Editorias e Resenhas

Parentalidades e gênero. Sua incidência na subjetividade

Compiladoras: Patricia Alkolombre e Cândida Sé Holovko
Editora: Letra Viva, Buenos Aires, 2016, 327 p.
Resenhado por: Leticia Glocer Fiorini (1)

O livro Parentalidades e gênero é o relevante resultado do 11.º Diálogo Latino-Americano Inter-Regional entre Homens e Mulheres (Cowap-ipa), (2) realizado em Buenos Aires no ano de 2014. Trata-se de uma publicação que reúne os aportes feitos no encontro e que condensa sob o belo título inúmeras problemáticas que interpelam saberes constituídos. É um desafio a não nos apoiarmos em posições tranquilizadoras, tanto teóricas como clínicas, a respeito dos debates que se expõem cada vez mais claramente nas sociedades contemporâneas.
Diante da perplexidade e das incertezas que surgem em relação a essas questões e nos obrigam a reforçar nosso juízo crítico, há um percurso que julgo ineludível: atravessar e ser atravessados por um pensamento múltiplo e multiplicador, um pensamento que se sustente na complexidade das variáveis em jogo, em sua recursividade, e que nos permita ampliar nossas ferramentas psicanalíticas. Entendo que isso seria, no melhor sentido da expressão, um retorno a Freud, se lembrarmos as vertentes de seu modo de pensar que se afastam dos fundamentalismos totalizantes.
Nessa linha, resgato o objetivo central desta publicação, que é acolher as perguntas que surgem dos tópicos focalizados, em vez de apresentar respostas predeterminadas, à la carte.
Certamente não poderia comentar cada uma das apresentações, já que são 41. Pretendo considerar o conjunto e o sentido geral do volume, no contexto do campo psicanalítico contemporâneo. O livro se divide em sete partes: “Paternidades e maternidades do século xxi”, “Parentalidades, técnicas reprodutivas e adoção”, “Infância e adolescência: novas origens, novos enigmas?”, “Parentalidade e gênero”, “Maternidade e feminidade”, “Novas configurações familiares” e “Psicanálise e gênero”. Cada um desses tópicos está composto de trabalhos de distintos autores.
Encontra-se neste livro, como nas publicações do Cowap em geral, uma ênfase em questões atuais, que cada vez repercutem com maior frequência nas consultas clínicas.
Em primeiro lugar, destaco o uso, como ponto de partida, de outra perspectiva sobre o tema proposto. É um enfoque que, a meu ver, emerge das margens e que a partir daí propõe repensar algumas proposições dos centros teóricos. O pensamento nas margens, no limite, abordado com grande riqueza pelo filósofo espanhol Eugenio Trías (1942-2013), apresenta outra maneira de encarar muitas problemáticas. Essa noção tem pontos de contato com o conceito de espaço transicional, de Winnicott. Certamente, o feminino esteve e está nesse lugar, nas margens, porque sua análise provém de um sujeito de
conhecimento, masculino, como Freud mesmo assevera em “A feminidade”: “das mulheres presentes, não se espera que sejam tal enigma para si mesmas” (1933/1986, p. 105). Obviamente, ele fala a partir da posição de sujeito de conhecimento,
masculino, sobre um objeto enigmático, feminino, a conhecer. Podemos então nos perguntar se as novas modalidades de família, a diversidade sexual e de gênero, as parentalidades atuais também estão nas margens. Gostaria de sublinhar que, embora as margens possam ser ignoradas ou desvalorizadas, elas têm ainda outra faceta: podem constituir-se em desafios a
certo pensamento centralizador e esquemático sobre essas questões.
Em segundo lugar, nossas percepções e nossas teorias, implícitas e explícitas, estão marcadas por normas e codificações que impregnam nosso psiquismo. Qual é a margem de liberdade, como dizia Sartre, e de juízo crítico que cada psicanalista tem? Isso implica reconhecer de quais teorias dispõe e de quais não, o que não é simplesmente um problema de qual teoria é mais
verdadeira. Estão em jogo crenças, ideologias e preconceitos que nos marcam a todos. A análise deste livro feita aqui surge desse reconhecimento.
Em terceiro lugar, uma psicanálise em movimento, não congelada, uma psicanálise em devir, requer autoquestionamentos sobre ideais normativos prefixados, especialmente em relação a sexualidade, diferença sexual e parentalidades. Nessa linha, entendo que, se desejarmos pensar a clínica e as experiências de cada pessoa que nos consulta, será imprescindível recorrer a outros pontos de vista e não se aferrar a respostas predeterminadas, abordagem essa presente nesta publicação.
Como assinalamos, este livro se situa no cruzamento de diversas variáveis, de enormes significações nas culturas atuais: outros percursos do desejo, as migrações de gênero, o apogeu em progressão geométrica da cultura virtual, o avanço das biotecnologias, assim como a maior visibilidade de outras formas de família, que excedem a primazia da família nuclear. Recordemos que a família nuclear sustenta a narrativa edípica triangular e que o Édipo replica essa estrutura. Essas mudanças levam a revisar conceitos, entre eles, o complexo de Édipo, as funções materna e paterna, o tema das origens, a diferença sexual, a feminidade, a noção de família e a violência de gênero.
Há uma questão em que gostaria de me deter: o conceito de gênero. O título do livro é Parentalidades e gênero. Escuta-se, às vezes, que gênero não é um conceito psicanalítico. Por quê? Porque não foi mencionado por Freud, embora não existisse em sua época? E o espaço transicional de Winnicott, a função beta de Bion, o sujeito barrado e os matemas da sexuação de Lacan: eles são? Em outras palavras, há uma série de conceitos que passaram a integrar o campo psicanalítico mesmo sem ter sido estabelecidos por Freud. Trata-se justamente de aportes que mostram uma psicanálise em devir, em movimento.
Quando Freud fala do menino ou da menina que enfrentam a trama edipiana de maneira distinta, ele está falando de gênero, está apresentando uma teoria sobre os gêneros. Mas quem pesquisar a obra freudiana verificará que existe nela mais de uma teoria sobre os gêneros. Acrescentamos que há muitos debates a respeito disso na psicanálise pós-freudiana e contemporânea, os quais se refletem nos capítulos desta publicação.
Nesse sentido, cabe destacar a importância de discutir conceitos, analisar experiências, sem recorrer a prescrições superegoicas sobre supostos fundamentos, que às vezes se aplicam, às vezes não, dependendo de circunstâncias
não psicanalíticas.
Os trabalhos incluídos no livro também mostram que vivemos num mundo em transição. Por exemplo, constatar a presença de outras formas de parentalidade constitui um desafio para o campo psicanalítico. Para muitos isso seria a expressão de uma ameaça apocalíptica, um ataque à ordem simbólica. Gostaria de observar que não considero haver uma ordem simbólica de caráter atemporal. Por outro lado, é importante lembrar que as crises podem levar à procura de outros modos de organização dos laços sociais, e isso implica a psicanálise.
Nesse contexto, é necessário assinalar as diferentes formas de violência e destruição em que prevalece a pulsão de morte (guerra, terrorismo, incesto, violência de gênero e doméstica, feminicídio). Essas formas refletem destrutividade e ataques ao outro, que certamente desintegram uma ordem social, e é indispensável diferenciá-las da busca de novos caminhos para a sexualidade, a parentalidade e os gêneros, em que não está em jogo a integridade do outro. O que alguns consideram uma ameaça na verdade questiona determinada maneira de pensar a ordem social, maneira na qual a psicanálise também pode tomar parte se se converte num adaptador social. Talvez estejamos  diante de mudanças no contrato social. Ainda não o sabemos, mas essas questões surgem como parte desta resenha.
Para concluir, gostaria de tratar brevemente de outro tema: que lugar ocupam essas temáticas, sobre as quais se reflete tão acertadamente neste livro, assim como em outros de distintos colegas argentinos e latino-americanos? São tomadas como material de trabalho na formação e em seminários nas distintas Sociedades Psicanalíticas? Sabemos que isso pouco acontece e nos perguntamos por quê. São questões que dizem respeito à práxis psicanalítica, à experiência de cada psicanalista em sua prática institucional ou privada. Com que olhar, com que teoria, com que percepções cada psicanalista aborda essas
problemáticas, apresentadas com tanta propriedade neste livro?
Nos diferentes capítulos, percorrem-se muitas das questões que levanto, às quais se acrescentam outras, como o conceito de homossexualidade e perversão e as problemáticas da infância e da adolescência relacionadas a esses temas. São pontos sobre os quais, sem dúvida, cabe pensar em profundidade. Esse é o trabalho da psicanálise.
Por fim, gostaria de destacar o excelente trabalho das compiladoras, da equipe editorial e de todos que contribuíram para construir esta publicação. Os encontros Cowap, dos quais Mariam Alizade foi uma grande impulsora, vão além do comentado aqui. São documentos de problemáticas, por longo tempo lateralizadas, cuja análise e reconhecimento se referem ao futuro da psicanálise.

Referências
Freud, S. (1986). 33ª conferencia: la feminidad [Nuevas conferencias de introducción al
psicoanálisis]. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 22, pp. 104-125).
Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1933)

Tradução Maria Antonieta Pezo
Leticia Glocer Fiorini

(1) Co-chair para a América Latina do Comitê de Estudos de Diversidade Sexual e de Gênero da Associação Psicanalítica Internacional (ipa). Professora do mestrado Estudos Interdisciplinares da Subjetividade, da Universidade de Buenos Aires (uba). Ex-presidente da Associação Psicanalítica Argentina (apa). Autora dos livros Lo femenino y el pensamiento complejo e La diferencia sexual en debate.
(2) Cowap-ipa: Comitê Mulheres e Psicanálise da Associação Psicanalítica Internacional.

Publicado em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 52, n. 1, 197-200 · 2018

17 de maio de 2019