Editorias e Resenhas

As múltiplas faces do self

As múltiplas faces do self
Autor: Walter Trinca
Editora: Vetor, São Paulo, 2016, 142 p.
Resenhado por: Mirian Malzyner  (1)

Em 1997, escrevi uma resenha do livro O filósofo ou A procura do encanto da vida, de Walter Trinca. Esse livro encerrava uma trilogia, que incluía A arte interior do psicanalista (1988) e A etérea leveza da experiência (1991).

Mais de 20 anos depois, vejo-me diante da tarefa de apresentar ao leitor interessado o mais recente trabalho do autor, As múltiplas faces do self, que também compõe uma trilogia, com O ser interior na psicanálise: fundamentos, modelos e processos (2007) e Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto (2011).

A obra de Trinca é extensa e revela um pensador inquieto, um escritor generoso e incansável na busca de aprofundar sua investigação dos mistérios da alma humana e expressar suas ideias. Não vou citar todos os títulos, apenas lembrar que sua obra abrange textos acadêmicos de enorme interesse para a psicanálise, como o estudo sobre a personalidade fóbica e sua dinâmica – A personalidade fóbica (1992) e Fobia e pânico (1997). Na década de 1970, criou o procedimento de desenhos-estórias, instrumento de investigação clínica de grande valor para uso diagnóstico e que guarda características de abertura e abrangência, longe de um modelo rígido ou estereotipado de categorização do mundo psíquico.

Ele também escreve ficção. Em O filósofo (1997), por exemplo, vale-se de um personagem que vai em busca dos sentidos do viver; a prosa é densa, de conteúdo filosófico e colorido poético.

O longo percurso do autor se traduz em solidez, consistência e profun­didade. Sua escrita tem a peculiaridade de driblar as dificuldades de dizer o indizível.

Conheço Walter Trinca há muito tempo, e carinhosamente guardo a lembrança do meu primeiro supervisor em psicanálise, de quando eu estava no curso de psicologia da Universidade de São Paulo. Naquela época, fui envolvida por um professor ético, sensível, com uma abordagem delicada e respeitosa dos primeiros atendimentos clínicos que fazíamos. Desde então, somos amigos, o que me permite observar como a obra e o autor compõem um conjunto harmonioso. Assim, não vejo como fazer a resenha do livro mais recente sem me remeter ao conjunto da obra e a todos esses anos de percurso e acompanhamento mútuo.

O tempo da clínica, o tempo da escrita, o tempo do magistério, o tempo de ser pai, marido, avô e amigo cabem no universo sempre em expansão desse pensador. São as múltiplas facetas do homem/autor que expressam o contato íntimo com o ser interior.

Um nítido fio condutor percorre toda a sua produção, compondo uma trama de múltiplas cores, formas e texturas. Como num belo tricô, com di­ferentes pontos e desenhos, encontramos a unidade nos vazios entre os nós, que na linguagem do autor dizem respeito ao ser interior, à essência única do ser humano e ao aspecto imaterial do mundo. A imaterialidade em oposição à sensorialidade excessiva, que enfraquece e restringe o potencial humano, é a questão central de sua obra.

Em As múltiplas faces do self, o autor se debruça sobre as relações entre o self e o ser interior, com todos os desdobramentos e implicações advindos dessas relações. O foco nessa questão pretende alcançar “um modelo psicanalítico compreensivo do fenômeno humano, destinando-se à sistematização metodo­lógica e à prática clínica” (p. 11). A proposta vai além: a “retomada de uma visão humanística, na qual o ser humano encontre meios de se conhecer, conhecer os demais e enfrentar a destrutividade, realizando o seu destino” (p. 12).

Trinca dialoga com inúmeros autores e teóricos da psicanálise (Bion, Kohut, Milner, Safra, Winnicott etc.), bem como com pensadores de outras áreas do conhecimento (Blake, Krishnamurti e Sartre, por exemplo). Destaca pontos de convergência e divergência, abrindo um leque de questões convidativas.

Postula que o self é plástico e aberto às influências, enquanto o ser interior caracteriza-se pela essência, por aquilo que é. O ser interior é uma matriz primária, essencialmente ligada ao fato básico da vida. É “princípio de organização”, “mobilidade psíquica”, “tendência permanente à liberdade, à espontaneidade, à flexibilidade e ao fluir criativo” (p. 23).

O contato com o ser interior assemelha-se ao que Winnicott chama de verdadeiro self, baseado num núcleo de unidade e coesão, mas Trinca prefere considerar o ser interior uma entidade independente, separada dos outros ele­mentos do self, que são abertos às influências. Considerar o ser interior como essência é fundamental para o autor no desenvolvimento de sua mais impor­tante contribuição, que diz respeito à questão da imaterialidade. É a busca por contato com o ser genuíno que torna possível alcançar uma sintonia com de­terminados aspectos do mundo, livres do bombardeio sensorial dos elementos corrosivos que impedem a plena realização do potencial de cada indivíduo.

O autor admite a pulsão de morte na constituição do inimigo interno, outro conceito básico dessa teorização. O inimigo interno é um subproduto da pulsão de morte, mas, diferentemente da pulsão, que é um conceito teórico, pode ser observado na clínica, e suas particularidades são passíveis de descri­ção. Ele permite verificar como opera essa entidade e como se relaciona com os demais fatores na configuração das diversas perturbações psíquicas.

Quanto maior for o contato com o ser interior, “mais o self será benefi­ciário de uma existência organizada e harmônica, podendo chegar a ser uma instância de realização do ser profundo e compatibilizar suas funções com os princípios maiores da existência da pessoa” (p. 36).

Como Winnicott, Trinca entende que as bases para o contato com o ser interior estão no relacionamento com a mãe, no início da vida:

Ser vista, distinguida, considerada e amada pelo que ela fundamentalmente é cons­titui, para a criança, a matriz original do contato consigo própria. … A mãe que é suficientemente capaz de distinguir seu próprio ser é, também, capaz de reco­nhecer o ser da criança pela via de contato que estabelece consigo própria e com a criança. (p. 41)

As perturbações psíquicas e o sofrimento imposto por estereotipias e restrições advêm da falta de contato com o ser interior. O ser fragilizado sucumbe às seduções e imposições da ditadura da matéria. O leitor com experiência clínica poderá reconhecer, na diversidade de seus pacientes, as nuances e os diferentes graus de intimidade da relação do indivíduo consigo mesmo, configurando formas peculiares de estar no mundo. A proposta é de uma psicanálise compreensiva, centrada em quatro fatores básicos, que cons­tituem o núcleo estrutural e dinâmico de todas as perturbações psíquicas: constelação do inimigo interno, distanciamento de contato, fragilidade de self e sensorialidade.

A psicanálise proposta por Walter Trinca acredita que o antídoto para as forças devastadoras e destrutivas que esvaziam o mundo de seu significado essencial está no amor à vida, que passa antes pelo amor a si mesmo como ser. Através do trabalho psicanalítico voltado para a libertação da mente, em busca de um modo aberto e propiciador do contato com o que é mais verdadeiro, alcança-se a não sensorialidade. “A consciência de si, que é a experiência de ter um ser, é um dom extraordinário posto pela natureza à disposição dos seres humanos” (p. 93).

Cabe destacar como essas reflexões adquirem relevância no mundo de hoje. Diz o autor: “o século xxi consolidou o império do ruído, da poluição e da coisificação … um ruído que sufoca, oprime e suprime o silêncio inte­rior” (p. 87).

A maior ocorrência de suicídio entre os jovens é um alerta de que algo errado está acontecendo. Quando o sentido mais verdadeiro do mundo e de si próprio desaparece, instala-se a desesperança. Trinca aborda a prisão psíquica que leva “ao niilismo, à evasão da vida, ao absurdo e ao suicídio” (p. 89).

Torna-se imperioso pensar no mundo atual e no que oferecemos aos nossos jovens que apresentam sintomas relacionados aos danos causados por um descuido na abordagem do humano. Somente o contato com o que temos de mais essencial e genuíno pode favorecer o enfrentamento com as deman­das e dificuldades do processo de amadurecer. A psicanálise que Trinca nos convida a abraçar propõe esse resgate. Ele afirma que assim é possível alcançar harmonia, uma existência plena e aberta. “No âmago da experiência, as adver­sidades e os obstáculos podem mais facilmente ser enfrentados pela intimida­de da vivência lastrada na unidade, na coesão e na harmonia, favorecendo o domínio sobre o lado trágico da vida” (p. 98).

O autor acredita que é nesse fundo universal humanitário, presente em cada ser humano, que se encontram os princípios de harmonia e transfigura­ção, pelos quais o homem pode ir além do senso comum, além da experiência imediatista, além dos horrores e do sofrimento tão presentes na história da humanidade. Sem dúvida, é confortador imaginar o ser humano alcançando esse estágio de liberdade luminosa, sem conflitos e turbulências, tão distan­te dos aspectos sombrios e pouco esperançosos aos quais estamos expostos todos os dias.

Decido parar por aqui, com a esperança de ter comunicado um pouco dos fatores e dos sabores da psicanálise de Walter Trinca. Para o leitor que já tem familiaridade com o pensamento dele, este livro é uma oportunidade de apreciar suas evoluções e expansões. Para quem não o conhece ainda, fica o convite para penetrar no universo do autor, certamente um estímulo para reflexões e questionamentos, uma reafirmação da fé no ser humano e em sua capacidade de ir sempre além.

 

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 52, n. 2, 184-187 · 2018

29 de novembro de 2019