Editorias e Resenhas

O que é Psicanálise. Para iniciantes ou não…

Autor: Fabio Herrmann
Editora: Blucher, São Paulo, 2015, 116 p.
Resenhado por: Luciana Saddi (1)

Apresentar este pequeno livro ao psicanalista praticante, estudioso ini­ciado, iniciante ou apenas ao curioso é um grande desafio. Poucos livros de psicanálise foram tantas vezes editados. Consta que esta é a 14.ª edição, o que constitui enorme proeza. E torna-se mais surpreendente ainda quando sabe­mos que o autor dessa proeza é um brasileiro, formado psicanalista em São Paulo, tendo vivido e estudado aqui sempre. É importante ressaltar que, ao reeditar O que é Psicanálise: para iniciantes ou não…, de Fabio Herrmann, a editora Blucher dá um grande presente à psicanálise brasileira. É uma pena, porém, que tenha suprimido a apresentação, “Duas palavras”, feita pelo pró­prio autor para a 13.ª edição do livro. Nós, leitores e estudiosos do pensamento psicanalítico, esperamos que nas próximas edições essa falha seja sanada.

Certos livros não merecem apresentação – eles são a própria apresenta­ção. O que é Psicanálise está nessa categoria. Portanto, apresentá-lo é redun­dância. Só a loucura cientificista ou propagandística promoveria a apresen­tação da apresentação da psicanálise. Além do mais, as 14 edições falam por si, atestam que o livro é necessário e cumpre integralmente sua função, tendo provavelmente a ultrapassado. No entanto, a tarefa de apresentar esse livro se faz necessária pela importância do pensamento crítico que o atravessa.

O que é Psicanálise vai muito além de descrições das teorias psicana­líticas e dos modelos da psique, sem feri-los, um feito notável e dificílimo. Muito embora os apresente de maneira amorosa e sintética – como se esti­vesse contando ao pé do ouvido uma história desconhecida de família –, o livro descreve com precisão os achados científicos da psicanálise que tanto perturbaram o século xx, a ponto de entranhar ainda hoje a produção cultural e de permanecer como dispositivo de tratamento para acolher os dramas e sofrimentos humanos.

O livrinho (como foi apelidado) atrai o leitor para uma psicanálise que permanece investigadora e criativa, não só pelos modelos teóricos relevantes para a compreensão dos sintomas e da vida cotidiana, mas porque nessa apre­sentação ainda pulsa a capacidade de produzir sentidos. O leitor é convidado a participar, a ser um agente desse mundo de descobertas um tanto bizarras ou chocantes, acreditando-se um pensador dessa jovem ciência em constru­ção. O convite não decorre de exercício de retórica ou mera sedução, e sim da necessidade de sobrevivência da psicanálise, que impõe a cada um que a toca ser um pensador crítico e um clínico criativo.

Acontece que Fabio Herrmann tinha um temor muito bem fundamen­tado de que ou a psicanálise cumpria seu horizonte de vocação (tornar-se ciência geral da psique), ou se conformava em desaparecer entre as psicote­rapias, por diluição. Para que entendamos esse perigo, devidamente apresen­tado no último capítulo do livrinho e pano de fundo de toda a obra do autor, tomemos a frenologia como modelo e sua decadência como fantasma para a história de nossa disciplina. Desenvolvida pelo médico alemão Franz Joseph Gall por volta de 1800 e muito popular no século XIX, tornou-se desacredita­da no século XX, sendo classificada como pseudociência. Sua ideia central era determinar o caráter, as características da personalidade e o grau de crimina­lidade pelo formato da cabeça. Foi bastante usada no período vitoriano. Era frequentemente vista com seriedade, sendo promovida como maneira fácil de conhecimento, introspecção psicológica e crescimento pessoal. Milhares de pessoas consultavam frenologistas para receber conselhos em questões como seleção de empregados pessoais, escolha de marido/esposa e casamento. No entanto, a frenologia foi rejeitada pela academia – foi excluída da Associação Britânica para a Promoção da Ciência. Sua popularidade declinou durante o século XIX, com alguns considerando-a do campo da astrologia ou da qui­romancia, enquanto outros publicavam livros científicos sobre o assunto. A disciplina, contudo, recebeu crédito como protociência, por contribuir com a ciência médica pelas ideias de que o cérebro é o órgão da mente e de que áreas específicas do cérebro estão relacionadas com determinadas funções.

Por essa breve história da frenologia, é possível entrever o perigo que a psicanálise ainda corre e para o qual este livro alerta: tornar-se um conjunto curioso de ideias interessantes sobre o fato de o inconsciente promover com­portamentos bizarros e sintomas psíquicos; sobre os sentidos dos sonhos; so­bre um tratamento pré-científico em que o paciente é escutado pelo analista, que faz uma série de relações baseadas em premissas falsas, mas mesmo assim promove a cura pelo método de sugestão, que foi denunciado pela própria psicanálise. Sim, ainda corremos o risco de ser a protociência do momento – os ataques vindos da psiquiatria biológica desde os anos 1980 continuam a ecoar em nós. Duvidam de nossas teorias, dos achados clínicos, do método da psicanálise, da crítica à constituição da sociedade/cultura e da potência de um dispositivo simples, sofisticado e eficiente que criamos para escutar e curar (no sentido de cuidar do desejo) quem nos procura.

Para a psicanálise não se transformar num conjunto de teorias reificadas e aplicadas per via di porre; para que seu método continue vivo, produzindo novos sentidos e sendo eficaz na clínica de consultório ou no diagnóstico da cultura; para que se torne um dispositivo capaz de acolher o sofrimento hu­mano e dar-lhe forma, suplantando os preceitos de tratamento vindos da me­dicina – é preciso avançar. Avançar na reivindicação de que a psicanálise criou um método de conhecimento, de produção de sentido, e que sentido cura o sofrimento humano, expõe as raízes do homem e do mundo – sentido é sua forma de cuidar. Portanto, este pequeno grande livro pretende muito mais do que apresentar as teorias sobre a sexualidade e a infância que abalaram o século passado. Vai além da descrição concisa e fácil dos intrincados modelos sobre o aparelho psíquico, úteis até os dias de hoje e comprovados pelas neurociências. Problematiza a psicopatologia clássica ao procurar a compreensão das neuro­ses, perversões e psicoses. E até introduz conceitos novos, como o princípio do absurdo, por meio de uma linguagem inovadora e poética – o autor é um escritor de mão cheia, dono de um estilo próprio, capaz de cativar tanto o leitor virgem de psicanálise como o velho praticante libertino. Fabio Herrmann nos oferece carinhosamente as pretensões de sua própria vida e obra: radicalizar o conceito de inconsciente, esticando-o até o real; determinar o método de rup­tura de campo como próprio da psicanálise e disso derivar que o método deve ultrapassar a técnica, precipitar-se pelo mundo, como é demonstrado no pri­meiro e delicioso capítulo “O momento da Psicanálise”. Por último, é preciso mencionar a mais importante tarefa deste livro simples e complexo: passar a tocha acesa da psicanálise ao leitor, para que ele a mantenha em chamas.

 

(1) Psicanalista e escritora. Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), publicou artigos em revistas e livros especializados. Autora dos livros O amor leva a um liquidificador (Casa do Psicólogo), Perpétuo Socorro (Jaboticaba), Alcoolismo (Blucher) e Educação para a morte (Patuá).

 

Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 51, n. 2, 227-229 · 2017

31 de maio de 2019