto subjetivo, preferindo denominá-lo de a ilusão da unicidade invisível, porque acredita ser confusa a ideia de que o bebê cria o seio, já que ela envolve implicitamente a consciência de alteridade. “No princípio a ilusão criada pela mãe não é uma ilusão do poder onipotente do bebê de criar o que for necessário: pelo contrário, a ilusão é a de que a necessidade não existe” (p. 129). Assim, a criação do seio não é percebida, pois a satisfação da necessidade impede o despontar do desejo, e “o bebê sem desejo não é sujeito nem objeto: ainda não há um bebê” (p. 129).
No oitavo capítulo, “O espaço potencial”, Ogden se propõe a esclarecer esse conceito, que segundo ele permanece parcialmente enigmático. Sua proposta é explorar as implicações dele para o “desenvolvimento normal e patológico da capacidade de simbolização e de subjetividade” (p. 153) a fim de compreender a formação dessa última. Para ele, o que caracteriza a subjetividade é “a capacidade de autoconsciência variando da autorreflexão intencional (uma conquista muito tardia) ao sentido mais discreto de eu-dade” (p. 157), a qual depende da diferenciação entre símbolo, simbolizado e sujeito intérprete. É a emergência do sujeito que permite a ele desejar, e é o desejo de desconhecer um aspecto de seu sistema de significados que produz a diferenciação entre os domínios consciente e inconsciente da experiência. Sem diferença não há significado. “Desta perspectiva, a mente inconsciente em si mesma não constitui um sistema de significados. Não há negações e contradições no inconsciente, simplesmente a coexistência estática de opostos, que é o marco do pensamento no processo primário” (p. 158). Para Ogden, a subjetividade da unidade mãe-bebê é apenas um potencial mantido pelo aspecto da mãe exterior a essa unidade. Dessa forma, se dentro da unidade mãe-bebê não há tal coisa como um bebê, para Ogden
também não há tal coisa como uma mãe … A mãe existe somente na forma de ambiente invisível de holding, no qual há uma satisfação das necessidades do bebê de uma forma tão discreta que o bebê não vivencia suas necessidades como necessidades. (p. 158)
Depois de reformular o conceito de espaço potencial, Ogden caracteriza suas psicopatologias: quando a dialética realidade/fantasia despenca para o lado da fantasia ou para o lado da realidade, quando há cisão entre realidade e fantasia, e quando, devido a um trauma insuportável, não são mais geradas nem fantasia nem realidade. Depois, ele distingue a identificação projetiva da empatia e a considera oposta ao brincar, pois ela caracteriza o rompimento do processo dialético entre realidade subjetiva e realidade objetiva e o congelamento da atribuição de significado à experiência.
No último capítulo, Ogden trabalha duas formas do espaço potencial: o espaço onírico e o espaço analítico. Ele propõe seu conceito de espaço onírico afirmando que, antes de Winnicott, a psicanálise se ocupou do simbolismo do sonho, mas não do sonhar, e sugerindo que
a apresentação onírica deve ser submetida a uma transformação em um espaço onírico para que o sonhar ocorra … Um sonho será visto aqui como uma comunicação interna envolvendo a construção de um processo primário gerado por um aspecto do self que deve ser percebido, compreendido e vivenciado por outro aspecto do self, [pois] sonhar envolve a capacidade de transformar a coexistência estática de opostos, vista no processo de pensamento primário, em um relacionamento dialético com opostos, onde significados e experiência do sonho são gerados. (p. 176)
Finalmente, Ogden propõe que o espaço analítico é uma criação intersubjetiva, gerada por paciente e terapeuta, no qual é possível brincar com os significados, considerá-los, entendê-los. Ele mostra como a identificação projetiva do paciente e as afirmações de fatos do analista transtornam esse processo, inibindo o domínio de significados e experiências pessoais.
Concluindo, uma proposta articuladora como essa sempre suscita questões e críticas de quem adota o pensamento deste ou daquele pioneiro da psicanálise, cujos conceitos foram apropriados e transformados pelo autor. Na falta de espaço para apontar e trabalhar algumas dessas questões, terminarei esta resenha mencionando apenas uma que me parece fundamental: os limites impostos a essa articulação inovadora pela filosofia hegeliana adotada pelo autor. Essa dialética idealista – que concebe o sujeito e a sociedade evoluindo inexoravelmente, por meio do conflito entre senhor e escravo, para a realização de uma síntese absoluta final – aparentemente poderia adequar-se à suposição de Freud de que o ego poderia assimilar o id sob a regência do princípio de realidade ou à teoria inicial de Klein do desenvolvimento psíquico evoluindo diacronicamente da posição esquizoparanoide (ser polarizado a-histórico) para a conquista definitiva da posição depressiva (sujeito autoconsciente, autor da própria história). No entanto, ela não corresponde à predominância das concepções dinâmicas, libertadoras e não normativas que sempre caracterizaram o pensamento psicanalítico, desde Freud e Klein. A limitação desse modelo fica evidente quando Ogden descreve o inconsciente e o processo primário como a “coexistência estática de opostos” (p. 176). Essa afirmação é totalmente incompatível com a descrição freudiana do inconsciente dinâmico, que de estático não tem nada, nem tampouco é composto por entidades bem definidas que poderiam opor-se umas às outras, negar-se e preservar-se mutuamente, pois isso exigiria ser esse domínio regido pela lógica formal que caracteriza o processo secundário. Essa observação crítica, contudo, não empana em nada o valor de A matriz da mente, o qual deve ser aquilatado pela abrangência de sua articulação teórica, pela riqueza de sua exemplificação clínica e pelo estímulo ao desenvolvimento do pensamento psicanalítico que as questões que suscita provocam. Por esses motivos, sua leitura é obrigatória para todos os profissionais da área das ciências humanas e da saúde, principalmente para psicanalistas e psicoterapeutas.
(1) Psicóloga psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 51, n. 2, 235 · 241 – 2017
22 de outubro de 2020