Editorias e Resenhas

Guy Rosolato. Passeur critique de Lacan

Guy Rosolato
Passeur critique de Lacan

Autores: Patrick Merot, Dominique Suchet, Vladimir Marinov, Jacqueline Chénieux-Gendron, Jean-Michel Hirt, Jean-Claude Stoloff, Paul-Laurent Assoun, Guy Rosolato, Raymond Bellour, Dominique Clerc, Jean-Claude Rolland, Bruno Karsenti, Dominique Blin
Editora: Presses Universitaires de France, Paris, 2016, 200 p.
Resenhado por: Marilsa Taffarel (1)
Esse livro, resultado de uma homenagem póstuma da Associação Psicanalítica da França (APF) a Guy Rosolato,2 contém seis artigos que destacam, acima de tudo, sua postura de pensador livre, fiel a seu objeto – a busca do essencial da psicanálise –, em diálogo seja com o leitor, seja com suas fontes. Contém também um artigo do próprio autor sobre o ato paranoico, de máxima atualidade, que conversa com o conceito de ato puro de Fabio Herrmann (1997). Há ainda uma entrevista feita com ele por Raymond Bellour. (3)

Trata-se de uma justa homenagem a um psicanalista que consegue aliar duas virtudes raras. A primeira, considerar na sua complexidade o pensamento daquele que foi seu analista e mestre, Jacques Lacan. A segunda, dar lugar à própria inventividade.

Psiquiatra do famoso Hospital Sainte-Anne, onde conhece Lacan, apresenta sua tese de Medicina, Références psychopathologiques du surréalisme, em 1957. Nela já se mostram os temas que serão dominantes em sua obra: o surrealismo e a linguística. Como escreve Dominique Suchet, ele mantém em diálogo surrealismo, criação, linguagem e metapsicologia.

Com ele, mais uma vez são postas em pauta as vicissitudes da grande renovação da psicanálise feita por Lacan.

Lacan morre em 1981, após cinco décadas de contínua e febricitante produção teórica e históricas batalhas institucionais. Em 1964, dá-se o seu expurgo da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Seus primeiros discípulos da Sociedade Francesa de Psicanálise o abandonam e formam a APF. Guy Rosolato, por sua vez, integra a nova instituição psicanalítica fundada por Lacan, a Escola Freudiana de Paris (EFP). Em 1969, a partir de uma cisão nessa instituição, forma-se o Quarto Grupo, em torno de Jean-Paul Valabrega, François Perrier e Piera Aulagnier, a quem os analistas brasileiros puderam conhecer melhor. Rosolato já havia deixado a EFP em 1967.

Largamente considerado passeur critique de Lacan, Rosolato abandona o mestre motivado justamente por sua crítica à instituição do passe, como destaca Patrick Merot no prefácio do livro. O passe reinstitui, segundo a visão de muitos, uma espécie de neodidata, o passeur. O analista passant, que considera seu percurso analítico concluído, solicita a dois passeurs fazer parte da comunidade de analistas.

Lacan ou é silenciado, ou permanece vivo em cada um de seus ex-discípulos sob a forma de um diálogo em que seus conceitos nem sempre são bem avaliados; permanece também através de criptomnésias, fenômeno de tomar como novo o já formulado, considerando-o sua invenção, ressalta um tanto ironicamente Merot.

Em seu artigo para as jornadas das quais esse livro é fruto, Jean-Claude Stoloff, cuja formação acontece no Quarto Grupo, detalha mais cuidadosamente as vicissitudes do percurso de Rosolato, desde a EFP até a APF – percurso em concordância com sua posição crítica de não anulação do mestre e de não desqualificação de visões diferentes da psicanálise, como as de Winnicott, Melanie Klein e Bion.

Stoloff analisa o livro de Rosolato, publicado em 1999, Les cinq axes de la psychanalyse, espécie de legado do autor aos psicanalistas interessados em uma atitude de não fechamento ao saber e não fechamento em seu saber – perspectiva que coloca o psicanalista como um Aufklärer, um ser do Iluminismo, “impregnado da hipótese do inconsciente”, como diz Assoun neste mesmo volume (p. 83).

Rosolato identifica cinco diferentes visões da prática analítica: a que se centra na interpretação das manifestações positivas do inconsciente; a que focaliza excessivamente o negativo – as questões derivadas do que Freud chamou de umbigo do sonho –; a que confia demasiado no poder da palavra dentro da fala associativa, esquecendo as resistências, sobretudo as transferenciais; a que elege dogmaticamente uma referência doutrinal, um mestre único, o que tem o efeito de eliminar incertezas e autocríticas; e a transgressiva, na qual o psicanalista transitória e conscientemente deixa de lado a regra da abstinência.

Para Stoloff, a proposta de utilizar com pertinência os cinco eixos que balizam a clínica estabelece uma epistemologia própria e específica para a psicanálise: um saber não canônico, não dogmático, não doutrinal. Consoante com essa visão da psicanálise, temos uma formação que privilegia a problematização de ideais teóricos e da prática deles derivada e que se familiariza com as diferenças de interpretação em seu campo de pertinência. Como podemos ver, de forma talvez excessivamente resumida, Rosolato não só situa a psicanálise num locus epistemológico, como deriva daí, com muita propriedade, uma concepção de formação analítica.

A continuidade da adesão de Rosolato à reinterpretação da psicanálise inaugurada por Lacan mostra-se princIPAlmente, para Paul-Laurent Assoun, em sua escolha do significante demarcação. Demarcação é o significante que, em Rosolato, qualifica o termo significante, definitivo em Lacan para a sua concepção de inconsciente, de sujeito e de objeto. A demarcação, na sofisticada leitura de Assoun, institui um território metapsicológico, epistemológico e metódico através do qual Rosolato traça seu caminho à côté de Lacan.

Demarcar-se é tomar distância, libertar-se do controle direto, copiar modificando, esclarece Assoun. Demarcar é ainda remarcar um produto que irá para liquidação, termo forte em nossa língua. Nessa última conotação, Assoun encontra o que chama de racionalidade desconstrutiva de Rosolato. A técnica da colagem, cara aos surrealistas, tem necessariamente o fundamental momento desconstrutivo do objeto. Enfim, “pensar é se demarcar” (p. 87).

Os principais conceitos de Rosolato e seus objetos teóricos sinalizam essa demarcação, sobretudo em relação a Lacan. São eles: significante de demarcação, objeto de perspectiva, oscilação metáforo-metonímica, complexo de crença e relação de desconhecido.

A relação de desconhecido, título de seu livro publicado na França em 1978, surge como conceito em 1974; entretanto, explica Dominique Suchet, desde 1957 essa relação indica a natureza epistemológica do percurso do autor, sua concepção do saber psicanalítico.

O que vem a ser a relação de desconhecido? Não se trata de um desejo nem de uma pulsão. Consiste em um movimento em direção ao desconhecido, que permanecerá como tal, configurando a ordem do real do mundo. Há, no entanto, outro desconhecido, que Freud situa no coração do sonho e que permanece inanalisável: o umbigo do sonho. Trata-se aí do não conhecido ou não reconhecido que se situa no inconsciente, o buraco no simbólico. Em seu livro Elementos da interpretação (1985/1988), Rosolato acrescenta que esse não sabido do inconsciente, que não pode ser abolido, relança o desejo. Como aponta Suchet, Rosolato caminha nas sendas abertas por Freud e antecipa a descoberta do objeto pequeno a, de Lacan. Assinala ainda a autora a conexão da noção de desconhecido em Rosolato com a compreensão do ser de André Breton, habitado em seu centro por um mistério que a linguagem

pode elucidar. A relação de desconhecido afirma a importância da relação com a mãe, a dimensão do originário nas vivências corporais, as quais se registram nos significantes não linguísticos ou analógicos denominados por Rosolato significantes de demarcação. Trata-se de significantes elementares que se compõem estruturando

as imagens, as representações. Predominam na criança; aparecem em estado puro na música; instituem uma primeira matriz de representação na esfera olfativa, tátil, gustativa, motriz, intero e proprioceptiva. Esses significantes demarcatórios fixam-se e identificam afetos, pulsões, expressões corporais. Eles acompanham as representações objetivas, conferindo a elas o cunho de singularidade. Na cura analítica, para Rosolato, a clarificação do centro noturno referido por Breton é possível pela transposição do significante de demarcação em significantes da fala. Essa tradução é o trabalho mais importante em uma análise. Patrick Merot nos lembra, entre outros exemplos, da presença de significantes de demarcação ao longo da narrativa de Em busca do tempo perdido, de Proust.

No artigo escrito por Jacqueline Chénieux-Gendron, encontramos as fontes do conceito de oscilação metáforo-metonímica de Rosolato (que data de 1974): Freud, Todorov, Jakobson e Breton. Uma oscilação dos dois eixos constitutivos da linguagem, das duas formas de organização da cadeia significante. Toda metonímia – relação de contiguidade – é um pouco metafórica – relação de ruptura e substituição –, e vice-versa. A similaridade se projeta na contiguidade. Para Rosolato, há na metonímia uma aceleração na passagem associativa que provém de uma precipitação do desejo, e há uma indeterminação, um ilimitado, no achado metafórico que faz circular de maneira estimulante os efeitos de sentido na associação livre. A oscilação é característica do procedimento estético, do jogo infantil. Está ausente na psicose e excessivamente presente nas perversões.

Para Rosolato, as palavras e as coisas devem manter sua distinção, se não quisermos cair no idealismo filosófico, na onipotência de pensamento ou na fascinação delirante/alucinatória. No entanto, as palavras fazem coisas, o significante tem o poder de, por assim dizer, criar realidades. Na arte a palavra está impregnada pela coisa. As coisas, por sua vez, resistem às palavras, podendo, por outro lado, mediante um trabalho com a forma ou um trabalho na investigação científica, conferir verdade a elas, pensa Rosolato. O autor acrescenta que, com a oscilação metáforo-metonímica, dispositivo essencial da linguagem, vamos da crença na realidade da metáfora à distância crítica da metonímia, que permite o recuo necessário, a recuperação da distância estética (Rosolato, 1985/1988).

A oscilação metáforo-metonímica produz efeitos intensos no leitor, chama seu corpo. Produz júbilo e por isso nos fascina. Jean-Michel Hirt chama a atenção para o significante júbilo, que nos remete a Lacan e ao seu estádio do espelho.

Em seu texto “Notas psicanalíticas sobre o roubo e a degradação da obra de arte”, que consta da seção “Documentos” desse livro, Rosolato faz uma análise de máxima atualidade no mundo contemporâneo: o que pode a psicanálise dizer sobre ataques físicos a obras de arte (o roubo, a falsificação ou a destruição)?

O caráter singular de uma obra de arte, mesmo quando ela é socializada através de museus, não proporciona o gozo de possui-la só para si, dispor livremente dela e, em contrapartida, ser seu único objeto.

A ordem e a lei figuram como pretexto para a destruição radical de tudo o que se manifesta como Outro através do que o autor denomina ato paranoico. Destruir o passado, isto é, o pai, porque ele representa uma ordem anterior, porque ele é o suporte da função simbólica do falo – eis o foco de toda destruição radical em que não se trata de suplantar uma época, de instituir uma nova escola no lugar de outra. O projeto destruidor visa eliminar todas as categorias sem instalar novas, afirma o autor.

Segundo Rosolato, é significativo ser a arte alvo de manobras purificadoras. Queimar livros, destruir telas e esculturas denota o objetivo de um gênero de sensibilidade paranoica: realizar um curto-circuito que torna as fantasias mais inconfessáveis imediatamente acessíveis. Enquanto nas obras de arte essas fantasias se mostram de maneira indireta, pelo interesse posto na organização das formas, no ato paranoico a distância simbólica se perde inteiramente.

O valor do livro Rosolato: passeur critique de Lacan é indiscutível, uma vez que trata de um autor que soube dialogar múltipla e incansavelmente com a arte, com a cultura, com as diferentes visões da psicanálise. É conhecida a ideia de cunho hermenêutico de que o estudioso de uma obra, que na verdade a reinterpreta, torna-a mais assimilável – o que fazem os autores desse livro sobre Rosolato. É importante, contudo, sublinhar que a leitura direta de seus escritos é indispensável para o psicanalista que, desejoso de conhecer os grandes mestres – aqui, eu me refiro a Lacan –, não quer ficar à sua sombra. Devido à escrita de Rosolato, como indicado antes, ser também um respeitoso diálogo com o leitor, não constituindo uma escrita hermética, cifrada, muito podemos ganhar com o acesso direto a ela.

 

Referências
Herrmann, F. (1997). O ato. In F. Herrmann, Psicanálise do quotidiano (pp. 162-177). Porto Alegre: Artes Médicas.
Rosolato, G. (1988). Elementos da interpretação (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Escuta. (Trabalho original publicado em 1985)

 

1 Psiquiatra e psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
2 Guy Rosolato nasceu em Istambul, em 1924, e morreu em Paris, em 2012.
3 Além das 140 páginas dedicadas a Rosolato, o livro tem uma segunda parte, intitulada “Nous autres”, que a presente resenha não aborda.

 

Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 51, n. 3268-272 · 2017

21 de fevereiro de 2020