Editorias e Resenhas

A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento

A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento
Autora: Miriam Debieux Rosa
Editora: Escuta; Fapesp, São Paulo, 2016, 200 p.
Resenhado por: Sandra Djambolakdjian Torossian (1)

 
O livro A clínica psicanalítica em face da dimensão do sofrimento representa um marco brasileiro na psicanálise contemporânea. Ele defende uma psicanálise que acolhe a política, que se pensa e se constrói considerando a dimensão sociopolítica. Trata-se de levar à radicalidade a proposição freudiana de que toda psicologia é psicologia social.

Nessa proposição, Freud compreende o social como o outro integrado na vida anímica individual. O texto de Miriam, no entanto, sugere uma torção: não é somente o outro integrado à vida anímica individual, mas o sujeito constituindo-se na política – a política tomada a partir dos discursos constitutivos do sujeito, na qual a intervenção psicanalítica também deve se organizar. Elabora-se, assim, a perspectiva de uma psicanálise implicada com a dimensão coletiva do sofrimento.

Apresentado em três seções, com prefácio de Maria Rita Kehl, o livro tem como eixo condutor as intervenções psicanalíticas e seus impasses em contextos marcados por conflitos políticos e culturais. Traz ainda uma proposta diagnóstica que inclui não apenas a fantasmática do sujeito, mas também o campo do Outro.

Ao longo do livro, a partir de diferentes situações clínicas, que envolvem temas como exclusão social, pobreza, racismo, indiferença, humilhação, migração forçada e exílio, a autora ressalta um equívoco: o enredamento do sujeito na maquinaria do poder, quando o discurso social é oferecido como se fosse o discurso do Outro.

Os diversos cenários clínicos analisados revelam o sofrimento produzido pela posição sociopolítica do sujeito, na qual o campo simbólico foi obscurecido por personagens da cena social. São apresentadas, então, propostas que sustentam a intervenção, entre as quais a restituição de um campo mínimo de significantes referidos ao campo do Outro, o trabalho na articulação do singular no laço social e o rompimento com o discurso violento, mascarado como simbólico.

Na primeira parte do livro, a autora realiza um percurso da clínica psicanalítica em contextos de desamparo social e discursivo, a partir da escuta do não dito nos sintomas da infância e da resistência do analista na escuta de sujeitos excluídos pelo modelo neoliberal. Mostra também o trabalho analítico em situações traumáticas decorrentes de migrações forçadas.

Um ponto forte dessa seção é a consideração da resistência do analista na clínica do traumático, em situações de desamparo discursivo, que ocorrem quando os discursos sociais, travestidos de discurso do Outro, obturam a polissemia do significante e capturam o sujeito em suas malhas, em tempos de constituição (ou destituição) subjetiva. A resistência aqui poderá advir se o analista também se enredar nesse equívoco e produzir violência na transferência, causando o emudecimento do sujeito, em vez de sua fala, e a irrupção de violência. Segundo a autora, a escuta deverá ser orientada pela posição testemunhal e pelo resgate da memória.

As situações de migração forçada, provocadas por contextos de violência ou miséria, são apresentadas como campo fértil de análise da necessidade de resgatar as memórias e alinhavá-las numa história. Esse é o caso dos refugiados para os quais a dimensão do perdido e a dificuldade de se localizar no mundo assumem um lugar primordial e promovem efeitos de desenraizamento. Na clínica dessas situações, diante da potência enlouquecedora do traumático, não é suficiente o diagnóstico na direção das neuroses, psicoses ou perversões. É preciso estabelecer um semblante, recompor uma sustentação fantasmática mínima, o que se torna possível por meio da semblantização do real numa trama significativa.

Na segunda parte do livro, a autora considera as coordenadas presentes na cena política em que se processa a constituição subjetiva. Examina ainda situações-caso, como a toxicomania e a violência, referidas aos impasses do sujeito contemporâneo. Miriam tece uma proposta metodológica para a análise do vínculo entre o sujeito e os laços sociais, uma importante contribuição ao campo da psicanálise na articulação clínico-política e que suplementa o diagnóstico centrado no sujeito com um diagnóstico que inclui a cena social, o campo do Outro.

A proposta consiste em analisar os enunciados das enunciações da cena social sobre os referentes fundamentais da organização social e psíquica. Também, em elucidar o imaginário de diferentes grupos, os quais atribuem lugares muitas vezes rígidos e preconceituosos ao sujeito, quando o denominam, por exemplo, de drogado, bandido ou doente. Seguindo a trilha indicada, uma parada se faz necessária para investigar as ilusões contemporâneas regidas pelo discurso neoliberal. Incluir o aspecto sociopolítico na escuta do não dito nos discursos do sujeito e sua força de determinação nos enunciados sociais torna-se fundamental.

Através dessas lentes analíticas, abordam-se a sociedade e suas transformações. Direcionando-se o olhar para o caso da criança e do adolescente, analisam-se a naturalização dos discursos sociais sobre eles e o modo como o declínio da imago do pai os deixa vulneráveis a um discurso generalizante dessubjetivante.

Uma das teses apresentadas envolve o enfraquecimento do significante pai e a maneira como se dá sua substituição num embate relativo a qual será a instância a sustentar o lugar de representante do Outro. Nessa questão – política –, o discurso segregador costuma desvalorizar a posição da família em alguns grupos sociais. Por essa via, há rupturas na transmissão familiar, substituindo-se a singularização da criança por um discurso social genérico, que incide na constituição do laço social da criança e do jovem. Assim, em face de uma criança genérica, entram em ação discursos e práticas segregatórias.

O toxicômano é tomado como figura produzida pelo discurso social para induzir certo tipo de laço com o outro, no qual o objeto recalca a submissão ao Outro, prometendo um acesso privilegiado ao gozo, um gozo sem dívida, que organiza nosso sintoma social contemporâneo. A violência também ganha destaque na análise do campo social, fundamentalmente por sua característica de estar aparentemente desvinculada do discurso que a produz. Apresentando uma leitura do processo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do caso muçulmano, retirado dos escritos de Walter Benjamin e Giorgio Agamben, a autora aponta a fragilização do registro da experiência e sua incidência na lógica do poder, bem como as saídas possíveis por meio das redes sustentadas pelo desejo e pela construção do comum.

Ao tornar visíveis as relações de saber-poder nas quais se constroem nossos cenários espaçotemporais, não somente seremos capazes de compreender as condições que as suportam, mas abriremos um campo de possibilidades de invenção. Esses processos tornam-se necessários para criar mecanismos de pressão e enfrentamento à submissão ao poder soberano, através do resgate da experiência compartilhada.

Na terceira e última parte do livro, a autora problematiza a lógica da vitimização, pondo em questão o discurso jurídico e as políticas públicas, dirigindo o foco tanto para a individualização quanto para a cena violenta. Há um deslocamento necessário, que traz para a cena a responsabilidade, e não a criminalização. Aqui, o campo da experiência é a clínica e a política da adolescência, interrogada pelo ato infracional. Novamente, as saídas apontadas incidem sobre a produção de um coletivo que sustente a possibilidade de responsabilização, a qual não recai somente sobre o indivíduo, exigindo antes o compromisso de todos.

O livro chega à conclusão retomando o conceito de psicanálise implicada, isto é, a escuta que considera os efeitos do desamparo discursivo na construção de estratégias e dispositivos relacionados à posição desejante dos sujeitos no laço com o outro, bem como as modalidades singulares e coletivas de enfrentamento dos processos de alienação social. Neste livro, temos um trabalho árduo e necessário de sustentação da clínica política no campo psicanalítico; um texto cuja leitura é indispensável para todos os psicanalistas implicados com seu tempo.

 

(1) Doutora em psicologia, professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Publicado em: Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 52, n. 3, 253-256 · 2018

9 de agosto de 2019