Editorias e Resenhas

Espelhos, reflexos, reflexões

Autor: Luciano Marcondes Godoy
Editora: Appris, Curitiba, 2017, 168 p.
Resenhado por: Patrícia Nunes (1)

Em 1900, Freud publicou A interpretação dos sonhos. Nesse trabalho, fez a seguinte consideração: os sonhos são a via régia para o inconsciente. A via régia era conhecida no período medieval como royal highway, ou estrada real, uma espécie de estrada histórica, que pertencia legalmente ao rei e que tinha sua proteção e determinação de paz. É interessante a associação feita por Freud, pois o caminho histórico dos sonhos, que liga presente e passado, oferece ao sonhador proteção e paz, por expressar-se de forma psíquica.

O livro escrito por Luciano Marcondes Godoy, presentificação meta­fórica, apresenta, em suas linhas, apreensão e tradução de formas de estar no mundo. Sua leitura nos possibilita dois estados: um, onírico; o outro, de vigília. Percorrendo suas páginas, ao estarmos acordados, notamos, em seu primeiro texto, “Psicose branca cotidiana”, certo entendimento sobre essa forma de funcio­cionamento mental, permitindo a crítica diante de pessoas e situações em que predomina o uso do objeto. Como Hannah Arendt, Godoy nos alerta sobre o perigo da alienação e as consequências de banalizar o mal. Isso significa difi­culdade ou impossibilidade de refletir, simplesmente seguindo, convivendo e aceitando, sem questionamento. O cotidiano fica ameaçado e o amanhã corre risco de deterioração se, em vez de caminhar, marchamos como autômatos, isentos de percepção, conhecimento e crítica, permanecendo refugiados em nós mesmos. Ao iniciar o livro com esse trabalho, o autor elege um tema de primeira importância. A banalização do mal ou refúgio anestésico colabora com a morte do humano e da civilização. O livro nos desperta do pernicioso sono do entorpecimento.

A leitura, por também caminhar por estradas oníricas, oferece-nos aproximações de estratos psíquicos de camadas profundas. Acompanhado de parcerias criativas, entre elas as de Wilfred Bion e Clarice Lispector, Godoy fornece ao leitor sonhos diurnos, através de sua escrita do inconsciente.

Em “Mistérios: além do mundo dos fenômenos”, somos convidados a nos desacomodar de nossos conhecidos lugares para uma viagem intra-hu­mana. De onde viemos? Onde estamos? Para onde vamos? Esses questiona­mentos são capitães desta embarcação, que ruma em direção a águas ainda não navegadas.

Ao estabelecer aproximações de estados mentais ainda não localizados por nossa vã consciência e inconsciência, Bion se pergunta: “Como haveremos de ver, observar essas coisas que não são visíveis?” (2005, citado por Levine, Reed & Scarfone, 2016, p. 73). Levine, Reed e Scarfone (2016) afirmam que a atividade psíquica é governada por uma original pressão para formar repre­sentações e ligá-las a narrativas significativas, coerentes e envoltas de afeto. Lembram que Freud, ao discorrer sobre o universo mental, mostrou que os pensamentos e os sentimentos inconscientes poderiam ser compreensíveis. Talvez o impacto produzido por essa descoberta tenha ofuscado o restante de sua obra, na qual assinalou que somente alguns aspectos do inconscien­te poderiam ser conhecidos pelos traços simbólicos que deixam em nossa consciência e vigília. Existe uma distinção entre o inconsciente reprimido ou dinâmico (organizado) e o inconsciente não formulado, que é imensurável, disforme e não estruturado. O convite de Godoy recupera a proposta de Freud e nos impulsiona a pensar além do que se pode conhecer, navegação iniciada por Freud e voo alçado por Bion, ao sinalizar O.

Bachelard diz: “A psicanálise prefere colocar o ser em movimento a aquietá-lo” (2008, p. 30). Analista e paciente, escritor e leitor, artista e mundo: é na interação que Narciso cede lugar a Eros. O conhecimento requer o nasci­mento do outro. É por intermédio do amor que ganhamos condição de ima­ginar o inimaginável e sonhar antes de verificar. Esse é o fio condutor para o encontro com o mistério, também nomeado de ministério do humano. É nesse diálogo com o leitor que surge a possibilidade de visitar céu, terra e mar; o universo de modo singular; o mundo a partir de um grão de areia.

No terceiro texto, “Espelhos, reflexos, reflexões”, somos convidados a fazer indagações a respeito do ser; somos incentivados a pensar sobre como fomos caminhando até nos tornarmos quem somos. Aproximamo-nos das vi­cissitudes desse caminhar e deparamo-nos com o entendimento de situações que o inviabilizam, em razão do aprisionamento. Por meio de um conto de Briússov, “Dentro de um espelho”, metáfora utilizada por Godoy e que nos leva para o mundo virtual do inconsciente, acercamo-nos da odisseia humana e de suas intempéries. O trabalho reflete sobre encontros e desencontros, ou – nas palavras do autor – caminhos e descaminhos que ocorreram a partir do primeiro olhar. Os reflexos na constituição do ser que encontra o olhar materno apresentam o bebê a si e ao mundo. Diferentemente, quando o olhar é de vidro, os reflexos são meras luzes e nuances narcísicas.

Clarice Lispector, conhecedora da alma humana, observa: “A visão … altera a realidade, construindo-a. Uma casa não é construída apenas com pedras, cimento etc. O modo de olhar de um homem também a constrói” (1984, citada por Pontieri, 1999, p. 18). Assim também se dá a construção humana.

Suzy Lee (2008, 2009), escritora coreana, também conhecedora das profundidades do espelho e das águas encantadoras de olhares à procura de relações náufragas, transporta-nos para reflexões sobre o reflexo do vidro e o da água, sentidos como companhias. Essas companhias, não sendo humanas, e sim resultantes de projeções, levam-nos a refletir sobre a ausência, quando sentida como perda permanente. Nesse tipo de vivência, o self, como conse­quência, opera uma ausência de si (espelho). Já na ausência vivenciada como temporária, o self é acometido de terrores, mas a companhia interna, intro­jeção do bom objeto, possibilita a junção entre as partes – nas palavras de Godoy, a integração entre o eu e o ela.

O próximo ponto é a existência. Quando percorremos essas linhas, somos conduzidos ao universo externo e interno, do vácuo aos corpos ce­lestes, da espécie humana às entranhas do indivíduo. O zoom, como Istvan Banyai (1995) realiza, é feito por intermédio de Bion, ao apresentar a noção de O. A concomitante presença e efemeridade permite-nos chegar perto, para o além de nossa compreensão, da substância específica. Tal experiência pode ser traduzida por estas palavras de Guimarães Rosa: “um vaga-lume lanterneiro, que riscou um psiu de luz” (2001, p. 231). A apreensão também pode ser feita pelo entendimento de Clarice Lispector a respeito de it:

Por enquanto o que me sustenta é o aquilo que é um it. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é uma dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. (1998, p. 45)

Diante da dimensão proposta pelo autor, a visão amplia-se. Entendemos que a dor, gerando defesas, inibe visualizações do it. O vaga-lume lanterneiro não risca o céu. Isso só pode acontecer na disposição da vivência da dor de parto anunciada por Clarice Lispector. Dar-nos à luz liberta e apavora. Certa vez, Eliot disse: “Voa, voa, voa pássaro, o ser humano não aguenta tanta liber­dade”. Os conhecedores da alma, esses que beberam em fontes que ainda não conhecemos, sabem da necessidade e da dificuldade das nuances da substân­cia específica.

Fernando Pessoa (1995, p. 173), o desassossegado sábio – todo sábio não escapa do desassossego –, conhecia a substância específica:

Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem me suponho
Corre um rio sem fim.

Godoy alerta: a substância específica é sutil.

Com o quinto texto, finaliza-se uma viagem que inaugura um novo estado mental, estado que acorda para ver e sonha para enxergar. Quando despertamos do sono da defesa, assistimos a um mundo virtual, localizado em ciberespaços em que a presença física e o contato são dispensáveis, caminho oposto àquele percorrido por Saint-Exupéry (2006), que enfatiza a necessida­de do amor ao falar da importância de criar laços. Para nos desenvolvermos, é preciso envolvimento, contato. Fora disso, comenta Godoy, o que alcançare­mos será uma raça alienígena de máxima tecnologia, em que a hipertrofia da racionalização ocupará o lado esquerdo do peito.

Nas considerações finais, ao indignar-se com fotografias do cotidiano de seres humanos, mais semi do que humanos, em razão do estado de abandono e desamparo, Godoy questiona: “E o que a clínica psicanalítica tem a ver com isso?” (p. 166). Podemos pensar: o que todos nós temos a ver com isso? – pergunta silenciada em reflexões ausentes. Godoy finaliza dizendo que, como Clarice Lispector, encontra-se cansado, mas, mesmo cansado, tem fé.

Após essa intensa e profunda viagem na companhia do autor, eu me pergunto: o que podemos fazer diante do parco do outro? Nosso estimado mestre Freud desenvolveu uma ciência que humaniza. Cabe a nós, aos que têm amor ao ofício, compartilhar esse conhecimento civilizatório, que em palavras e gestos, suor e coragem, resgata pessoas e dignidades.

Nas palavras de Akira Kurosawa, no filme Madadayo:

Todos vocês, por favor, encontrem algo de que realmente gostem. Alguma coisa que seja verdadeiramente importante para vocês. E, ao encontrá-la, lutem muito por ela. A partir desse momento, vocês passam a ter algo, para o qual desejam dar o melhor de si. E então, tenham certeza, isso se transformará num ofício nobre, erigido com o coração e a alma. (2010, p. 68)

 

Referências

Bachelard, G. (2008). A poética do espaço (A. de P. Danesi, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.
Banyai, I. (1995). Zoom. São Paulo: Brinque-Book.
Kurosawa, A. et al. (2010). Criando imagens para cinema: exposição comemorativa do centenário de Akira Kurosawa (S. Murayama & K. Gerhartt, Trads.). São Paulo: Instituto Tomie Ohtake.
Lee, S. (2008). Onda. São Paulo: Cosac Naify.
Lee, S. (2009). Espelho. São Paulo: Cosac Naify.
Levine, H. B., Reed, G. S. & Scarfone, D. (2016). Estados não representados e a construção de significado (P. F. Lago, Trad.). São Paulo: Blucher.
Lispector, C. (1998). Água viva. Rio de Janeiro: Rocco.
Pessoa, F. (1995). Entre o sono e o sonho. In F. Pessoa, Poesias (p. 173). Lisboa: Ática.
Pontieri, R. (1999). Clarice Lispector: uma poética do olhar. Cotia: Ateliê.
Rosa, G. (2001). Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Saint-Exupéry, A. de. (2006). O Pequeno Príncipe (D. M. Barbosa, Trad.). Rio de Janeiro: Agir.

 

(1) Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 52, n. 4, 237-241 · 2018

24 de maio de 2019