Editorias e Resenhas

Neurose, psicose, perversão. Obras incompletas de Sigmund Freud

Autor: Sigmund Freud
Tradutora: Maria Rita Salzano Moraes
Editora: Autêntica, Belo Horizonte, 2016, 361 p.
Resenhado por: Hang-Ly H. Ikegami Rochel (1)

Esta nova tradução das obras de Freud diretamente do alemão já de saída se distingue das demais por seu provocativo título Obras incompletas de Sigmund Freud. Os coordenadores desta edição afirmam que o termo obras completas traz em si um caráter apaziguador do qual o leitor deve desconfiar; ao mesmo tempo, atribuem um estranhamento às taxionomias já consagradas, “que incluem e excluem obras do cânone freudiano”, discordando da tradicio­nal divisão em “publicações pré-psicanalíticas, artigos metapsicológicos, escri­tos técnicos, textos sociológicos, casos clínicos, outros trabalhos” etc. (p. 351).

Ao final de cada texto, e não no início como tem sido o costume, esta edição criou uma seção para comentários e notas que o situam no tempo e ao longo do pensamento de Freud – com termos que Freud citava de maneira mutante, questões de tradução, notas explicativas –, além de sugerir escritos de outros autores como pesquisa sobre o tema do texto em questão.

O presente volume, Neurose, psicose, perversão, reúne trabalhos semi­nais do pai da psicanálise, que cobrem trinta anos de sua fértil produção. Estão agrupados suas cartas e manuscritos dirigidos a Fliess, como o “Manuscrito h”, o “Manuscrito k”, a “Carta 112 (52)”, a “Carta 139 (69)” e a “Carta 228 (125)”. Também fazem parte deste volume: “Sobre o sentido antitético das palavras” (1910), “Sobre tipos neuróticos de adoecimento” (1912), “Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica” (1915), “Luto e melanco­lia” (1917), “‘Bate-se numa criança’: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais” (1919), “Sobre a psicogênese de um caso de homossexua­lidade feminina” (1920), “Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade” (1922), “Uma neurose demoníaca no século XVII” (1923), “O declínio do complexo de Édipo” (1924), “Neurose e psicose” (1924), “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924), “O problema econômico do masoquismo” (1924), “A negação” (1925) e “Fetichismo” (1927).

Essa maneira de agrupar esses trabalhos procura destacar a evolução do pensamento de Freud com relação à neurose, à psicose e à perversão, eviden­ciando um cientista e pensador à frente de seu tempo, mesmo se considerar­mos os dias de hoje. Como exemplo, no que diz respeito à necessidade comum de saber sobre a origem imediata das doenças, se sua natureza é orgânica ou exógena, a perspectiva freudiana é moderna e ousada:

A psicanálise nos advertiu a abandonarmos a infecunda oposição entre os fato­res externos e internos, entre destino e constituição, e nos ensinou a encontrar a causação do adoecimento neurótico regularmente em uma determinada situação psíquica que pode se produzir por diversos caminhos. (p. 79)

Nesse sentido, Freud já estruturava aquilo que veio a chamar de série complementar.

Abrem este volume o “Manuscrito h” (1895), intitulado “Paranoia”, e o “Manuscrito k” (1896), intitulado “As neuroses de defesa (conto de fadas natalino)”. Eles contêm as ideias iniciais de Freud com relação aos mecanis­mos de defesa, destacam o papel da sexualidade e abordam o tema da escolha da neurose.

Em seguida, aparece a famosa “Carta 112 (52)”, de 1896, uma das mais importantes, na qual Freud já esboçava a teoria do aparelho psíquico, que vem a desenvolver mais tarde. Nessa carta, fica claro o interesse do autor em arti­cular seu pensamento clínico-nosográfico – ao diferenciar histeria, neurose obsessiva, paranoia e perversão – com a questão tópica.

Completam a seleção a “Carta 139 (69)”, de 1897, na qual Freud aban­dona sua teoria da sedução e reavalia as relações entre histeria e perversão, e a “Carta 228 (125)”, de 1899, em que esboça os diferentes modos de adoecimen­to, o que será retomado em 1912.

“Luto e melancolia”, entre os textos selecionados para este volume, é mais um dos textos clássicos da obra freudiana. Nele, Freud discute como chegou a pensar a melancolia como uma afecção do narcisismo, depois de ter apresentado seu trabalho “Introdução ao narcisismo” (1914). Ele percebe que não se pode colocar a melancolia como uma psicose nem como uma simples neurose. Cria, então, uma terceira modalidade: a melancolia é uma neurose narcisista.

Desaparece a dualidade empobrecedora neurose-psicose. Nem simplesmente neu­rose, nem simplesmente psicose, mas uma maneira de estar no mundo sem a re­clusão do louco, sem o repúdio radical à realidade externa, como também sem a entrega e a submissão aos imperativos do Outro. Ao abrir espaço para uma neurose narcisista, uma fronteira estava sendo abalada, e uma inquietação surgia. (Peres, 2011, pp. 128-129)

Nesse trabalho, Freud utiliza, de início, um paralelo entre o luto normal e a melancolia, mas logo vai diferenciando um tema do outro com base na observação rigorosa de sua clínica, de suas próprias vivências e da leitura dos clássicos. Ele nos surpreende com suas observações: demonstra que, no luto, o enlutado sabe o que perdeu, ele sofre uma perda real; na melancolia,

o doente sabe qual é a perda que [a] ocasionou, na medida em que ele, na verdade, sabe quem, mas não sabe o que perdeu nele. Isso nos levaria, de alguma forma, a li­gar a melancolia com uma perda de objeto que foi subtraída da consciência, diferen­temente do luto, no qual não há nada inconsciente no que se refere à perda. (p. 102)

O melancólico mostra ainda um grande rebaixamento da autoestima do eu. No luto, o mundo se tornou pobre e desinteressante; na melancolia, é o próprio eu que se esvaziou.

Na melancolia, quando ocorre a perda de uma pessoa amada, por exemplo, por real ofensa ou decepção, a resposta não é uma resposta normal, não há a busca de um substituto. A libido retorna ao eu, e uma identifica­ção com o objeto perdido ocorre, ou seja, “a sombra do objeto cai sobre o eu” (p. 107), de acordo com a feliz e famosa frase de Freud. Assim, o objeto abandonado transforma-se em uma perda do eu, e o conflito com a pessoa amada perdida, em uma cisão entre a crítica do eu e o eu modificado pela identificação.

Entre outras coisas, esse ensaio traz pela primeira vez o conceito que irá marcar muito fortemente a psicanálise: o conceito de relação de objeto (Objektbeziehung), que Melanie Klein tão bem passa a utilizar para compor toda a sua teoria das posições e das relações de objeto.

Não escapa a Freud a ligação entre a melancolia e o sadismo resultan­te do retorno do investimento amoroso, que deixa o objeto. Com isso, pode concluir que o eu só se mata se, com o retorno do investimento de objeto, ele tratar a si mesmo como objeto e puder dirigir a si mesmo a hostilidade que vale para o objeto. Dessa forma, pode-se dizer que o suicídio do melancólico, na verdade, esconde um assassinato do outro.

Para abordar a questão da perversão na obra de Freud, esse volume agrupa os ensaios: “‘Bate-se numa criança’: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais”, “Sobre a psicogênese de um caso de homosse­xualidade feminina”, “O problema econômico do masoquismo” e “Fetichismo”. Nesses estudos, Freud busca compreender a psicogênese das perversões, do masoquismo e do fetichismo, demonstrando que tais configurações mentais do adulto encontram sua origem na sexualidade infantil e que estão relaciona­das com objetos de amor incestuosos da criança, com seu complexo de Édipo. Quanto ao masoquismo, Freud retoma a questão trazida em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) de que o masoquismo se origina de um retorno do sadismo contra a própria pessoa. Mas, em “Bate-se numa criança”, ele acrescenta a influência da consciência de culpa, que contribui para a repressão e força a organização a uma regressão à fase sádico-anal do desenvolvimen­to. Essa consciência de culpa está relacionada a uma instância moral crítica (supereu), que se opõe ao resto do eu. Aqui o masoquismo ganha um alcance metapsicológico mais amplo, já com o conceito de pulsão de morte introduzi­do em Além do princípio do prazer (1920): discute-se, por exemplo, como en­tender a tendência masoquista na vida libidinal se o aparelho psíquico procura evitar o desprazer e obter o prazer.

Em “Neurose e psicose” e em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, Freud procura evidenciar os mecanismos específicos da psicose e quais as diferenças entre neurose e psicose. Ele discute neurose e psicose in­corporando a nova apresentação do aparelho psíquico em três instâncias: o isso, o eu e o supereu. De início, Freud enfatiza as diferenças; num segundo momento, atenua um pouco essas oposições.

Como na psicose, também na neurose a realidade é perdida, sendo mais grave, porém, na psicose. Os mecanismos psíquicos subjacentes são diferen­tes, assim como o resultado dos precipitados psíquicos: na neurose, a fantasia; na psicose, o delírio. É importante destacar que Freud opõe neurose e psicose com relação ao modo pelo qual ambas lidam com a negativa (Verleugnung), mecanismo em geral associado à perversão: “a neurose não recusa a realida­de, apenas não quer saber nada sobre ela; a psicose a recusa e procura subs­tituí-la” (p. 282).

“A negação”, essa pequena obra-prima, tornou-se um dos artigos fun­damentais da teoria psicanalítica. Trata-se de um ensaio complexo, ousado, conciso – o que pode esconder sua real densidade (Safatle, 2014) –, que incor­pora as últimas descobertas de Freud (pulsão de morte e segunda tópica). A negação de que fala Freud revela como

um conteúdo de representação ou de pensamento recalcado pode abrir caminho até a consciência, sob a condição de que seja negado. A negação é uma maneira de tomar conhecimento do recalcado; na verdade, é já uma suspensão do recalcamento [Verdrängung], mas evidentemente não é uma admissão do recalcado [Verdrängten]. (p. 306)

Isso tem implicações técnicas importantes, pois trata-se da maneira de o sujeito “apresentar seu ser sob o modo do não ser” (Hyppolite, citado por Safatle, 2014, p. 40). Ou seja, ao negar algo, que no fundo é um desejo seu, o sujeito estaria tentando inscrever simbolicamente aquilo que ele só pode reco­nhecer ao separar a aceitação intelectual da aceitação afetiva. De acordo com Freud, “negar algo no juízo significa, basicamente: isso é alguma coisa que eu preferiria recalcar. A condenação é o substituto intelectual do recalcamento; seu ‘não’ é a marca característica deste, um certificado de origem, tal como o made in Germany” (p. 307).

Ao final, ele relaciona a polaridade inclusão no eu ou expulsão para fora do eu ao conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte: “a afirmação – como substituto da união – pertence a Eros; a negação – sucessora da expulsão – pertence à pulsão de destruição” (p. 309).

Nota-se de maneira muito especial nessa nova tradução a fluência e a criatividade do Freud escritor: complexo, ao mesmo tempo que instigante e belo. Suas questões adquirem dimensões clínicas, linguísticas, éticas, socio­lógicas, antropológicas e políticas. Com essas e outras, a nova tradução, que está saindo do forno, pretende oferecer uma nova maneira de organizar e tratar os textos de Freud e mostrar uma concatenação do seu pensamento ao longo de sua obra.

A tradução é de Maria Rita Salzano Moraes, professora do Departamento de Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutora em linguística pela Unicamp e mestre em linguística aplicada pela Unicamp.

Essa coleção tem a coordenação e a edição de Gilson Iannini, psicana­lista, filósofo, editor, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em psicanálise pela Universidade de Paris 8.

Também coordena a coleção Pedro Heliodoro Tavares, psicanalista, ger­manista, tradutor, professor da área de alemão (língua, literatura e tradução) da USP e doutor em psicanálise e psicopatologia pela Universidade de Paris 7.

O posfácio deste volume é de Antonio Teixeira, psicanalista e profes­sor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em filosofia contemporânea pela UFMG e doutor em psicanáli­se pela Universidade de Paris 8.

 

Referências

Peres, U. T. (2011). Uma ferida a sangrar-lhe a alma. In S. Freud, Luto e melancolia (M. Carone, Trad., pp. 101-137). São Paulo: Cosac Naify.

Safatle, V. (2014). Aquele que diz “não”: sobre um modo peculiar de falar de si. In S. Freud, A negação (M. Carone, Trad., pp. 35-53). São Paulo: Cosac Naify.

*Membro efetivo e analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCAMPINAS) e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 52, n. 1, 201-206 · 2018

14 de junho de 2019