Editorias e Resenhas

A disposição para o assombro

A disposição para o assombro
Autor: Leopold Nosek
Editora: Perspectiva, São Paulo, 2017, 398 p.
Resenhado por: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho (1)

Este livro de Leopold Nosek, Leo para os próximos, chega em momento mais que oportuno, por nos oferecer uma radiografia da intensa produção cien­tífica, cultural e ideológica de um dos mais prestigiados analistas de nosso meio.

Dentro do possível, tentarei abstrair-me de um longo convívio pessoal, para colocar-me diante desta obra como um mero leitor, que de saída es­tranhou o substantivo disposição do título, por evocar, além dos sentidos de vocação e propensão, as ideias de ordenação e determinação. Aceitando o desafio, presente na introdução, de abandonar-me a um movimento especu­lativo, cheguei a pensar que talvez o termo anseio atendesse melhor o espírito norteador desses estudos indisciplinares que o autor nos oferece de presente.

Destaco, em suas palavras iniciais, as desculpas por suas “repetições de estimação” e a necessária contextualização quanto a serem textos heterogê­neos, já que fruto de convites ou oportunidades advindas das mais variadas esferas, no período entre 2009 e 2016. Com isso, naturalmente, poderemos usufruir não só de sua extensa experiência clínica, mas também de suas inter­venções criativas, nos mundos cultural e institucional.

David Hume, o filósofo empirista, valeu-se do termo conjunção constan­te na discussão da causalidade e da inferência. Esse termo foi usado em psica­nálise por Wilfred Bion, num sentido livre, para iluminar configurações que surgem contínua e/ou contiguamente. Ao longo de minha leitura, senti que vários elementos estavam constantemente conjugados em relação à configura­ção das cesuras criadas entre estados de mente, gerando cenários transitórios.

É assim, por exemplo, que podemos entender o “descanso” dos beduínos antes de entrar em casa, para dar tempo de que suas almas alcancem os corpos, que chegaram adiantados; ou então o estado mental referido por Proust para descrever a transição entre sono e vigília; ou mesmo a analogia estabelecida por Lévinas da transição eu-outro com a cesura entre finito e infinito. Não por acaso, Nosek afirma: “Enfim, mais uma vez nos lançamos às transições – do ter­ritório da palavra falada ao da palavra escrita e deste novamente ao da palavra falada” (p. 268). Em resumo, não creio que seus “ursinhos de estimação” sejam invocados só para aliviar sua solidão, mas principalmente por serem marcos topográficos a iluminar um trajeto construído na escuridão, em que surgem insights epifânicos, como a percepção de que “seria mais próprio definir a função da psicanálise na passagem da natureza para a cultura” (p. 287).

Numa dimensão que poderíamos chamar de funcionalidade filológica, nota-se a reiteração do uso de palavras apofáticas, ou seja, termos que negam uma afirmação para que, no espaço a ser criado, um significado adquira sua plena expressividade. É então que ficamos conhecendo a “solidão in-exorável dos artistas” (p. 137), que somos informados de “que na arte e na psicanálise a nomeação da autoria é im-prescindível” (p. 118), de que a ampulheta é uma “im-placável vitrine do destino” (p. 172) e de que, ao ouvir a Sinfonia n.º 2, de Schumann, “seremos reféns da in-venção grandiosa que é a ideia de redenção e da decepção in-escapável que ela engendra” (p. 302).

Aproveito a inspiração para assinalar que Nosek, ao contrário de muitos de nós freudianos nostálgicos, está sempre se revelando um freudiano (in) -pertinente, como ocorre em múltiplas passagens:

Com a psicanálise, temos, por exemplo, uma teoria da construção do pensamento, como quer Bion, ou da superação do traumático, como propõe Laplanche. Nos termos freudianos, sobretudo na segunda tópica, diríamos: onde ainda não há o es­pírito, que este possa existir; onde havia o informe, que possa haver forma. (p. 69)

Mas Leo é, acima de tudo, nosekiano, o que lhe permite formular com fluidez um pensamento-síntese de sua visão de mundo, em que estão articula­dos a informação midiática, a narrativa, a função onírica e o convívio promís­cuo entre o reflexivo e o alienante:

Observo aqui o contraste entre a informação jornalística, que justapõe dados que não se diferenciam em sua intensidade emocional, e a narrativa, que nos impõe o esforço de seguir na experiência que ela traz. A informação tem início e fim, é com­pleta, e ao contrário da narrativa não nos faz buscar sua continuidade. Também o sonho não encerra um sentido em si, não veicula uma informação em seu interior – é muito mais um sentido provisório que parte em busca do próprio sentido. Não nos indignamos quando vemos notícias de extrema gravidade justapostas a um gol no futebol. Aliás, esse é o esquema típico em que ser informado coincide com ser alienado. (p. 183)

Um verdadeiro psicanalista tem a metapsicologia circulando em seu sangue. É portanto gratificante nos depararmos com um autor que funciona como fonte seminal de enunciados metapsicológicos:

Os prisioneiros dos campos nazistas corriam risco de morte caso se alimentas­sem no imediato momento da sua libertação. Ou a liberdade deve ser proposta em quantidades homeopáticas, ou, então, deixar um cárcere implicará construir algum outro cuja evidência tentaremos ignorar. (p. 67)

Ou, evocando um enunciado de Agamben para ilustrar a angústia de Borges, que ansiava conhecer a escuridão de sua cegueira, mas estava imerso numa luz azul-acinzentada: “Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” (p. 54).

Escolhi de propósito esses dois exemplos para demonstrar que a aura metapsicológica pode estar presente em qualquer setor da vida, desde que te­nhamos olhos para enxergá-la, o famoso the mind’s eye de Shakespeare. No entanto, durante o trabalho clínico, é legítimo que o psicanalista tenha um anseio metapsicológico, o qual, em última análise, nada mais é do que o anseio pelo assombro:

Esse traumático cotidiano das nossas salas exige uma reflexão própria, e fiquemos então apenas com a pergunta: o saber analítico, sua teoria, serão impossíveis? Em vez de conhecimentos capturados, creio que o que podemos pretender é o anseio pelo infinito do outro, é o anseio metafísico de Lévinas ou, no nosso caso, o anseio metapsicológico [itálico meu]. (p. 60)

A metapsicologia, e portanto a psicanálise, nunca se arvorou em solici­tar diploma de cientificidade, apesar de alguns analistas e muitos não analistas insistirem em fazê-lo. Ela, no entanto, nunca se furtou a produzir indagações epistemológicas, fartamente aproveitadas pela religião, pela arte, pela filosofia, pela história, pela educação, pela mitologia e, ironia clandestina, pela própria ciência. Nesse setor, nosso livro é também muito pródigo:

Talvez se pudesse falar de modernidade como consciência da ruptura. Filha de seu tempo, a psicanálise compreende o sonho como unidade de contrários, isto é, temos aí novamente a ampliação conceitual e prática da apropriação da contradi­ção. Veremos que a desalienação pode ocorrer mediante a apreensão da história de contradições. Autoconsciência de alguma forma se liga à pulsação de contrários e sua percepção. (p. 168)

Em certos enunciados, Nosek mescla a metapsicologia com a epistemologia para, apoiado nesse terreno, prenunciar futuros desenvolvimentos para a psicanálise:

Emerge daí um outro modo de se aproximar dos sonhos. Se antes eles não passa­vam de “via régia para o inconsciente”, como considerou Freud na primeira tópi­ca, agora, com o inconsciente a ser construído, … os sonhos, segundo Bion, com uma face voltada para o manifesto e a outra direcionada ao latente, criam simul­taneamente o território do consciente e do que Freud chama, em O ego e o id, de inconsciente do ego. … Aqui se anuncia uma terceira tópica, na qual caberia afir­mar: onde havia ação, que possa haver o inconsciente. É nesse reino que ocorrerá a aventura psicanalítica – mas essa aventura se dará num espaço virtual e num tempo isento de linearidade. (pp. 266-267)

Emérito apreciador da arte, Nosek nos apresenta belas imagens da obra de Leonilson, só nos frustrando, involuntariamente, quando, ao se referir a Schumann e a Beethoven, não consegue a mágica de fazer acompanhar a dança da palavra com a música sublime.

Finalmente, vou me permitir uma indiscrição pessoal. Um tempo atrás, numa exposição em Paris sobre a amizade de Matisse com Picasso, deparei-me com uma frase estampada em letras garrafais: “Quando um de nós morrer, existirão muitas coisas que o outro não terá com quem conversar”. Confesso que pensei, de imediato, em meu convívio com Leo. Gostaria, então, de enu­merar alguns pontos do aprendizado fraternal que eu, prazerosamente, hauri lendo este livro:

  • a importância das obras de Emmanuel Lévinas e de Aby Warburg;
  • a formulação de Hegel sobre o nascimento do eu;
  • a ideia de Laplanche de que o traumático não elaborado marcaria o psi­quismo como uma pseudopulsão;
  • a belíssima descrição, na Ilíada, da importância dos cerimoniais de re­verência e dor, essenciais à constituição do luto;
  • a possibilidade de incluir o traumático e a coragem como elementos de psicanálise, na visão de Bion;
  • a sugestão de que o fim da análise não passaria de uma “menopausa espiritual” (justa homenagem ao senso de humor do autor).

Daqui em diante, amigo leitor, deixo a enumeração por sua conta, dese­jando que possa aproveitar esta preciosidade tanto quanto eu.

(1) Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 52, n. 3, 257-260 · 2018

7 de fevereiro de 2020