Editorias e Resenhas

Os olhos da alma

Os olhos da alma
Autor: Jean-Claude Rolland
Tradutor: Paulo Sérgio de Souza Jr.
Editora: Blucher, São Paulo, 2016, 234 p.
Resenhado por: Claudia do Amaral de Meireles Reis (1)

Em Os olhos da alma, segundo livro de Jean-Claude Rolland traduzido para o português, podemos seguir o desenvolvimento e aprofundamento do pensamento de um autor teoricamente muito consistente e criativo, sempre preocupado com questões sobre a clínica. Suas considerações sobre a linguagem, que permeiam quase todos os seus escritos, nos obrigam a repensar nossa escuta clínica e desembocam no que ele designa como “interpretação analógica”, (2) um tipo de interpretação que é descrito e apresentado ao longo de sua obra, diretamente relacionado à sua maneira de trabalhar com a linguagem.

Em seu primeiro livro traduzido para o português, Curar do mal de amor, a linguagem e a renúncia já aparecem como elementos centrais, e são sem dúvida alguns dos eixos que norteiam seu pensamento. Há nesse primeiro livro um capítulo intitulado “Qual a leitura da fala?”, em que J.-C. Rolland distingue entre o seu modo de entender a fala e o que é palavra e define o que entende por linguagem. Para o analista, a fala informativa ligada ao eu não tem tanto valor, pois na maioria das vezes é uma descarga. O analista busca em sua escuta a fala associativa, que está conectada com a experiência emocional, que tem frescor. Neste segundo livro, o autor dá um passo adiante apontando as peculiaridades da linguagem e da imagem. Sem exatamente indicar uma oposição ou uma complementaridade entre elas, Rolland considera como elas se ligam e se desligam sem qualquer hierarquia, em permanente tensão, e enfatiza a importância dessa compreensão e distinção para a escuta analítica. Esses dois livros fazem parte de um grupo de quatro trabalhos3 publicados em francês pela Gallimard.

Todos eles evidenciam a tradição francesa na qual Jean-Claude Rolland se insere e sua proximidade com o pensamento de seus contemporâneos – importantes analistas e teóricos como André Green, Pierre Fédida, Jean Laplanche e J.-B. Pontalis.

Na construção de suas teorias, Rolland parte sempre da obra freudiana. Por exemplo, em sua releitura de A interpretação dos sonhos, já conhecida por todos nós, em que as imagens do sonho são valorizadas e problematizadas, o autor reflete sobre a necessidade de esse conteúdo imagético ser transformado em linguagem para ser relatado e conhecido. Freud vê nessa passagem uma tradução da representação-coisa para a representação-palavra, do inconsciente para o consciente; Rolland, por sua vez, vai além e afirma não se tratar de uma simples tradução: é um processo que atravessa o espaço psíquico mantendo a identidade de seus conteúdos, mas transformando e provocando uma ruptura em sua organização formal, entre a representação-coisa, que é a substância do inconsciente, e a representação-palavra, que a fala ativa em seu discurso. Rolland considera que o sonho não apenas revela o reprimido, um desejo inconsciente; o autor afirma que o trabalho do sonho tenta elaborar um luto pela perda de objetos primários, aos quais o sujeito teve que renunciar. Diz ele: “O sonho não é somente a atividade psíquica do sono; ele é o recurso concedido ao sonhador para reatar um laço com os objetos aos quais, de um modo bem pouco sincero, ele teve de renunciar na vida desperta” (p. 54). A imagem ligada ao inconsciente permite uma função alucinatória, na tentativa de manter vivos os objetos primários. Segundo Rolland, quando a transformamos em palavra, há sempre um distanciamento, um caminho para a renúncia
a esses objetos. A problematização da renúncia como uma ação psíquica já se anuncia aqui, com sua visão de que a palavra contém em sua enunciação uma renúncia. Voltaremos a esse tópico.
Rolland, um homem apaixonado pelo que estuda e escreve, profundo conhecedor das artes, das ciências humanas e da cultura, vai levando seus leitores, de forma consistente e sutil, a ampliar também conceitos há muito aprendidos e solidificados. Quando discorre sobre as imagens, por exemplo, avisa que o que propõe em relação a elas não nos é familiar, como quando afirma que a imagem pode ser da ordem do visível ou do invisível.

Sabemos da importância da capacidade de representação para o funcionamento de uma mente saudável, que possa elaborar lutos e perdas, de modo que o novo tenha lugar. Rolland aprofunda a compreensão dessa capacidade de representação, que pode ser alcançada e desenvolvida por analogias e aproximações através da concretude da palavra, sem levar em conta seu sentido.

Lançando mão de poemas e exemplificando com o exame de quadros consagrados, Rolland nos introduz ao enigmático mundo das imagens e da linguagem, que justapostas revelam, disfarçam, escondem aspectos ainda insuportáveis à nossa consciência. Escreve ele: “A epifania da imagem requer o silêncio do discurso” (p. 29), tentando dessa forma nos alertar de que a linguagem também pode ser entendida como uma resistência, que desvia o nosso olhar daquilo que seria o mais importante e revelador. Afirma ele que a linguagem é um sistema defensivo sempre ligado ao eu.

Rolland, ao elaborar suas hipóteses, sempre as relaciona à clínica. Após uma interpretação do analista que atinge o paciente de alguma maneira, o silêncio que decorre é necessário, pois provavelmente o paciente estará construindo imagens e fazendo associações, que foram provocadas tanto pela observação do analista quanto por comunicações, muitas vezes, inconscientes. Fica implícita aqui a ideia que Rolland desenvolve longamente: a oposição entre a linguagem que já atingiu a esfera da consciência e a negatividade do inconsciente. Uma oposição, sem dúvida, mas com uma forte ligação de contiguidade. “A imagem só acessa a consciência com a condição de se ligar às palavras” (p. 30). O discurso é construído em códigos e rébus com o objetivo de enganar nossa consciência e afastá-la do que realmente está em jogo. A influência de Lacan pode ser notada quando o autor enfatiza a importância da linguagem, não no sentido de o inconsciente ser estruturado como linguagem, mas na compreensão de que a língua pode nos dar pistas, pelo caminho inverso do desejo, sobre o mais primitivo da alma humana.
Rolland afirma que o sonho é

o lugar ideal para que o mais desconhecido da vida anímica se manifeste; para que a compulsão à repetição, para a qual é impelida toda e qualquer formação psíquica que não dispõe de acesso natural à figuração, ache por onde se representar. (p. 50)

Descreve como o processo analítico ocorre com movimentos psíquicos análogos e complementares aos do sonho. Os sonhos sempre existiram e têm uma existência própria, mas o trabalho da análise não existe sem os sonhos, sejam eles sonhados na vida de vigília ou durante o sono. Em ambos os processos há uma suspensão da atividade do eu e uma função psíquica idêntica; eles revelam a prevalência do princípio do prazer onde as defesas psíquicas haviam bloqueado o caminho. Também na questão econômica podemos perceber que os dois processos buscam um lugar de conforto, de menor excitação. Rolland afirma constantemente, ao longo de sua obra e através de vários exemplos clínicos, a importância do analista como um interlocutor imprescindível e, ao mesmo tempo, como depositário e alvo da transferência afetiva dos objetos primários do paciente, os quais, intensamente investidos desde a primeira infância, vão repetidamente se presentificando, sendo deslocados e disfarçados na vida atual do sujeito. Desenvolvendo essa ideia, o autor indica que podem se manifestar também no sonho e na análise as identificações inconscientes presentes no superego parental, transmitidas inconscientemente à criança, bem como as marcas deixadas pela percepção da diferença dos sexos, abrindo espaço para que se possa conjecturar sobre as questões intergeracionais e filogenéticas que não devem ser esquecidas.

Para enfatizar a hipótese da força da filogênese no psiquismo humano, Rolland lança mão de toda a sua erudição e nos conduz com ousadia aos capítulos “Salomé” e “Os deuses e o inconsciente”, nos quais, partindo de mitos e histórias de nossos ancestrais bíblicos, reflete sobre as origens da cultura e também da sexualidade humana. O interesse desses capítulos relaciona-se a um dos eixos do pensamento do autor: o de que “toda aquisição cultural se forma à custa de certo sacrifício da vida pulsional primitiva” (p. 87), reflexão que ele leva para a clínica como um dos aspectos centrais do desenvolvimento pessoal dos indivíduos, o que ele denomina complexo de renúncia. Rolland aponta como o eu (civilizado) trava um conflito violento com o inconsciente (pulsional), que se recusa a renunciar ao princípio do prazer.

Não sem dificuldade atravessamos o capítulo “Sobre a renúncia”. Toda a importância que o autor atribui ao processo da fala fica aqui evidenciada. Esse processo liga-se ao citado complexo de renúncia, numa construção teórica aprofundada e articulada a várias outras ideias desenvolvidas antes. Acredita Rolland que somente com o uso psíquico da linguagem (distante de sua função de enunciação, próxima à consciência) seria possível construir uma subjetividade sempre condicionada à possibilidade de renúncia do eu ao desejo inconsciente pelos objetos primários edípicos.

A linguagem é descrita como uma instância simbólica, não nomeada, ligada ao pré-consciente, que teria como função manter o precário equilíbrio entre as reivindicações pulsionais e as exigências da realidade. Em Avant d’être celui qui parle, livro ainda não traduzido, encontramos a seguinte definição: “A língua é uma instância simbólica, exterior ao sujeito. Ela se impõe ao espírito e o obriga a sublimar suas formações de desejo em uma atividade de palavra” (2006, p. 121). Ao falar sobre essa instância, não estamos ainda nos referindo a uma consciência, mas a uma operação que funda a realidade do psíquico e que assume sempre a forma de uma negação e uma renúncia. É um movimento econômico em que a libido de objeto ligada aos primeiros objetos do infans precisaria fazer o caminho inverso para a libido narcísica, processo doloroso e incompleto, uma vez que o eu, para existir como subjetividade, precisaria separar-se das identificações primárias que fazem parte de sua própria constituição. Fica implícita aqui toda a teorização freudiana sobre a sexualidade infantil. Rolland conclui que, para refletir sobre todo esse processo, seria mais adequado compreendê-lo como um complexo, visto que, como os complexos descritos por Freud, ele abriga um par de opostos em permanente tensão: a renúncia em oposição à noção de conservação de todas as formações psíquicas.

No capítulo 9, “O estado borderline”, evidencia-se mais uma vez a originalidade do pensamento de Rolland e sua ligação com as situações clínicas. Diferentemente da maioria dos autores, que tenta descrever esse estado como uma estrutura no sentido psicodinâmico, pela maneira com que esses pacientes organizaram seu precário equilíbrio, para ele o que deve ser levado em consideração é como a experiência traumática se reproduz no próprio andamento analítico. Seriam as dificuldades observadas na clínica, pela forma de certos pacientes se relacionarem com o analista, que nos levariam a um diagnóstico. Considerando que a experiência analítica é uma experiência traumática, essa experiência atual estaria reproduzindo o momento traumático congelado. Um paciente borderline não transfere para o analista, mas sim para a pessoa do analista. A situação analítica é vivida como uma questão de sobrevivência, com “situações que podemos caracterizar pela conjunção de uma forte demanda analítica e de um fraco processo analítico. … O analista é ‘sobressolicitado’ na sua função de manutenção do enquadre e da experiência e ‘subsolicitado’ na sua função interpretativa” (p. 184). O caminho proposto pelo analista para os pacientes neuróticos, pela via da renúncia, cria uma situação de impasse para o paciente borderline, uma vez que para este renunciar a amar, renunciar ao desejo infantil, seria como renunciar a viver. Esses pacientes evitariam a dor pela perda reencarnando no analista o objeto amado, incestuoso, mantendo-o presente, identificando-o ao analista.

Observamos aqui uma atitude otimista de Rolland como analista: ele não apreende o paciente borderline como uma pessoa simplesmente desorganizada psíquica e estruturalmente, mas como alguém que precisa que seja respeitado esse tipo de configuração psíquica, necessário para a sua sobrevivência e que obedece a uma lógica e coerência particular.

Quanto aos pacientes psicóticos, não encontramos o autor tão otimista assim: embora assinale a capacidade da psicanálise de criar teorias bastante ricas em relação a esses pacientes, aponta também a dificuldade de tratá-los e um limite para curá-los. Mesmo sem nos propor um caminho mais seguro, no interessante último capítulo, “Figuras da protomelancolia”, Rolland nos deixa impactados com suas considerações teóricas sobre os pacientes ditos psicóticos, entendendo a psicose como uma defesa à melancolia.

Referência
Rolland, J.-C. (2006). Avant d’être celui qui parle. Paris: Gallimard.

(1) Graduada em História pela Universidade de São Paulo (usp) e membro associado da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp).
(2) Nesse livro, há uma referência a esse conceito na página 31.
(3) São eles: Guerir du mal d’aimer (1998), Avant d’être celui qui parle (2006), Les yeux de l’âme
(2010) e Quatre essais sur la vie de l’âme (2015).

Publicado em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 51, n. 3, 255-260 · 2017

27 de setembro de 2019