Editorias e Resenhas

Diálogos sobre a clínica psicanalítica

Diálogos sobre a clínica psicanalítica

Autora: Marion Minerbo
Editora: Blucher, São Paulo, 2016, 213 p.
Resenhado por: Berta Hoffmann Azevedo (1)

 

Embora a empatia seja necessária, pensar segue sendo indispensável.
Pensar como psicanalista. Sem dureza. Sem lágrimas, sem cortinas
de fumaça. Isso se chama “psicanalisar”.
(André Green)

 

Como escrever com clareza sem esbarrar em simplificação? Talvez aprisionados por tal impasse, muitos analistas acabam por se furtar ao diálogo claro, mantendo-se mais ou menos herméticos em grupos já introduzidos a certos pensamentos.

Ciente dos riscos e decidida a encará-los, Marion Minerbo, em Diálogos sobre a clínica psicanalítica, propõe uma escrita em linguagem coloquial, sem perder de vista a complexidade do objeto psicanalítico. O resultado é uma generosa contribuição, que pode ser apreciada tanto na forma como no conteúdo.

Em uma nova volta da espiral elaborativa, a temática abarca assuntos que vêm mobilizando a autora em suas pesquisas dos últimos anos: transferência e contratransferência (Minerbo, 2012), escuta analítica, o trauma e seus efeitos obstrutivos no processo de simbolização, pensamento clínico, sofrimento neurótico e sofrimento narcísico (Minerbo, 2009).

Minerbo tem, entre outros, o mérito de encontrar uma maneira didática de transmitir – sua marca singular, tributária de anos de comprometimento com a transmissão da psicanálise. Opondo-se a capturar o leitor na miragem da erudição ornamental, ela inaugura uma forma de trabalhar a escrita que nos permite transitar entre níveis de elaboração teórica e clínica, numa conversa imaginária de uma analista experiente com outro ainda jovem no ofício; partindo de impasses clínicos, juntos constroem o que André Green conceitualiza como pensamento clínico. Os diálogos abrem um lugar de continência para as angústias do vivido na experiência analítica, que merecem – e encontram – transformações na sutileza da iluminação teórica encarnada.

A autora assume uma posição clara no sentido de que a clínica não se sustenta na intuição, desamarrada da metapsicologia. Esta a alimenta e a salva do desamparo de uma atuação às cegas, que pode derivar de uma tradição em que a valorização da pureza da entrega clínica representa uma cisão com os esforços metapsicológicos. As teorias estão presentes em cada linha, mas metabolizadas de tal forma que Roussillon, Green, Figueiredo e os demais autores que compõem seu arsenal não resistem como corpo estranho ao texto, tornando-se passíveis de ser aproveitados. O texto transita entre os desafios da prática e a sustentação teórica com tal naturalidade que faz parecer simples o que há de mais complexo em psicanálise: esse vaivém de deixar-se mergulhar na loucura transferencial e sobreviver ancorado em algum pensamento clínico que indique uma direção.

Baseado em um projeto que a autora desenvolveu no Jornal de Psicanálise durante a gestão de Marina Massi, o livro reúne as diferentes conversas publicadas no periódico e acrescenta uma inédita.

Na primeira delas, Marion e seu jovem colega debruçam-se sobre o conceito de transferência, partindo das conceitualizações clássicas e ampliando-as com a introdução da problemática da neurose e da não neurose, de maneira que ganha relevo a ideia de uma cicatriz viva que atualiza o que foi negativado e se infiltra na situação atual sob a forma de retorno do recalcado ou do clivado. A autora aborda a constituição do inconsciente tomando em consideração três gerações, que transmitem seus próprios aspectos inconscientes resultantes de recalques e clivagens e convocam a geração seguinte a “realizar um papel complementar em relação às suas questões edipianas e narcísicas” (p. 23).

Fazendo bom uso das contribuições teóricas de René Roussillon e de materiais clínicos próprios, a autora recorta aspectos do traumático que se manifestam nas transferências neurótica e psicótica e causam o quiproquó na vida e na análise. Os diferentes efeitos contratransferenciais da pulsionalidade, em suas formas ligada e não ligada, são abordados destacando-se sua variação no que tange à força de convocação sobre o analista.

As concepções de André Green (2008) relacionadas à dupla transferência – sobre a palavra e sobre o objeto – contribuem para compor o pensamento clínico que vai sendo tecido com a retomada de ideias tratadas a princípio em Transferência e contratransferência  (Minerbo, 2012).

O diálogo segue com a abordagem da escuta analítica, ressaltando-se a formação dessa escuta como o trabalho essencial de uma formação analítica. É esse também o trabalho que vemos acontecer entre as partes da relação imaginária criada no livro. Além de Roussillon, o ensaio é acompanhado pelas contribuições de Luís Claudio Figueiredo em “Escutas em análise, escutas poéticas” (2014). O analista contemporâneo deve ser um poliglota, capaz de integrar e incluir em sua escuta não apenas a cadeia associativa verbal, como também as formas de expressão primárias apoiadas no corpo. A matéria psíquica é heterogênea e exige uma escuta polifônica. É preciso reconhecer as diferentes estratégias de escuta desenvolvidas ao longo da história da psicanálise para acompanhar o polimorfismo da associatividade psíquica (Roussillon, 2012) e seus derivados vindos não somente do recalcado, mas também das percepções arcaicas não simbolizadas.

Trauma e simbolização são o tema da terceira conversa, que resgata as noções de trauma, especialmente em Freud, Ferenczi, Winnicott e Roussillon, e assinala seu caráter obstrutivo para os processos de simbolização primária e secundária.

Sempre com um repertório clínico disponível, Marion Minerbo costura os efeitos do trauma narcísico no bloqueio da simbolização primária; demonstra como a clivagem, defesa primária diante do traumático, produzirá efeitos de retorno do clivado sob a forma alucinatória ou de identificação com o agressor. Por meio de um cotejo com as manifestações do trauma secundário nos retornos do recalcado, a fineza clínica permite acompanhar o sofrimento presente nos diferentes casos, que orientam manejos distintos e dão notas sobre a importância da libido produzida nos vínculos primários para a instalação de uma função simbolizante no psiquismo.

A essa altura o leitor já viu operar o pensamento clínico, essa “forma original e específica de racionalidade que emerge da experiência prática” (Green, 2014, p. 12) e que é tema do quarto diálogo no livro. Nesse capítulo, que segue um formato próximo ao de uma supervisão, acompanhamos o jovem analista num esforço por construir um pensamento (clínico) complexo, que leve em consideração o par pulsão-objeto – dimensões intrapsíquica e intersubjetiva –, a fim de liberá-lo da posição de consultor sentimental de uma paciente tendo problemas com o marido. A hipótese de que o marido sirva como suporte transferencial para a atualização do traumático com o objeto primário coloca em jogo a discussão sobre as transferências estabelecidas com os objetos significativos na vida e aquela própria ao trabalho de análise, em que a singular articulação da dupla transferência na história daquela análise pode ser tomada em consideração e adquirir potência transformadora.

Tais ensaios convergem para que então cheguemos aos diálogos 5 e 6, em que vemos desenvolvida uma questão crucial que atravessa todo o livro: a noção da autora de psicopatologia psicanalítica – bem trabalhada em Neurose e não neurose (Minerbo, 2009) – e seu interesse pela compreensão dos sofrimentos neuróticos e narcísicos, com seus respectivos conflitos ligados à gestão do prazer e à sobrevivência do eu e seus limites. Os diálogos se entrelaçam de tal forma que o caminho metapsicológico percorrido cria uma trama com os casos escolhidos, de maneira que estabelecemos com eles certa intimidade, que se adensa e ganha desdobramentos a cada vez que são retomados em um novo diálogo. Visitar os meandros mais sutis da experiência clínica em boa companhia permite maior proximidade com o universo multifacetado da clínica, construído na intimidade com o paciente, e com toda a racionalidade que desse encontro deriva.

Ao fechar o livro, o leitor tem a sensação de não apenas ter participado do diálogo com o jovem colega, mas também de ter sido convidado a adentrar a sala de análise e testemunhar, à cabeceira do divã, um diálogo interno da autora em seu ofício como psicanalista, costurando, fio a fio, diante dos olhos atentos do leitor, o fino e complexo tecido que sustenta sua escuta analítica e lhe permite desenvolver uma posição firme e empática com o sofrimento singular de seus pacientes. Não é sempre que recebemos esse generoso convite.

 

Referências

Figueiredo, L. C. (2014). Escutas em análise, escutas poéticas. Revista Brasileira de Psicanálise48(1), 123-137.
Green, A. (2014). El pensamiento clínico (C. E. Consigli, Trad.). Buenos Aires: Amorrortu.
Green, A. (2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea (A. M. R. Rivarola et al., Trads.). Rio de Janeiro: Imago.
Minerbo, M. (2009). Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Minerbo, M. (2012). Transferência e contratransferência. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Roussillon, R. (2012). As condições da exploração psicanalítica das problemáticas narcísicoidentitárias. Alter: Revista de Estudos Psicanalíticos, 30(1), 7-32.

 

(1) Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro filiado ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), docente no curso André Green e a Psicanálise Contemporânea: Uma Introdução (SBPSP) e autora do livro Crise pseudoepiléptica (Casa do Psicólogo).

 

Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 51, n. 3, 251-254 · 2017

 

25 de setembro de 2020