Editorias e Resenhas

A mente de Adolf Hitler

A mente de Adolf Hitler
Autor: Walter C. Langer
Editora: Leya, Rio de Janeiro, 2018, 248p.
Resenhado por: Luciana Saddi (1)

Em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, Walter C. Langer (1899–1981), psicanalista americano que estudou com Freud em 1930, em Viena, tendo sido analisado por Anna Freud, recebeu a missão de elaborar um estudo psicológico de Hitler. Langer foi procurado,  pessoalmente, pelo general William Donovan, então chefe do Escritório de Serviços Estratégicos (órgão deinteligência anterior à cia), que acreditava na psicologia como ferramenta de informação de guerra. O objetivo era a vitória o mais rápido possível.

O sucesso dos Aliados foi construído por variadas ações conjuntas de inteligência e estratégia militar, esforço industrial, conhecimento científico, gestão de recursos humanos e naturais, logística e contribuições que exigi­ram sangue, suor, lágrimas e vidas. Faltava ainda acrescentar a psicanálise ao arsenal de guerra.

Acrescido de um prefácio, o relatório virou livro, lançado agora no Brasil. Ele atesta que, em tempos de conflito, todo e qualquer conhecimento é relevante e, principalmente, que não se deve economizar ou desprezar esforços para derrotar o inimigo.

Antecipar-se às ações do Führer era o principal objetivo do estudo. Os Aliados sabiam que ganhariam a guerra, que a vitória era uma questão de tempo. Mesmo assim, precisavam prever os movimentos de Hitler e também dos alemães depois da derrota. Como o ditador reagiria sob intensa pressão?

Langer previu que Hitler se isolaria, até o suicídio, à medida que os fra­cassos nazistas se tornassem evidentes; também, que se afastaria dos generais mais profissionais e inteligentes, capazes de confrontá-lo, para manter intactos seu poder e as próprias ilusões de onipotência. Anteviu ainda a possibilidade de golpe e atentado por parte de militares alemães bem preparados e menos ideológicos. O comando Aliado considerou o estudo uma valiosa fonte de in­formação estratégica. O relatório foi se mostrando acertado com o desenrolar dos acontecimentos.

O estudo está dividido em seis partes: “Como ele acredita ser”, “Como o povo alemão o conhece”, “Como seus colaboradores o conhecem”, “Como ele se conhece”, “Análise e reconstrução psicológica” e “Seu provável comporta­mento no futuro”. É um relatório de fôlego, bastante amplo e bem detalhado, escrito sem jargões ou conceitos técnicos, com uma linguagem simples e aces­sível. O conteúdo é muito interessante – afinal, quem nunca teve curiosidade a respeito da mente desse monstro?

Para o jornalista Eurípides Alcântara, que assina o excelente prefácio, é questionável a importância de estudos psicológicos a respeito de mandatários e políticos com vocação para arrebatar as massas. Langer, porém, acreditava que algumas tragédias poderiam ter sido evitadas se o estudo tivesse sido feito antes.

O psicanalista percebeu que não era suficiente descrever a personalida­de, listar as idiossincrasias, formular hipóteses patológicas para daí prever atos; era necessário penetrar na natureza da relação entre líder e povo, demonstrar como os alemães, imersos na humilhação e na derrota da Primeira Guerra, encontraram seu messias. Embora Langer não cite textualmente o ensaio Psicologia das massas e análise do eu, sabe-se que Freud percorre o caminho que vai da análise do indivíduo à compreensão da sociedade, afirmando: “A psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado” (1921/2011, p. 14).

O encantamento e a sujeição do povo ao líder – tese cara ao ensaio freu­diano – originam-se na relação infantil de submissão ao pai, que tudo sabe e tudo pode. Em Minha luta, segundo Langer, Hitler diz que o povo é análogo às mulheres, que buscam um homem forte para dirigi-las e submetê-las. As massas se sentiam possuídas por seus arrebatados discursos, que prometiam gozo, poder e glória. Cegas, jamais questionaram sua aparência afeminada, tão pouco ariana, por exemplo, ou a distância da própria família, com quem Hitler não se comunicou por uma década. Nunca perguntaram que tipo de homem renunciaria ao sexo por considerá-lo uma fraqueza a converter os homens em tolos. O povo simplesmente transformava as anormalidades e esquisitices em virtudes, com o auxílio da engenhosa propaganda e da infantilização carac­terística da psicologia das massas. É espantoso saber que o povo alemão via Adolf Hitler como um homem da paz.

O estudo mostra como, ardilosamente, os judeus, que eram segregados e bastante malvistos na Europa, foram transformados em bode expiatório de todos os problemas da nação e do próprio Führer. Os mecanismos de defesa mais primitivos observados pela psicanálise foram parte do enredo trágico e imoral. Acredito que o mecanismo de projeção, além de ser extremamente frequente – muito simples de entender –, seja aceito por todo e qualquer psi­canalista e/ou psicólogo. Não há mistério nem complexidade na sua mecânica e ação; no entanto, seu potencial destrutivo é gigantesco.

É chocante constatar que milhões de pessoas, mesmerizadas, tenham se deixado levar por um discurso raso e obscuro, a ponto de autorizarem ações criminosas em escala industrial. Enviaram seus filhos à guerra, facilitaram a própria destruição e tornaram realidade o assassinato de milhões de inocen­tes. O poder do ódio projetado na figura do bode expiatório e a idealização do salvador continuam, ainda hoje, a exercer fascínio nas massas.

O conhecimento das formas de pensar do Führer – seus medos, fraque­zas, qualidades, segredos, traumas, maneiras de tomar decisões –, combinado ao estudo da dinâmica que havia entre ele, seus colaboradores e o povo, tornou-se um valioso instrumento da inteligência de guerra. Infância, sexualidade, relações com progenitores e irmãos foram minuciosamente investigadas, reve­lando um quadro bizarro e desolador. Pai de humor lábil, alcoolista, agressivo, capaz de dar surras homéricas no filho num momento, digno e justo em outro, um comportamento impossível de prever. Mãe sempre submissa, enteada do pai, deprimida, mimara e superprotegera Adolf para compensar perdas e faltas. Vários filhos, irmãos de Hitler, natimortos ou mortos na tenra infância. Ele foi um garoto inseguro, medroso, preguiçoso, deprimido e desamparado. Sua sexualidade permaneceu infantilizada e grotesca por toda a vida. Langer aproxima Hitler do leitor. Em alguns momentos, nós nos percebemos mais compreensivos em relação ao monstro do que seria tolerável.

O estudo jamais justifica o ditador e suas ações criminosas. Ao contrá­rio, elabora um retrato detalhado das características psicológicas de Hitler, retrato que viria a ser corroborado por biógrafos e estudiosos. Há também, no relatório, uma hipótese diagnóstica – bastante discutível – de psicopatia neurótica, o que hoje seria considerado personalidade dissocial. Tipificações diagnósticas são menos importantes do que realidades psíquicas. Mais rele­vante é saber o que homens vivenciam e como pensam para agir. Traduzir a subjetividade do indivíduo – angústias, sofrimentos e defesas – em linguagem compreensível foi o desafio de Langer, algo plenamente realizado.

Para aqueles familiarizados com a metodologia da psicanálise, não é estranha a elaboração de um estudo psicológico na ausência do paciente. É frequente psicanalistas realizarem tais tipos de estudo, cujos resultados vão muito além de meras especulações. De fato, alguns saltos no conhecimento psicanalítico foram dados dessa maneira. É que o método psicanalítico permite inferências, estabelece relações com casos semelhantes, aplica teorias a dados, procura padrões e, sobretudo, organiza reconstruções a partir de ele­mentos dispersos em sonhos, textos ficcionais, ensaios ou autobiografias, bem como em relatos de familiares e amigos. Esse é o material do presente estudo. Psicanalistas e arqueólogos recolhem os mais diversos dados. Fragmentos, detalhes, restos, elementos inicialmente desprovidos de importância, os quais, após engenhoso e criativo esforço de interpretação, permitem a composição de perfis psicológicos e teorias sobre o funcionamento da psique.

A análise de Hitler não é diferente, e o resultado é fascinante e profundo. O estudo permanece vigoroso e significativo depois de tantos anos. E vai além: ele nos faz ver que há muitos Hitlers espalhados pelo mundo. Conhecemos tantos homens e mulheres com perfis semelhantes! Da leitura do estudo surge uma certeza (e um medo subsequente): inúmeros Hitlers vivem ao nosso lado, à espera de circunstâncias históricas para emergir e espalhar o caos.

 

Referências

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)

(1) Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp). Autora dos livros O amor leva a um liquidificador (Casa do Psicólogo), Perpétuo Socorro (Jaboticaba), Alcoolismo (Blucher) e Educação para a morte (Patuá).

Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 53, n. 1, 285-288 · 2019

 

10 de setembro de 2020